quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Revoltados e Furiosos: Nova Direita Estúpida e Esperta

Segundo Giuliano Da Empoli, em seu livro “Os Engenheiros do Caos” (tradução Arnaldo Bloch. 1ª. ed. São Paulo: Vestígio, 2019), para os novos populistas de direita da política massiva para os ressentidos, o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los, mesmo à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos.

Cultivando a cólera de cada um sem se preocupar com a coerência do coletivo, o algoritmo dos engenheiros do caos dilui as antigas barreiras ideológicas e rearticula o conflito político tendo como base uma simples oposição entre “o povo” e “as elites”.

No caso do Brexit, assim como nos casos de Trump e da Itália, o sucesso dos nacional-populistas se mede pela capacidade de fazer explodir a cisão esquerda/direita para captar os votos de todos os revoltados e furiosos, e não apenas dos fascistas.

Naturalmente, como as redes sociais, a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas. Essas garantem a maior participação, daí o sucesso das fake news e das teorias da conspiração.

Mas tal tipo de comunicação possui também um lado festivo e libertário, comumente desconhecido de quem vê unicamente a faceta sombria do Carnaval populista. O escárnio vem sendo, desde então, a ferramenta mais eficiente para dissolver as hierarquias.

Durante o Carnaval, um bom e libertador ataque de riso é capaz de enterrar a ostentação do poder, suas regras e suas pretensões. Nada mais devastador para a autoridade confrontar com o impertinente. Ele a transforma em objeto de ridículo.

Diante da seriedade programática do poder, do tédio arrogante emanado de cada um de seus gestos, o bufão transgressor à la Trump, ou a explosão contestatória dos Gilets Jaunes – os Coletes Amarelos franceses – liberam as energias negativas reprimidas antes pela vergonha da ignorância perante os sábios. Os tabus, a hipocrisia e as convenções da língua desmoronam em meio às aclamações da multidão em delírio.

Durante o Carnaval populista, não há lugar para o espectador. Todos participam juntos da celebração desvairada do mundo ao avesso, e nenhum insulto ou piada é vulgar se contribui para a demolição da ordem dominante e sua substituição por alguma dimensão de liberdade e fraternidade.

O Carnaval populista produz, em quem dele participa, uma intensa sensação de plenitude e de renascimento – o sentimento de pertencer a um corpo coletivo composto de velhos ressentidos pelo obscurecimento desde o fim da ditadura militar no Brasil. Ele se renova.

De espectador, cada um, seja o velho militar-guerreiro e suas companheiras, seja o/a jovem bombado(a) em academia de fisiocultura e pouca cultura, todos se tornam atores, sem nenhuma distinção baseada em grau de instrução. A opinião do primeiro passante estúpido vale tanto quanto, ou talvez mais, em comparação à inteligível emitida por expert.

A máscara coletiva se mudou para a internet, onde o anonimato tem o mesmo efeito de desinibição que, tempos atrás, nascia no momento de se vestir uma fantasia para pular anônimo no Carnaval de rua. Os trolls jogam gasolina no fogo libertador do Carnaval populista.

Nesse clima, não há nada mais inconveniente senão interpretar o papel do espírito de porco. O fact-checker a demonstrar o erro com caneta de marcador vermelha, o liberal com a sobrancelha elevada de indignação contra a vulgaridade dos novos bárbaros, todos são repudiados pelos estúpidos felizes em encontrarem seus pares vestidos de camisas da seleção brasileira, a CBF reconhecidamente corrupta.

“É por isso ser da esquerda é ser tão infeliz”, diz Milo Yiannopoulos, “ela não tem a menor tendência à comédia e à celebração”. Aos olhos do populista em estado festivo, o progressista é um pedante com o dedo mindinho empinado. Seu pragmatismo virou sinônimo de fatalismo, enquanto prometem dinamitar a realidade existente.

A vida não é feita de direitos e deveres, de números a serem respeitados e de formulários a preencher. O novo populismo de direita não se afina com o senso comum – ele tem sua própria lógica, mais próxima daquela de um carnaval em lugar de uma sala de aula, mais ávida de corpos e imagens em vez de textos e ideias, mais concentrada na intensidade da narrativa em substituição na exatidão dos fatos.

Uma razão com certeza muito distante das abstrações cartesianas – mas não desprovida de uma coerência inesperada. Esta se refere à sua maneira sistemática de revirar as normas consolidadas para afirmar outras, de sinal contrário.

Por trás do aparente absurdo das fake news e das teorias da conspiração, oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda. Contrariamente às informações verdadeiras, elas constituem um formidável vetor de coesão.

Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade. Afinal, este possui um uniforme, está em um exército.

Assim, o líder de um movimento conservador-populista agrega as fake news à construção de sua própria visão de mundo. Ele se destaca da manada dos comuns.

Não é um burocrata pragmático e fatalista como os outros, mas um homem de ação. Ele constrói sua própria realidade para responder aos anseios de seus discípulos.

As mentiras têm a dianteira, pois são inseridas em uma narrativa política capaz de captar os temores e as aspirações de uma massa crescente do eleitorado. Enquanto isso, os fatos revelados por quem as combatem inserem-se em um discurso não mais tido como crível.

Na prática, para os adeptos dos populistas, a verdade dos fatos, tomados um a um, não conta. O que é verdadeiro é a mensagem, no seu conjunto, corresponder a seus sentimentos e suas sensações.

Diante disso, é inútil acumular dados e correções, se a visão do conjunto dos governantes e dos partidos tradicionais continua a ser percebida por um número crescente de eleitores como pouco pertinentes em relação à realidade.

Para combater a grande onda populista é preciso, primeiro, compreendê-la e não se limitar a condená-la ou liquidá-la como uma nova “Idade da Desrazão”.

O Carnaval populista de direita contemporâneo se alimenta de dois ingredientes que nada têm de irracional:

  1. a cólera de alguns meios populares, fundamentada sobre causas sociais e econômicas reais; e
  2. uma máquina de comunicação superpotente, concebida em sua origem para fins comerciais, transformada em instrumento privilegiado de todos aqueles cuja meta é multiplicar o caos.

Se Giuliano da Empoli escolheu, para este livro, “Os Engenheiros do Caos”, se concentrar no segundo aspecto, não é de modo algum para negar a importância das fontes reais da revolta. As ações dos Engenheiros do Caos não explicam tudo, longe disso.

O que torna tais personagens interessantes, além do fato de terem sabido captar antes dos outros os sinais da mudança em curso, é a forma pela qual se aproveitaram disso para avançar da margem para o centro do sistema. Para o bem e, sobretudo, para o mal, suas intuições, suas contradições e suas idiossincrasias são aquelas características marcantes do nosso tempo.

Revoltados e Furiosos: Nova Direita Estúpida e Esperta publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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