Robinson Borges (Valor, 14/08/2020) entrevista Maria Rita Kehl. Ela relança, pela Boitempo, seu livro “Ressentimento”, em edição atualizada.
“O ressentimento venceu aquilo que, algum dia, foram nossas melhores esperanças.” É com essa frase que a psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl encerra o novo posfácio de “Ressentimento”, livro que ganha edição atualizada pela Boitempo. Para chegar até a esse ponto final, a autora percorreu sua experiência psicanalítica, a filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Baruch Spinoza (1632-1677) e os campos literário e político.
O ressentimento não é um conceito psicanalítico, mas surge frequentemente na clínica. Para a autora, o ressentido não suporta a condição, de todos nós, de ser um sujeito dividido. Ele entra em dúvida, se ilude e se engana. Então, ignora o desejo constituinte de si.
“Para não ter de deparar com sua divisão subjetiva, o ressentido escolhe um culpado a quem atribuir seu infortúnio”, escreve. Ao não assumir a responsabilidade sobre a própria situação, o ressentido buscaria uma vingança “imaginária e adiada”.
Mas a constelação afetiva do ressentimento iria além do desejo de vingança. Seria a soma de rancor, raiva, maldade, ciúmes, inveja e malícia, na definição do filósofo Max Scheler (1874-1928). “Uma conjunção maligna, portanto, na qual o desejo de vingança exerce um papel predominante; a palavra ‘ressentimento’ indica que se trata de uma reação – mas, se esta reação tivesse sido posta em ato, ainda que fosse um ato de palavra, o sentimento de injúria ou agravo teria sido aplacado”, observa Maria Rita.
Da longa jornada intelectual por essa constelação de afetos, a psicanalista paulista destaca a atualidade do ressentimento, um “envenenamento psicológico” ou uma “paixão triste”, também presente nos conflitos coletivos, especialmente daqueles que não se veem como agentes da política e da vida social e que chega a impulsionar forças reacionárias.
A escritora parte da hipótese de que uma parcela dos apoiadores de Jair Bolsonaro (sem partido), por exemplo, “não conseguiu, ou não quis”, integrar as celebrações pró-democracia a partir da Lei da Anistia, em 1979, passando pelo retorno dos exilados, pelas manifestações a favor das diretas, que “não tiveram a intenção de excluir ninguém”, pelos programas de inclusão social e movimentos identitários mais recentes. “Para o machista à moda antiga, deve ser um osso duro de roer ver a alegria, a liberdade e a autossuficiência das meninas da geração do #EleNão”, escreve.
Maria Rita considera o atual presidente brasileiro um dos “grandes ressentidos” da Comissão Nacional da Verdade (CNV), da qual ela fez parte. Lembra que Bolsonaro, quando era deputado federal, interferiu numa audiência pública sobre torturados e desaparecidos políticos, em Brasília, e homenageou “um dos agentes mais cruéis da repressão de Estado durante a ditadura: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015)”.
Para ela, entretanto, o que chama atenção é que, em vez de o então parlamentar “responder pela criminosa incitação à tortura”, foi eleito para “presidir o país”.
Maria Rita vê distinções entre o que qualifica de conformismo ressentido e os movimentos de reivindicação e lutas populares, “como formas ativas de engajamento dos sujeitos sociais na ação política”. “Não nos ‘ressentimos’ com as duas ditaduras porque lutamos contra elas, mas hoje podemos dizer que os apoiadores do autoritarismo se ressentiram de ficar de fora da festa que foi a reconquista da democracia”, diz a ensaísta em entrevista ao Valor.
Também é possível identificar o ressentido como o sujeito característico de outros impasses ocorridos em muitos conflitos sociais contemporâneos. “Pode representar o estado de espírito das pessoas que se sentem ‘passadas para trás’ na luta por um lugar ao sol que caracteriza a vida profissional e social nas sociedades capitalistas. É o que ocorre quando um perdedor não se vê como perdedor, mas como ‘prejudicado’.”
Em sua análise, o ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou perdoar, mas é uma pessoa que não quer esquecer, ou “que quer não esquecer, não perdoar, nem superar o mal que o vitimou”, afirma Maria Rita, também autora de “O Tempo e o Cão”, um clássico sobre a depressão, e “Sobre Ética e Psicanálise”, entre outros livros.
Leia entrevista concedida por e-mail:
Valor: A senhora diz que o ressentimento é uma paixão, mas uma paixão triste. Que tipo de afeto é esse, qual é a sua demanda e quais são os ganhos subjetivos do ressentimento?
Maria Rita Kehl: Esse é um conceito do Spinoza – Marilena Chaui é a melhor referência no Brasil para quem quer conhecê-lo -, que não classifica moralmente as paixões, atitude inédita para um autor do século XVII. Muito brevemente: paixões alegres aumentam a potência de agir do sujeito. Paixões tristes diminuem essa potência. O ressentimento é um afeto no qual o sujeito se instala como vítima (passiva, portanto, “inocente”) de alguém. Por isso não se coloca como alguém potente para modificar sua situação. O que ele quer é acusar alguém. A demanda do ressentido é de reconhecimento de seu valor enquanto “pureza moral”, digamos. “Não reagi porque sou bom!” A aposta em um suposto ganho subjetivo, se é que isso é um ganho, é a esperança de conseguir “ganhar” o jogo, uma disputa, uma rivalidade etc., sem entrar no jogo. Aí, ele perde, claro. E acusa o outro.
Para o machista à moda antiga, deve ser osso duro de roer ver a alegria (…) e a autossuficiência das meninas da geração do #EleNão”
Valor: É possível pensar a ascensão do autoritarismo pela força da paixão triste e coletiva do ressentimento?
Maria Rita: Sim, essa é a hipótese, por exemplo, do Tzvetan Todorov (1939-2017) para entender a ascensão de [Adolf] Hitler (1889-1945) na Alemanha dos anos 30: uma classe média empobrecida pela enorme inflação que castigou o país, não suportava se ver no mesmo nível socioeconômico do proletariado, entre os quais se encontravam também muitas famílias de judeus empobrecidos. Claro que os judeus não tinham culpa dessa crise. Mas Nietzsche resume muito bem a psicologia do ressentido com esta frase: “Eu sofro. Alguém deve ser culpado por isso”. Quanto menos o sujeito assume a responsabilidade – não quero dizer a culpa, certo? – pelo seu destino, mais ele procura um bode expiatório para eventuais decepções e fracassos.
Valor: O brasileiro costumava cultivar a autoimagem de um povo alegre, que não guarda rancor. Não há uma dissociação entre essa percepção de si e o processo histórico do país, marcado pela violência?
Maria Rita: Primeiro: não acho que o brasileiro não seja alegre. Há uma informalidade nos contatos, até entre desconhecidos, uma certa afetuosidade, uma simpatia automática e mesmo uma tendência à alegria. “É melhor ser alegre que ser triste”, escreveu Vinicius de Moraes (1913-1980). Essas não são características ruins, e nem sempre se pode considerar como hipocrisia. É quase, como cantou Caetano [Veloso], um “jeito de corpo”. De quem herdamos isso? Dos portugueses seiscentistas, setecentistas? Certamente não, verdade que hoje Portugal é um país muito diferente do que foi nos séculos XVI a XIX. Paradoxalmente, herdamos dos africanos, que não foram nada felizes aqui: capturados, deportados de suas nações, escravizados… Mas a herança deles nos salvou do moralismo estreito e repressivo dos portugueses. Nossas “marcas registradas” muito valorizadas fora daqui são a alegria, a ginga, o samba, o Carnaval… O ressentimento brasileiro é mais recente. Não nos “ressentimos” com as duas ditaduras porque lutamos contra elas, mas hoje podemos dizer que os apoiadores do autoritarismo se ressentiram de ficar de fora da festa que foi a reconquista da democracia.
Valor: O ressentimento está mais escancarado?
Maria Rita: Parece que o ressentimento da classe média brasileira começou, ou pelo menos se agravou, quando, por causa do Bolsa Família e de outras pequenas conquistas do começo da era petista, os “de baixo” começaram, por exemplo, a viajar de avião! A frase “este aeroporto está parecendo uma rodoviária”, que ouvi uma vez em Congonhas, expressa bem a amargura dos que exibiam o direito de viajar de avião, por exemplo, como um privilégio de classe.
Valor: A senhora já disse que o Brasil parece ter passado muito rapidamente uma borracha sobre as feridas nacionais sofridas no longo período de governos militares. Como isso se relaciona com o apelo que um grupo pequeno, mas barulhento, faz da volta da ditadura, por exemplo?
Maria Rita: Pois é… o Brasil foi o único país, entre os que tiveram ditaduras na América do Sul, a conceder anistia igual a presos políticos e torturadores; ora,
juridicamente, os crimes praticados pelos primeiros são considerados crimes comuns. E ocorreram em número muito menor do que os perpetrados por agentes de segurança, polícia e Exército. Esses crimes perpetrados por agentes de Estado que torturaram, mataram e ocultaram os corpos de muitas vítimas, são considerados crimes de lesa humanidade. Anistiar igualmente esses dois tipos de crimes favoreceu a disseminação da malfadada “teoria dos dois lados”. Quando finalmente a presidenta Dilma [Rousseff], que foi vítima de tortura, conseguiu aprovar no Congresso a criação da Comissão da Verdade, muita gente se incomodou. Pessoas me paravam na rua para perguntar se nós não iríamos investigar “o outro lado”. De nada adiantava tentar explicar que o “outro lado” já tinha sido punido, inclusive em muitos casos com pena de morte, que, a rigor, não existe no Brasil. Meu interlocutor, em geral, virava a cara e saía “ofendido”…
Valor: Como analisar o fenômeno do “você sabe com quem está falando”, seja no caso do desembargador que humilhou o guarda civil, seja no episódio da pessoa que disse: “Cidadão, não, engenheiro civil, formado, melhor do que você!”? Trata-se de um afeto ressentido?
Maria Rita: Bem, o ressentimento pode às vezes estar misturado a outros afetos que motivam essa atitude, mas não penso que seja o fator predominante. A primeira frase, que foi mote de uma série de charges do Carlos Estevão (1921-1972) na revista “Cruzeiro”, se não me engano, é muito mais representativa do pendor autoritário que atravessa todos os escalões da sociedade brasileira, do que do ressentimento. É fruto de nossa vergonhosa desigualdade social. Nos regimes autoritários, em que todos (até os agentes da repressão) temem a autoridade acima deles, o “você sabe com quem está falando?” pode expressar o desejo de empoderamento das chamadas “baixas autoridades”. Elas são humilhadas pelos de cima e descontam nos de baixo. O síndico do prédio achincalhado pelo patrão desconta no porteiro. O sargento humilhado pelo capitão (ops) desconta no soldado raso; o guarda da rua desconta no mendigo que tenta reagir a seus desmandos, e assim por diante.
Valor: Alguns historiadores consideram que a Constituição de 1988 foi uma tentativa de mitigar os danos históricos do Brasil, mas falhou ao não reconhecer uma parcela da população que não se sentiu atendida pela utopia da Constituição. Os movimentos que apoiam medidas autoritárias e violentas são uma resposta ressentida a essas três décadas?
Maria Rita: Nossa, não sei responder a essa pergunta… nem qual teria sido a parcela da população que a Constituição desatendeu, a não ser aquela que desafiava a democracia. Mas me arrisco a dizer que o ressentimento pós-ditadura não foi causado pela Constituição, e sim pela Lei da Anistia, como argumentei, que criou a impressão de que os torturadores eram tão “inocentes” quanto os que militavam contra a ditadura. Quando a CNV desmentiu essa crença, o homem cordial, no sentido que Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) atribui a essa expressão, se enfureceu. Ninguém me convence de que não exista uma relação de causa e efeito entre os trabalhos da Comissão da Verdade – tardios, mas fundamentais! -, o impeachment injusto da Dilma por “pedaladas fiscais” (?) e a eleição de um capitão reformado cujo ídolo é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Valor: É possível recorrer à “Psicologia das Massas e a Análise do Eu”, de Freud (1856-1939), para explicar os engajamentos coletivos, valores supostamente comuns de grupos extremistas para fugir de nossa liberdade e responsabilidade de pensar, julgar e agir como sujeitos?
Maria Rita: Sim, esse é um texto fundamental para se compreender a adesão cega da massa a um líder carismático. Mas, de certa forma, esse texto pode explicar o prestígio de qualquer líder carismático, seja Bolsonaro ou Lula. O texto que melhor contempla o resultado da última eleição é “Psicologia de Massas do Fascismo”, do Wilhelm Reich (1897-1957). Mesmo assim, o argumento central dele caiu: ele pensava que o caráter do fascista era moldado, entre outras coisas, pela repressão sexual. Depois dos movimentos libertários de maio de 68, mesmo que tenham chegado mais tarde aqui, já não podemos mais relacionar a adesão ao autoritarismo à repressão sexual. No entanto, em um livrinho mais modesto – “Escuta, Zé Ninguém!” -, Reich, sem nomear assim, associa a adesão ao nazismo ao sentimento de insignificância das classes médias baixas, os Zé Ninguém, do título.
Valor: A senhora considera possível que o ressentimento, como um afeto passivo que é, seja uma das condições da tolerância do brasileiro ao alto grau de violência do país?
Maria Rita: Não, não creio que seja uma condição. Mas certamente é uma consequência. Não devemos nos iludir: mesmo quem nunca apanhou da polícia, mesmo quem se acostumou a se safar subornando as autoridades, se ressente com o país pouco civilizado que ajudou a criar. A nota incivilizada no Brasil não vem dos pobres – excluo os criminosos, claro, mas estes existem em todas as classes sociais, de Doca Street a Suzane von Richthofen. A nota incivilizada começa com o genocídio indígena, continua com maior gravidade nos três séculos de escravidão, se agrava com a abolição que jogou milhares de ex-escravizados nas ruas sem nenhuma reparação, nenhum auxílio do governo para começar a vida… Por que existem tão poucos descendentes de africanos de classe média no Brasil, ao contrário dos EUA? Porque aqui os escravizados foram jogados nas ruas, abandonados à própria sorte. E olhe que ainda devemos a esses desamparados alguns traços notáveis de nossa cultura, como o samba, a capoeira, o candomblé… e o que é menos evidente para nós: uma liberdade corporal, uma informalidade no trato com estranhos etc., que certamente não foram heranças portuguesas. Enfim, nossa barbárie vem mais da elite que suborna, da polícia que mata, dos brancos que segregam e sonegam, do que dos pobres em geral.
Valor: Gilberto Freyre (1900-1987) e, mais tarde, Darcy Ribeiro (1922-1997) escreveram que o Brasil não reconhece sua identidade porque sempre tentou apagar o passado colonial e ocultar a herança negra e indígena. Como esse dado da nossa sociedade se relaciona com os movimentos identitários no Brasil?
Maria Rita: Não vejo relação. Os movimentos identitários – de mulheres, negros e homossexuais – não reivindicam uma identidade para o país. Reivindicam o reconhecimento e o respeito pelos lugares diferentes que ocupam em relação a uma suposta maioria branca, “civilizada” (como se os indígenas não fossem) e supostamente heterossexual.
Valor: Como é possível pensar o negacionismo científico? Há algo de perda da realidade ou é uma ação da denegação, esse conceito psicanalítico?
Maria Rita: Não sei responder com propriedade a essa pergunta. Mas certamente aí se combinam ignorância e má-fé. Duvido que todos os arautos do negacionismo acreditem nessa bobagem, e não penso que seja necessário apelar à psicanálise aqui. Mente quem quer, acredita quem tem medo de sair da suposta “zona de conforto” promovida pela ignorância. Afinal, enquanto eu ignoro o quanto ainda não sei, não tenho por que me sentir ignorante…
Valor: Qual é a importância, para uma sociedade, que seu líder lamente os mortos do país?
Maria Rita: Um líder não é apenas alguém que “manda” no país, de preferência, submetido a instâncias democráticas como o Congresso Nacional – o atual presidente prefere comprá-los com cargos. Um líder deve ser alguém capaz de conduzir a sociedade, com políticas públicas, mas também com palavras e atitudes, colaborando para alargar o campo da solidariedade, do respeito ao outro e às leis. O atual presidente, cujo nome não gosto de divulgar além do que tem sido divulgado, não conduz ninguém além do cavalo e da moto com os quais gosta de se exibir. O que ele faz, perversamente, é incitar contra os princípios democráticos o bando de apoiadores que ainda o chamam de “Mito”. Ele é tão canalha, que agora ganha prestígio no Nordeste entre os antigos apoiadores de Lula, com a distribuição de um auxílio emergencial que há poucas semanas se recusava a implantar.
Valor: Quais têm sido as queixas mais comuns no seu consultório ao longo da pandemia? Os sintomas são novos ou eles se agravaram?
Maria Rita: Curiosamente, os sintomas mudam pouco. Acho que não atendo nenhum bolsonarista declarado. E sei que muita gente se aflige com as mortes causadas pela irresponsabilidade dos governos federal, estadual e municipal! O presidente, sem dúvida, promove mais escândalos e nos deixa num tal estado de desalento que alguns pacientes até se esforçam para não falar tanto dele, a fim de conseguirem se voltar para suas questões pessoais. Mas não é só o mandatário da nação, cujo nome também não preciso alardear demais. O governador e o prefeito de São Paulo também não se preocupam muito com os direitos humanos. Veja, por exemplo: o prefeito Bruno Covas (PSDB), no inverno passado, não mandou tirar os cobertores de moradores de rua que estariam “sujando” o largo do Paissandu? Morreram vários, de frio. Pessoas de bem deveriam se angustiar com isso, não? Mas estamos todos tão perdidos, que a notícia quase passou em branco.
[Em nota, a Prefeitura de São Paulo diz que o prefeito “nunca deu ordem para ação que violasse os direitos das pessoas em situação de rua. Ao contrário, a gestão antecipou a realização do censo de moradores de rua para aprimorar as ações voltadas especificamente para essa população”.]
Ressentimento (por Maria Rita Kehl) publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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