segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Pedalada Cambial

Alex Ribeiro (Valor, 17/08/2020) informa: o Banco Central transferiu quase R$ 400 bilhões ao Tesouro. Há dois tipos de preocupação. Uma delas é, ao pedir tanto dinheiro, o Tesouro passa uma mensagem de enfrentar dificuldades maiores para rolar a dívida pública. Outro ponto é, ao limpar a maior parte das reservas de lucros do BC com as operações cambiais (sobretudo reservas internacionais), o governo dá um sinal de enfraquecimento das fronteiras entre as autoridades fiscal e monetária.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, consultou o Tribunal de Contas da União (TCU) para saber se, devido à pandemia, uma transferência de R$ 400 bilhões se enquadraria na exigência da Lei no 13.820, de 2019. Essas operações só poderiam ser feitas quando “severas restrições nas condições de liquidez” afetassem o financiamento do Tesouro.

Devido às dificuldades de rolagem da dívida, o Tesouro usou mais de R$ 200 bilhões da Conta Única para resgatar papéis vencidos nos últimos meses e para resgatar antecipadamente.

Quando pede mais R$ 400 bilhões, o objetivo do Tesouro parece ser mostrar aos mercados ter um colchão de liquidez muito grande para atravessar um longo período de incerteza, incluindo eventuais novos picos de estresse. Para evitar sancionar os altos juros pedidos pelo mercado, a estratégia do Tesouro também tem sido encurtar o prazo da dívida pública.

Anteriormente, o Tesouro havia feito cálculos de precisar de cerca de R$ 300 bilhões do BC. O valor tão alto pode ser interpretado como um sinal de que o Tesouro poderá enfrentar dificuldades maiores do que o esperado na rolagem da dívida mobiliária.

Outro especialista de O Mercado (ave!) vê com preocupação um possível enfraquecimento dos limites entre o BC e o Tesouro estabelecido pela Lei no 13.820. Até então, havia um sistema precário de troca de chumbo entre o Tesouro e o BC. O BC transferia automaticamente os lucros ao Tesouro, por meio de uma linha no seu balanço chamada de “equalização cambial”. E o Tesouro cobria prejuízos do Banco Central automaticamente pela emissão direta de títulos.

Essa troca de chumbo foi um dos fatores que alimentaram o aumento do estoque de operações compromissadas, o que significa uma parte relevante da dívida pública estar indiretamente sendo rolada pelo BC. A Lei no 13.820 acabou com essa distorção. A partir de agora, o BC acumula os ganhos cambiais em uma conta em seu balanço e, apenas em situações bem determinadas, pode transferir os recursos para o Tesouro. O pedido feito pelo Tesouro, porém, é como rapar boa parte do tacho de uma só vez. Havia R$ 528 bilhões em reservas de resultados cambiais.

É preciso avaliar qual o montante da reserva sobrará no balanço do BC. Será adequada para atravessar eventual volatilidade cambial nos próximos trimestres?

Fabio Graner e Murillo Camarotto (Valor, 27/08/2020) informam: o repasse de R$ 400 bilhões do Banco Central ao Tesouro será uma “pedalada cambial“. Esta é a avaliação do ex-diretor do BC e economista chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Carlos Thadeu de Freitas. Na visão dele, só deveria ser repassado o resultado cambial efetivo, decorrente das vendas de dólares, e não toda a variação de valor das reservas, que pode ser revertida à frente e cujo prejuízo será coberto pelo Tesouro.

A leitura é compartilhada por integrantes do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Ministério Público de Contas. Este representou contra a operação. A visão prevalecente no TCU, contudo, é para o capitão a medida ter respaldo legal. Para a Dilma, não! Ele tem A Força (Armada)…

“O ganho cambial de reservas e swaps não é permanente, é contábil. Quando você vende o dólar físico no mercado à vista e converte em reais aí tem um ganho final. É como uma operação de ações. Aí sim o BC poderia repassar para o Tesouro”, explicou Freitas. “O ganho contábil é provisório, e você pega esse dinheiro para gastar mais, porque, embora seja só para pagar dívida, ele permite que sobre recursos para outras despesas primárias”, acrescentou.

Não há um problema de liquidez na economia brasileira, ao contrário, há sobra de recursos nos bancos. “O mercado está oversold [com sobra de recursos], tem muitas reservas e poucos títulos e isso está subindo cada vez mais”, afirma. “O problema não é de liquidez, os bancos têm muito dinheiro. O problema é fiscal, só fiscal.”

O dinheiro pode ser útil para o Tesouro, mas que o órgão não precisa ter receio de se financiar por causa dessa sobra de recursos no sistema bancário. “O dinheiro dorme nos bancos e eles têm de comprar títulos públicos”, afirmou.

Ele explica a “pedalada cambial” não é do mesmo gênero da praticada no governo Dilma Rousseff, quando bancos públicos, como BNDES e Caixa, acabaram financiando programas de governo. “A pedalada cambial é decorrente de um ganho cambial temporário. Só não será pedalada se o BC mandar seu ganho final. Tinha que esperar um pouco mais.”

No TCU, ao acompanhar a operação de transferência do lucro do BC, há uma dupla interpretação sobre o seu caráter legal. Auditores avaliam a transação configurar, sim, financiamento ao Tesouro, vedado, portanto, pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Argumentam, porém, que a transação está amparada em lei. O próprio TCU já tem acórdão atestando a regularidade da transferência.

Um dos principais golpistas, responsáveis pelo processo das pedaladas de Dilma no tribunal, o auditor Antônio Carlos Costa D’Ávila, hoje premiado com carguinho na Câmara dos Deputados, contesta a constitucionalidade da lei e foi voto vencido quando o plenário TCU autorizou os repasses, em 2011.

Ele também acha a transferência ser meramente contábil e só seria efetiva se o lucro cambial já tivesse sido transformado em reais, por meio da venda da moeda. Ex-colegas do TCU concordam conceitualmente, mas admitem a operação ser necessária do ponto de vista fiscal. Dificilmente poderia ser contestada. Afinal, dar um golpe na aliança entre a casta dos trabalhadores e a a casta dos sábios é mais fácil se comparado a dar um golpe na aliança entre a casta dos mercadores e a casta dos militares…

“Só se o Supremo Tribunal Federal reconhecesse a inconstitucionalidade da lei antes da transferência ser efetuada”, disse um auditor. Mesmo nesse cenário improvável, a transação estaria respaldada no Orçamento de Guerra, que flexibilizou algumas exigências da LRF.

Ainda assim, o procurador de contas Lucas Furtado entrou com uma representação solicitando ao TCU acompanhar a transferência com vistas a evitar uma nova “pedalada”. Ele argumenta, apesar dos inegáveis efeitos da pandemia, o governo tem ampliado os gastos com fins “eleitoreiros”. Isso deve ser considerado ao analisar as reais necessidades do Tesouro.

É preciso distinguir a parte contábil (patrimonial) da parte “realizada” do ganho das reservas. Na parte realizada, deveria efetivamente fazer a transferência para o Tesouro. É como uma privatização. Na parte patrimonial, é preciso zelar pelo motivo reclamado pelo BC por muito tempo: a parte contábil oscila muito. Por isso que foi criada a reserva de resultado do BC.

O envio de parte do ganho cambial efetivo já representaria ajuda importante ao Tesouro, porque neste ano já foram vendidos quase US$ 20 bilhões e, em 2019, mais de US$ 30 bilhões das reservas. O Tesouro tem feito a política de encurtamento da dívida, não tem aceitado rolar todo vencimento. Nesse processo, qualquer recurso ajuda e dá conforto para ele atuar.

Seria bom o BC efetivamente usar seu poder de atuação no mercado de títulos, adquirido neste ano com a pandemia, para atuar na parte longa da dívida pública, contendo a alta dos juros. O BC está demorando muito para atuar na parte longa da dívida. Ele tem muito mais poder de fogo e ao garantir liquidez influencia o juro longo, o que tem se chamado de ‘quase administração da dívida pública’.

Nesse quadro de incertezas, em um ano de bastante volatilidade, o mercado de câmbio ainda deve sofrer uma nova onda de compras de dólares pelos principais bancos do país. Com base nos dados mais recentes sobre o tamanho de suas carteiras no exterior, essas instituições ainda devem adquirir cerca de US$ 15 bilhões até o fim do ano para se adequar a novas regras de tributação e ajustar o tamanho do “overhedge”.

O overhedge representa uma proteção adicional mantida pelos bancos em suas carteiras por questões tributárias para contrabalançar suas alocações em ativos no exterior. Quando essas instituições mantêm aplicações em dólares lá fora, elas precisam também carregar posições contrárias ainda maiores no Brasil. Por isso, seria um hedge excedente com posições vendidas na moeda americana aqui.

No entanto, com as novas regras encabeçadas pelo Banco Central, o overhedge poderá ser reduzido pela metade neste ano e zerado em 2021. Isso resultaria em compras de dólares no Brasil, depreciação da moeda nacional e valorização das reservas cambiais contabilizada em reais. Esse ganho será transferido para o Tesouro Nacional.

Nos últimos meses, os bancos adquiriram volumes expressivos da moeda americana para calibrar o tamanho da proteção cambial referente a suas carteiras de ativos no exterior. Esse movimento ajudou a pressionar o câmbio, chamando atenção de investidores e do próprio Banco Central.

O ajuste recente ainda não se refere ao impacto causado pela mudança de tributação, afetando o overhedge, mas um reequilíbrio da posição cambial dos bancos. Eles têm diminuído suas carteiras fora.

Bradesco, Itaú Unibanco, Santander e Banco do Brasil reduziram seu patrimônio líquido (PL) lá fora de aproximadamente US$ 55 bilhões na virada do ano para US$ 36 bilhões no fim do segundo trimestre. Isso resulta na redução da posição vendida em dólar no Brasil. Esta é usada no hedge para contrabalançar a posição comprada na moeda americana lá fora. Na prática, é uma operação de compra de dólares aqui no Brasil.

A queda de aproximadamente US$ 21 bilhões em investimentos lá fora no primeiro semestre implicaria um desmonte teórico de cerca de US$ 17 bilhões em overhedge. O montante de hedge a ser desfeito até o fim de dezembro chega aos US$ 15 bilhões.

Cada instituição tem sua forma de gerir o overhedge: alguns bancos carregam até o vencimento, outros fazem gestão mais ativa. O fato de o diferencial de juros ser baixo e a legislação ter mudado desincentivam sua manutenção. No entanto, isto não é suficiente, por si só, para levar os bancos a quererem zerar rapidamente essa posição que, no fim, ainda traz algum retorno.

O diferencial de juros mais baixo contribui para a redução do patrimônio líquido lá fora e isso pode continuar ocorrendo no segundo semestre de forma mais gradual. Foram comprados US$ 17 bilhões no primeiro semestre referentes à redução de patrimônio, em uma operação muito concentrada no segundo trimestre. Agora, os bancos devem comprar mais US$ 15 bilhões no fim do ano por causa da adequação à nova lei. Mais US$ 15 bilhões devem acontecer em dezembro de 2021. Tudo isso considerando os números de hoje de patrimônio líquido. Eles ainda podem mudar.

Em 2020, o dólar acumula alta de 35,40% contra o real. Isso corresponde a uma desvalorização cambial de 26,15% no Brasil, sendo a perda mais intensa entre as principais divisas do mundo.

Analistas afirmam fatores técnicos, como a compra de dólares pelos bancos e o cenário de juros baixos, acabam pressionado o câmbio. No entanto, outros fatores relevantes como a discussão sobre gastos públicos e as eleições nos Estados Unidos, por exemplo, serão primordiais para definir os rumos do câmbio.

Esses fatores afetam muito a dinâmica do dólar, o interesse dos estrangeiros e a busca por proteção. A compra de US$ 15 bilhões pelos bancos em dezembro é grande, mas o movimento também pode ser suavizado por atuações do Banco Central caso veja necessidade.

Pedalada Cambial publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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