Carlos Góes é pesquisador-chefe do Instituto Mercado Popular. Góes (Valor, 03/09/2018) publicou um artigo há dois anos com a tabela acima, interessante para guardar neste blog pessoal, um banco de dados compartilhados. Demonstra o ressentimento de gente do setor privado com o pessoal do setor público ou “por que eu não estudei para conseguir passar em concurso público?”
“Em setembro, o pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu aumentar o salário de seus ministros em 16,4%, elevando o teto salarial dos funcionários públicos para mais de R$ 500 mil por ano. Se confirmada pelo Congresso, a decisão deve gerar um efeito cascata sobre todo o funcionalismo, com demandas por reajustes em diversas carreiras. Para além do impacto fiscal, ao privilegiar servidores públicos federais, que são relativamente mais ricos do que o restante da população, essa decisão aumentará a desigualdade de renda no Brasil.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio, do IBGE, cerca de 6 em cada 10 servidores federais estão entre os 10% mais ricos do Brasil. No setor privado, apenas um em cada 10 está entre os 10% mais ricos. De acordo com os números das declarações de Imposto de Renda de Pessoa Física, que refletem com mais precisão os rendimentos dos muito ricos, sete entre as dez ocupações com maiores rendimentos totais estão ligadas ao governo.
O impacto do funcionalismo no incremento da desigualdade de renda no Brasil não é um fenômeno recente. Ao analisar dados da última Pesquisa de Orçamento Familiares, de 2008, Marcelo Medeiros e Pedro Souza, pesquisadores do Ipea, concluíram que, combinados, salários e aposentadorias do setor público explicam cerca de um terço da desigualdade de renda no Brasil – ou seja, caso essas transferências não existissem, a desigualdade de renda no Brasil seria 33% menor do que é.
Isso se explica parcialmente pelo fato de que servidores federais tendem a ser mais escolarizados do que os trabalhadores do setor privado – isto é, eles já tenderiam a ganhar mais, por terem maior qualificação, mesmo que trabalhassem no setor privado. Contudo, mesmo quando comparamos servidores públicos federais a trabalhadores do setor privado que têm características educacionais, regionais, demográficas, gerenciais e laborais similares, aqueles ganham aproximadamente o dobro do que ganhariam no setor privado – conforme demonstra estudo de Naércio Menezes e Gabriel Nemer, do Insper. A conclusão, portanto, é que o mesmo trabalhador recebe um “prêmio” salarial simplesmente por mudar do setor privado para o setor público.
Na última década, esse hiato existente entre os setores público e privado aumentou. Entre 2004 e 2015, enquanto o salário real – ou seja, já descontada a inflação – dos trabalhadores do setor privado subiu cerca de 20%, no setor público esse aumento foi de aproximadamente 40%. Tal diferencial é explicado, em grande medida, pelas distintas dinâmicas na definição de salário nos dois setores. No setor privado, os aumentos no salário real estão limitados pelos ganhos de produtividade (em economês, limitados pelo “produto marginal do trabalho”) e pelo poder de barganha de firmas e sindicatos na negociação salarial. Já no setor público, essa definição é essencialmente política.
Sindicatos fortes aproveitaram uma década de prosperidade econômica para garantir salários mais altos para seus representados. E, conforme esperado, esse aumento substancial no salário do funcionalismo público teve impactos importantes sobre a desigualdade de renda. Em trabalho publicado pelo Fundo Monetário Internacional, eu e minha co-autora estimamos que, caso o salário real do funcionalismo público não tivesse aumentado entre 2004 e 2014, a queda na desigualdade de renda teria sido aproximadamente 30% maior do que o observado no período.
Naquele período, esses aumentos substanciais no salário do funcionalismo público contribuíram para atenuar a redução na desigualdade de renda que foi capitaneada pelo crescimento econômico, pelo aumento da formalização no mercado de trabalho, pelo aumento da escolaridade dos mais pobres e por programas sociais como o Bolsa Família. Tal impacto direto de atenuação na queda da desigualdade também é perpetuado no tempo, pois o efeito de aumento da desigualdade existe não somente no presente, mas também sobre todos os salários e aposentadorias futuras.
Atualmente, quando o país ainda está saindo da mais grave recessão econômica dos últimos 80 anos e em que há uma restrição orçamentária muito forte, há também um efeito indireto que é muito relevante. Como o orçamento do governo é limitado, quanto maior for a parte do orçamento direcionada ao financiamento de salários e aposentadorias do setor público, menor será a disponibilidade de recursos para outros fins que beneficiam diretamente os mais pobres e ajudam a reduzir a desigualdade de renda, como gastos com assistência social, com saúde e com educação básica.
Por isso, se no momento de boom econômico o efeito dos aumentos salariais do funcionalismo foi de atenuação na queda da desigualdade, no momento atual, em que há menor presença das outras forças que ajudam a reduzi-la, se essa mudança de fato ocorrer, o efeito líquido esperado é um aumento da desigualdade de renda.
Enquanto um brasileiro típico vive com pouco mais de R$ 2 mil reais por mês, juízes, desembargadores, promotores e procuradores, que seriam os primeiros beneficiários dessa mudança, conseguiram manter seus rendimentos mensais ao redor de R$ 55 mil durante todo o período entre 2007 e 2016, já descontada a inflação do período. Ao contrário do que foi argumentado pelas associações de representação de classe que estavam engajadas com esse tema, quando considerados todos os rendimentos dessas categorias, não houve perda em seu poder de compra, de acordo com dados da Receita Federal.
Sob o pano de fundo de uma recessão que ainda está reduzindo a renda dos mais pobres, as escolhas de políticas públicas precisam equilibrar os objetivos igualmente importantes de sustentabilidade fiscal e equidade na distribuição de renda. A crise trouxe para primeiro plano a necessidade de diversas reformas cuja realização tem altos custos políticos. Por isso, preservar os avanços de maior equidade, alcançados na última década, será essencial para garantir apoio social para essas reformas.
Tomar uma decisão que tem impacto negativo tanto sobre a sustentabilidade fiscal quanto sobre a distribuição de renda não parece a escolha mais adequada. Além de piorar o saldo das contas do governo, a elevação do teto salarial de servidores seria uma política de Robin Hood às avessas: aquela que tira dinheiro do contribuinte, que é relativamente pobre, e o transfere para aqueles que, como boa parte dos juízes e procuradores, já ocupam o 0,5% mais rico do país.”
Por que eu não estudei para ser aprovado em concurso público?” publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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