Bryan Harris e Andres Schipani (Financial Times, 12/08/2020) informam as Forças Armadas do Brasil terem adotado uma nova tática para melhorar a imagem: estão desenvolvendo um jogo eletrônico para crianças, no qual soldados virtuais podem vestir o verde-oliva dos militares brasileiros e sair atirando em bandidos.
O objetivo é melhorar a forma como são vistas pela juventude da nação. Por receio de acabar sendo retratados como mercenários descontrolados, no entanto, a liderança militar ordenou que o videogame “não mostrasse sangue demais”. Cenas que possam gerar uma “crise institucional” também foram vetadas, o que significa que não há combates em Brasília nem, definitivamente, golpes de Estado. A incursão no mundo dos videogames fala muito sobre o papel cada vez mais ambíguo que os militares vêm desempenhando na vida pública brasileira.
Nos mais de 30 anos desde o fim de uma violenta ditadura militar, as Forças Armadas mantiveram, em grande medida, a cabeça baixa e deram forte apoio às instituições democráticas do país. Isso, porém, foi antes de Jair Bolsonaro, um ex- capitão do Exército, de tendência direitista, ser eleito presidente em 2018. Bolsonaro nomeou um grande número de ex-militares para altos cargos em seu governo.
Agora, seu próprio cargo está em risco. Então, ele levantou abertamente a ideia de alguma forma de intervenção militar na política brasileira, tendo dito em junho que as Forças Armadas não aceitariam “decisões absurdas” do Supremo Tribunal Federal (STF) ou do Congresso.
Os comentários foram vistos como uma reação do presidente às diversas investigações penais sobre ele e sua família no tribunal de mais alta instância do país, um caso que têm potencial para levar a seu impeachment ou à anulação de sua eleição em 2018. Não foi a primeira vez em que ele invocou os militares para tentar intimidar seus oponentes. Quando a pandemia da covid-19 começou a assolar o Brasil em abril e maio, o presidente participou de comícios do lado de fora de bases militares, onde seus seguidores mais radicais defendiam uma intervenção armada para depor governadores, juízes e congressistas que estavam adotando medidas de confinamento.
“O Brasil acorda assustado com as crises diárias, com agressões gratuitas. Agressões às instituições, à Constituição, agressão ao Congresso Nacional, agressão ao Supremo Tribunal Federal”, disse na época o governador de São Paulo, João Doria. “Presidente Bolsonaro […] pare com as agressões.”
Por enquanto, Bolsonaro parece estar tentando amainar a temperatura política. Ele procurou aproximar-se ao STF e conseguiu formar uma aliança política com o controverso grupo de partidos no Congresso brasileiro conhecido como Centrão, algo que, segundo analistas, deve ser suficiente evitar sua deposição da Presidência – pelo menos por agora.
Mesmo assim, diante da continuidade das investigações sobre a família Bolsonaro, de uma economia provavelmente entrando em nova recessão depois de já estar sofrendo dez anos de estagnação e da ideia predominante de que o governo lidou mal com pandemia, o Brasil poderia estar por entrar em um novo período de turbulência política.
No fim de semana, a pandemia passou da marca de 100 mil pessoas mortas pela covid-19. Tal cenário levantou questionamentos prementes sobre o papel dos militares na sociedade brasileira de hoje e sobre como seria de fato seu relacionamento com Bolsonaro.
Se o líder brasileiro decidir ignorar alguma determinação do STF, o que as Forças Armadas fariam?
Será que os ex-militares em torno ao presidente são um acelerador ou um freio para os instintos autoritários do presidente?
Oficiais e soldados, na ativa e na reserva, assim como altos nomes militares, são categóricos em afirmar que as Forças Armadas nunca executariam de novo o mesmo tipo de intervenções militares que pipocaram no Brasil no século XX. Eles argumentam que os militares permaneceriam comprometidos em proteger a ordem democrática do país caso Bolsonaro exagere.
“O Exército está quieto há 35 anos, não irá se meter em políticas partidárias agora”, diz Santos Cruz
“O Exército está quieto há 35 anos”, diz Carlos Alberto dos Santos Cruz, general da reserva do Exército e ministro no governo Bolsonaro até ser demitido por confrontar-se com os poderosos filhos do presidente. “Não irá se meter em políticas partidárias agora.”
Bolsonaro – incluindo um número maior no Poder Executivo do que havia durante a ditadura de 1964-1985 – trazendo com eles uma mentalidade militar à governança civil. O atual ministro da Saúde é um general da ativa que seguiu ordens de Bolsonaro para que a desacreditada cloroquina fosse ministrada a pacientes com covid-19. Para analistas independentes e alguns políticos, a presença de tais figuras já representa por si só um risco à democracia.
“O que o presidente está dizendo agora é: ‘Tenho a espada a meu lado e essa espada são os militares’. Ele está sempre invocando os militares, sempre falando dos militares”, diz Raul Jungmann, político veterano de centro-esquerda que foi ministro da Defesa no governo anterior, de Michel Temer. “É assim que o presidente decidiu limitar o Congresso e o supremo tribunal e seguir adiante com sua agenda.”
As Forças Armadas têm raízes profundas e amplas na sociedade brasileira. Quando o Brasil declarou a independência de Portugal em 1822, recorreu às nascentes forças militares para reprimir, primeiro, forças portuguesas e, depois, rebeliões locais nas mais distantes partes de seu jovem império.
Posteriormente, outras operações mapearam as profundezas da floresta amazônica, criando as atuais fronteiras do Brasil e infundindo em seus militares um sentimento de primazia na criação da nação. “Todos esses eventos trouxeram um senso de identidade às Forças Armadas, porque elas cumpriram seu papel para com a nação. Em todos os momentos de agitação política, as Forças Armadas de alguma forma participaram do governo”, diz um alto general da reserva.
Essa inclinação intervencionista continuou ao longo do século XX, culminando com o golpe de 1964, que trouxe uma violenta ditadura de 20 anos. A democracia foi restaurada em 1985. Diferentemente da vizinha Argentina, porém, onde a ditadura foi mais brutal e os generais passaram por julgamentos parecidos aos de Nuremberg, os generais de saída do poder no Brasil negociaram uma anistia geral, de forma que os militares nunca foram julgados por seus crimes, entre os quais assassinatos e torturas.
Nos últimos anos, sem ameaças claras à defesa nacional, os militares brasileiros se encarregaram de diversas iniciativas, como missões de ajuda humanitária, projetos de infraestrutura, combate a incêndios na Amazônia e até nos esforços contra a pandemia da covid-19. Segundo dados do Banco Mundial, o país tem as maiores Forças Armadas da América Latina, seguido pela Colômbia, que por décadas precisou enfrentar uma feroz insurgência marxista.
“Nosso papel é contribuir para o desenvolvimento do país”, diz um coronel brasileiro, que serviu por 30 anos no Exército, cujos comentários encontram eco entre vários oficiais de menor patente. É uma atitude que ajudou os militares a reabilitar sua imagem desde a ditadura. Em grande parte dos últimos dez anos, o instituto de pesquisas Ibope coloca os militares, ao lado dos bombeiros e da Polícia Federal como as instituições mais confiáveis no Brasil.
Em 2018, as Forças Armadas tinham uma aprovação de 62% em comparação aos 13% da Presidência e 18% do Congresso. Essa reputação, no entanto, agora corre o risco de ficar manchada pelos muitos oficiais da ativa e da reserva que estão ao lado de Bolsonaro no governo – especialmente à medida que a crise da covid-19 se aprofunda.
“Eles estão fazendo política pelo medo”, diz Eduardo Costa Pinto, especialista em estudos militares na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Este é o problema de se ter um governo repleto de pessoal militar durante uma crise institucional. Os militares lutarão com unhas e dentes para ficar no poder. E eles têm armas, o que torna a mediação política difícil.”
A própria carreira militar de Bolsonaro se caracterizou pela controvérsia. Ele passou 15 dias em uma prisão militar por insubordinação, após criticar seus oficiais superiores em entrevista à revista “Veja” em 1986. Um ano depois, a mesma revista o acusou de planejar um atentado a bomba contra unidades militares – uma acusação que o Superior Tribunal Militar acabou considerando infundada.
O general Ernesto Geisel, que presidiu o país de 1974 a 1979 durante a ditadura militar, certa vez descreveu Bolsonaro como um “mau militar”. Ele deixou o Exército como capitão em 1988 e em 1991 iniciou a carreira política como deputado pelo Rio de Janeiro, onde seu foco praticamente único foi proteger os interesses das Forças Armadas e da Polícia Militar estadual.
Quando se candidatou à presidência em 2018, ele foi apoiado por centenas de milhares de soldados e policiais, que compartilhavam de seus valores conservadores e aplaudiam sua atitude de falar sem rodeios sobre quase todos os assuntos, desde questões de raça até de sexualidade.
“Vemos ele como um salvador. Ele é um ícone. Ele é o cara”, diz um soldado de 20 anos, que falou sob condição de não ter o nome revelado. “Praticamente todos nós o apoiamos. Eu diria que 95% de nós”, diz um oficial.
Quando foi eleito, o presidente recompensou sua base de apoio e recheou o governo federal de nomes militares, mais notavelmente generais da reserva – o que, de imediato, desencadeou temores quanto a uma ressurgência dos militares na vida política e civil.
“Com Bolsonaro, os esforços para reafirmar a proeminência civil sobre a militar ficaram paralisados”, diz Carlos Fico, professor de estudos militares na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Isso mostra a grande fragilidade da democracia brasileira.”
Os comentários são similares aos de Alcides da Costa Vaz, diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, para quem os militares se tornaram um pilar de apoio ao presidente, embora isso tenha jogado uma “nuvem de incerteza sobre as intenções políticas deles”.
Para alguns observadores, a situação lembra à da Venezuela socialista. Desde a tentativa de golpe de Estado em 2002, que tirou brevemente o falecido Hugo Chávez do poder, ele próprio um paraquedista militar, o governo do país foi recheado de generais leais, em uma tentativa de criar o que o atual presidente Nicolás Maduro, um civil, chama de “união cívico-militar”. Analistas dizem que os militares garantem que o obscuro governo de Maduro mantenha o controle social, em troca de conseguir acesso a preferencial a mercadorias e a moedas fortes.
A escalada das preocupações no Brasil motivaram uma investigação judicial, de forma que o Tribunal de Contas da União (TCU) agora investiga uma “militarização excessiva do serviço público civil”. “Considero importante que a sociedade saiba exatamente quantos militares, ativos e inativos, ocupam atualmente cargos civis, dados os riscos de desvirtuamento das Forças Armadas que isso pode representar, considerando seu papel institucional e as diferenças entre os regimes militar e civil”, disse Bruno Dantas, ministro do TCU que preside o caso, em junho.
Os temores em torno à influência dos militares têm sido exacerbados pelo silêncio de seus atuais líderes. Acredita-se que muitos militares de alta patente na ativa não compartilham do mesmo entusiasmo por Bolsonaro que os oficiais mais jovens, mas eles têm pouco se manifestado diante dos excessos do presidente. “Nas fileiras mais altas, há oficiais que veem os militares como uma força de defesa e não gostam dessa incursão na política. Mas são esses líderes militares que agora precisam dissipar os temores”, diz Costa Vaz.
Como a liderança militar atual não se pronuncia muito, a atenção acaba ficando voltada às atitudes dos generais da reserva que agora fazem parte do gabinete ministerial de Bolsonaro, como Augusto Heleno, o assessor de segurança nacional, que em maio aparentemente ameaçou as autoridades judiciais ao alertar para “consequências imprevisíveis” para a estabilidade da nação como resultado dos esforços para investigar o presidente brasileiro por corrupção.
Jungmann, ex-ministro da Defesa, comentou essa falta de comunicação. “O problema é que há muitos ministros que também são generais da reserva, então a tendência é interpretar o que eles dizem como sendo o discurso da instituição militar”, diz. “Mas esse não é o caso. As Forças Armadas estão sendo usadas para propósitos políticos.”
O professor Costa Pinto destaca que alguns dos generais se juntaram ao governo Bolsonaro por pensar que poderiam moderar as atitudes de seu antigo subalterno e unir o país, que estava profundamente dividido entre as bases da esquerda e da direita. “Bolsonaro era apelidado de ‘o cavalo’ porque todos achavam que poderiam cavalgá-lo sempre que quisessem – eles pensavam que poderiam controlá-lo”, disse. “Agora, ficou óbvio que esses generais são subservientes ao presidente.”
Ao longo de sua carreira, Bolsonaro nunca escondeu sua admiração pela ditadura brasileira. Durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, ele dedicou seu voto a um dos mais conhecidos torturadores do governo militar. “Quem decide se um país vai viver numa democracia ou ditadura são as Forças Armadas”, disse ele certa vez ao “Financial Times”.
Sua retórica, no entanto, começou a se transformar em ações nos últimos meses, quando se juntou a comícios que defendiam a intervenção militar para fechar o Congresso e o STF. Alguns de seus seguidores adotaram uniformes paramilitares. O próprio Bolsonaro chegou a um comício a cavalo, uma clara alusão ao “caudilho” – o líder forte – que é tradição na história latino-americana.
As tensões chegaram tal ponto, que Celso de Mello, ministro do STF, disse que a situação do Brasil era similar à da Alemanha da República de Weimar e que o presidente estava tornando o país uma “abjeta ditadura”.
No Brasil, alguns mais próximos às Forças Armadas defendem com veemência que os militares devem ter imparcialidade política. “Estou absolutamente convencido de que hoje não há possibilidade de intervenção militar”, diz Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa nos governos esquerdistas de Luiz Inácio Lula da Silva e de Rousseff. “O comprometimento dos militares hoje é com o processo democrático.” Três militares da ativa fizeram comentários na mesma linha.
Analistas civis destacam que os militares deveriam ter respondido com firmeza quando Bolsonaro disse que a Forças Armadas não aceitariam “ordens absurdas” do STF. Ainda assim, em última análise, muitos acreditam que os militares não apoiariam tal descumprimento de ordens.
“Se Bolsonaro ignorasse uma decisão do supremo tribunal, seu governo perderia legitimidade e isso significaria o fim do Estado de Direito. O impacto nas instituições brasileiras seria devastador”, diz Hussein Kalout, secretário de Assuntos Estratégicos no governo Temer. “Alguns militares podem gostar disso, mas sua posição é irrelevante. As Forças Armadas, como instituição, não apoiariam isso.”
Os comentários são endossados por um general do Exército, para quem o presidente constantemente testa os limites, mas ainda não os ultrapassou. “A história política do presidente Bolsonaro tem sido de tensão permanente”, diz. “Mas as Forças Armadas seguirão a lei, como têm feito há muito tempo.”
Eixo da Ordem Militar sem Eixo do Progresso Político, Social e Econômico publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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