A pandemia agravou e antecipou uma situação prevista para a próxima década: operários da indústria automobilística perderem o emprego em massa. Além do processo de robotização da linha de montagem de veículos, houve uma nova onda de demissões na indústria de autopeças e das montadoras por conta da queda da demanda por automóveis zero Km e excesso de oferta de usados, utilizados como espécie de reserva de valor para uma situação emergencial como a atual.
Entre 2013 e 2019, mais de 28 mil vagas foram eliminadas nas fábricas de veículos. Elas hoje empregam 104 mil. Nas últimas três décadas, a quantidade de veículos produzidos por empregado revela ter aumentado a produtividade. Em 1979, cada trabalhador foi responsável pela montagem de 8 veículos. Em 1999, a quantidade de veículos produzidos por empregado saltou para quase 15 e, passados mais duas décadas, em 2019, ficou em 26.
Nesses anos, respectivamente, os números de operários foram 127 mil no auge do movimento sindicalista do ABC paulista (1979), quando houve a emergência do Lula e do PT, caiu para 85 mil no início do fim da primeira Era Neoliberal (1999). Elevou-se novamente para 126 mil, no fim da Era Socialdesenvolvimentista (2014), quando se vendeu 3,5 milhões veículos no Brasil. No início do esperado fim da segunda Era Neoliberal (2019), caiu para 107 mil, sendo 2,8 milhões veículos vendidos.
As fábricas no Brasil têm capacidade para produzir 5 milhões de veículos por ano. A projeção antes da pandemia era passar de 3 milhões. A nova estimativa indica 1,63 milhão de veículos em 2020. A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos (ANFAVEA) prevê só em 2025 o ritmo de produção voltar ao mesmo nível de 2019.
Isto se não se propagar um programa de compartilhamento de carros elétricos de origem chinesa. “Carsharing” – como o serviço é conhecido em inglês – é um novo negócio, vinculado a uma alternativa de mobilidade sustentável em veículos de emissão zero. Sua lógica é similar à de compartilhamento de bicicletas ou patinetes.
Interessados se cadastram no sistema e, após serem habilitados, baixam o aplicativo por onde conseguem reservar e obter uma “chave virtual” para destravar e travar os veículos. É cobrada uma taxa de adesão mensal de R$ 40,00 a ser revertida em crédito para aluguel dos automóveis. O usuário paga R$ 20,00 para utilizar o carro por até meia hora. Se passar disso, é cobrada no cartão de crédito uma taxa de R$ 0,80 por minuto de uso, ou seja, R$ 24 a cada meia hora.
Provavelmente, a nova geração de trabalhadores home-office será usuária. Será racional economizar o valor do automóvel, seguro, IPVA, estacionamento, manutenção, multas, combustível, depreciação, licenciamento, seguro obrigatório. O custo de oportunidade será calculado ao comparar o carsharing com táxi ou Uber. Para viagens, alugar-se-á um automóvel por mais tempo.
Como um dos efeitos da transição da hegemonia econômica da indústria para a dos serviços urbanos, da perseguição política no atual governo federal e da elevação da informalidade, houve queda de 8,25% no número de trabalhadores sindicalizados no ano passado. Baixou para 10,567 milhões: 11,2% da população ocupada. A perda foi de 951 mil sindicalizados. São 3,836 milhões de sindicalizados a menos desde 2012.
Mais da metade dessa queda (531 mil pessoas) ocorreu no grupamento Administração Pública, Defesa e Seguridade Social, Educação, Saúde e Serviços Sociais. Com esse recorde, na série histórica iniciada em 2012, pela primeira vez esse grupo saiu da primeira posição no ranking. A taxa de sindicalização dos empregados no setor público caiu de 25,7% em 2018 para 22,5% em 2019. Não é o resultado do aparelhamento do governo por militares?
O contrato social, estabelecido informalmente em economia de mercado, é a casta dos mercadores com seus gastos em consumo e investimento gerar emprego para as demais castas de natureza ocupacional e, tentativamente, para os párias. Se não cumprir esse compromisso, a alternativa é oferecer assistência social aos excluídos dessa economia, arcando com a elevação da carga tributária progressiva.
Em transição da fase de desalavancagem financeira para a fase de política monetária “empurrar corda”, a equipe econômica ultraliberal deveria entender: a iniciativa particular não investirá nada com a enorme capacidade produtiva ociosa, dada a queda absoluta da demanda agregada. O gasto em investimento público tem de substituir a carência do gasto privado por causa das expectativas pessimistas reinantes.
A escalada das Teorias da Conspiração é um dos sintomas da crescente incerteza e do desconhecimento quanto à natureza real da ameaça sobre os excluídos. A democracia entra em colapso se a ordem econômica desmoronar devido à pandemia, à ruptura das cadeias produtivas globalizadas, à mudança climática calamitosa, ao surgimento de inteligência artificial (IA), etc. Automação e robôs provocam desemprego tecnológico.
A capacidade de aprendizado da máquina (machine learning) hoje faculta aos computadores minerar quantidades descomunais de dados à procura de padrões comportamentais aos quais nenhum humano teria como processar mentalmente de maneira direta. A IA está captando “as regras do jogo” inclusive em eleições, dirigindo as mensagens das redes sociais de ódio para segmentos específicos do eleitorado como contrapropaganda dos adversários.
O desprezo mútuo caracteriza a polarização partidária. As acusações são de avanço do fascismo, de um lado, e do ateísmo, do outro. A esquerda deseja acabar com as injustiças históricas com tolerância geral quanto a um país negro, branco, pardo, feminista, gay, transgênero, ambientalista, cosmopolita. A direita conservadora defende a supremacia branca, suburbana, provinciana, e exclusivamente heterossexual, daí homofóbica e misógina. Pretende a regressão social para restaurar os costumes religiosos de uma época anterior à do politicamente correto e à da política identitária.
Essas são agendas de costumes, mas como ficará a agenda econômica da prioritária retomada do crescimento econômico, sustentável em termos ambientais, em longo prazo? Os “sem-teto” superarão os Zé Regrinhas fiscalistas, sempre submissos à ordem?
A população atinge a idade adulta na ânsia de dar início a suas carreiras, mas está sem chances realistas de fazê-lo. Graduados viram motoristas de Uber, diplomados cavam bicos temporários, quem compõe a evasão escolar não consegue nenhum emprego. O clima de frustração de “jovens brancos raivosos”, por estarem desempregados e com baixa autoestima, é semelhante àquele acontecido após a Crise de 1929. Agora, é capaz de dar a um líder populista de direita a condução em direção ao neofascismo.
Em busca de “bode-expiatório”, a onda neofascista se caracteriza pelo negacionismo científico e anti-intelectualismo em geral. Por isso, os populistas de direita, aliados à casta dos militares e submissos à elite econômica (casta dos mercadores), abominam a elite intelectual e cultural (casta dos sábios e artistas) – e se apoiam na dissidência da casta dos sabidos-pastores, capazes de manipular o rebanho de crentes evangélicos, pejorativamente classificado como “gado” pelos adversários.
Em termos quantitativos, o ranking de renda e riqueza dessas castas espelha a raiz dessa intolerância mútua estar na desigualdade social? Examinemos os dados da última DIRPF (tabela acima).
Quando se verifica a relação entre percentuais de declarantes e parcelas de rendimentos totais, salta à vista a desigualdade entre a casta dos mercadores (tamanho 16,6% e renda 23%) e a casta dos trabalhadores (respectivamente 35,3% e 29,6%). Nas demais as proporções não estão tão distantes. Aliás, no caso da casta dos militares é exata: 2,3% para suas participações em quantidade e renda.
Observando a hierarquia dos rendimentos per capita dos demais em relação à dos 156 mil capitalistas com rendimentos de capital, inclusive aluguel, a segunda colocada é a ocupação “membro ou servidor público da administração direta federal”. Empregados de empresas estatais federais, servidores federais e proprietários de empresas privadas vêm em seguida com cerca de 2/3 dos rendimentos dos capitalistas strictu sensu.
Em rendimento per capita mensal, as castas dos trabalhadores (R$ 7.147), sábios (R$ 7.715), inativos (R$ 8.069) e militares (R$ 8.464) receberam abaixo da média geral das castas declarantes de imposto de renda (R$ 8.529). Em contrapartida, as castas dos mercadores (R$ 11.775) e dos governantes (R$ 9.158) a superaram no ano-calendário de 2018.
Em termos de profissões, as médias per capita dos 3,2 milhões declarantes “pejotizados” dão uma impressão mais realista da elite econômica brasileira. A desigualdade social por si só justifica tanto discurso de ódio dos excluídos, párias, ressentidos e raivosos?
Para finalizar, lembremos a etimologia da palavra snobbery, em português, “esnobismo”, ter sua origem na Inglaterra do século XIX. Derivou do hábito de faculdades de Oxford e Cambridge de escrever sine nobilitate (sem nobreza) ou “s.nob” ao lado dos nomes de alunos plebeus nas listas de exame para distingui-los de seus colegas aristocratas. Passou-se a classificar como esnobe qualquer pessoa capaz de demonstrar preconceito social ou cultural, discriminando outras por sua origem.
Em contraponto, é comum usar (e abusar) do argumento ad hominem no debate público. Ataca-se a identidade ou a origem da pessoa, em vez da opinião dela, com a intenção de desviar a discussão e desacreditar a proposta dessa oponente.
Excluídos Raivosos versus Elite Esnobe publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário