Segundo Giuliano da Empoli, em seu livro “Os Engenheiros do Caos” (tradução Arnaldo Bloch. 1ª. ed. São Paulo: Vestígio, 2019), “partidos xenófobos de direita existem mais ou menos em toda a Europa. Mas eles não atingem a maioria, e em geral não encontram aliados dispostos a governar a seu lado. A verdadeira especificidade italiana é o algoritmo pós-ideológico do Movimento 5 Estrelas.”
Ele colheu um terço dos votos dos italianos nas eleições graças a uma plataforma sem nenhum conteúdo político e, portanto, pronta a ser utilizada por qualquer um para chegar ao poder – seja do movimento populista de direita, seja de seus adversários pró-europeus do Partido Democrata.
O que faz da Itália, mais uma vez, o Vale do Silício do populismo é lá, pela primeira vez, o poder foi conquistado por uma forma nova de tecnopopulismo pós-ideológico, fundado não em ideias, mas em algoritmos disponibilizados pelos engenheiros do caos.
Não se trata, como em outros países, de homens políticos empregando técnicos, mas de técnicos tomando diretamente as rédeas do movimento, fundando partidos e escolhendo os candidatos mais aptos a encarnar sua visão, até assumir o controle do governo de toda a nação.
Surgiu do encontro da besta, poderosa, mas sem saber como dar vazão à sua raiva, com o nerd frio, visionário, mas um pouco perdido no mundo real. Desse encontro de um midiático e um tecnólogo das informações surge o movimento populista, centralizado de maneira totalitária, em rede social, e destinado a se tornar o Movimento 5 Estrelas. Reúne o espetáculo, o escárnio, a cultura da internet e a revolução.
De um lado, Beppe Grillo, o comediante popularíssimo, saído das salas de espetáculo underground para chegar aos cumes da popularidade televisiva, capaz de lotar teatros em todo o país com stand-ups cheios de paradoxos, provocações e insultos, usando seu físico imponente e sua voz feroz para pregações ideológicas.
De outro lado, Gianroberto Casaleggio, preciso, silencioso, concentrado. Um gestor de 50 anos, especialista em marketing digital. Ele se apresenta como uma espécie de John Lennon pós-moderno, com longos cabelos emoldurando uma fisionomia austera sustentada por um par de óculos redondos. A perfeita síntese da estética hippie e do approach geek de onde nasceu a cibercultura californiana.
Ele não pretende, de forma alguma, ser movido por qualquer paixão política. “A política não me interessa”, garante. “O que me interessa é a opinião pública.”
Em sua posição de expert em marketing digital, Casaleggio entendeu: a internet iria revolucionar a política, tornando possível o surgimento de um movimento novíssimo, guiado pelas preferências dos eleitores-consumidores. Ele pretende, então, lançar um produto capaz de responder de maneira eficaz a uma demanda política. Os partidos existentes não são capazes de satisfazer, dada sua institucionalidade conservadora: centralizada em torno de um cacique e adepta do culto à personalidade.
Mas sabe, também, a dimensão digital, sozinha, ainda ser fria e distante demais para dar vida a um verdadeiro movimento de massa na Itália. Por isso, precisa de Beppe Grillo, um bufão contra a elite, até ser possível descarta-lo: para dotar de calor e paixão um movimento populista de direita.
Caso contrário, corria o risco de, sem esses ingredientes, continuar confinado aos geeks italianos. A força e a resiliência do futuro Movimento 5 Estrelas virão desta combinação inédita: o populismo tradicional se casa com o algoritmo e dá à luz uma temível máquina política.
Por ora, depois de conseguir o OK do comediante, Casaleggio se contenta em lançar um blog. Desde o início o sucesso é fenomenal. Ele se tornou em algumas semanas o blog italiano mais visitado. Por trás da aparente desenvoltura do comediante já se esconde uma engrenagem perfeitamente lubrificada.
As campanhas virais a marcarem o sucesso do blog, leva-o, no espaço de alguns anos, a ser um dos mais seguidos do mundo. Todas elas nascem todas nos escritórios milaneses da Casaleggio Associati. Lá são identificados os temas atraentes, com base nos retornos dos usuários, em um processo de interação constante. Desde logo, já é o embrião dos algoritmos mais sofisticados a vir.
Nesse período, o blog surfa sobre temas populares estimulantes do ressentimento com o establishment político e financeiro: a corrupção dos homens públicos, os abusos das grandes empresas à custa dos pequenos acionistas, a precarização do trabalho.
Sobre todos esses tópicos, o blog não se limita a denunciar a situação. Ao contrário, ele propõe remédios concretos, embora simplistas, para os males apontados.
Passa a impressão simplória de a solução estaria próxima, se a Itália não estivesse nas mãos de um bando de delinquentes, direita e esquerda confundidas no mesmo bolo, agindo apenas em função de seus próprios interesses em detrimento do povo.
Em pouco tempo, começa a se desenvolver uma consistente rede de apoiadores. Eles desejam se organizar para ir além do blog.
Antes, para fazer política nos partidos, você devia necessariamente se submeter a regras e a rituais incompreensíveis para uma geração habituada à rapidez dos processos na internet:
- em primeiro lugar, você devia escolher de que lado estava, à direita ou à esquerda, quase independentemente do conteúdo;
- depois, decidir a qual partido pertence, em todos os sentidos do termo;
- em seguida, durante anos, lutar para subir degraus na administração local e, na melhor das hipóteses, procurar um ‘santo’ no Parlamento.
A mensagem do blog era, enfim, bem diferente:
- para fazer política não é preciso se inscrever num partido e esperar o resultado anos a fio;
- você pode fazer política em qualquer momento do seu dia, publicando comentários no blog ou difundindo posts na plataforma;
- assim, faz parte das coisas desde o início do processo.
Sobre a superfície dessa promessa fácil, imediata e contemporânea, e graças à virulência dos conteúdos de forte teor emotivo disseminados pela verve de Grillo, a galáxia do blog se expande de maneira vertiginosa. No início de 2007, Casaleggio festeja o primeiro milhão de comentários, enquanto os Meetup já se contam às centenas e transbordam de energia renovada e iniciativas.
Enquanto isso, o velho comando de uma coalizão capenga de centro-esquerda, recuperou o cetro do governo das mãos do velho Berlusconi, da mesma maneira ocorrida dez anos antes. A Itália parece presa na armadilha de um interminável Truman Show, no qual os mesmos atores, cada vez mais exaustos, voltam à cena para mais um giro do carrossel, em um círculo vicioso tedioso e imutável.
Dois jornalistas do Corriere della Sera publicam um livro: A Casta. Ele venderá mais de um milhão de exemplares e se tornará o manifesto de uma revolta do povo contra as elites.
Em suas páginas, revelam-se, com profusão de detalhes, todos os privilégios da casta dos políticos, do último conselheiro municipal ao presidente da república, alimentando a indignação dos eleitores, cujos comentários no blog são cada vez mais raivosos.
Casaleggio sente a hora ter chegadoou. É o momento de fazer sair da dimensão virtual o furor acumulado pelos discípulos de Grillo e lhe dar uma via física: as ruas.
Oito de setembro é uma data simbólica no imaginário italiano: marcou, em 1943, a proclamação do armistício e a capitulação diante dos Aliados. Assim, quando, no final da primavera de 2007, Grillo/Casaleggio escrevem um post inflamado chamando o “povo do blog” a juntar-se em uma manifestação de rua no 8 de setembro, é difícil ignorar as implicações de tal gesto.
“O Vaffanculo Day [o Dia do Vá se Foder], ou V-Day é um meio termo entre o D-Day do desembarque na Normandia e o V de Vingança. Será no sábado, 8 de setembro, nas praças da Itália, para lembrar: desde 1943, nada mudou. O V-Day será um dia de informação e participação popular. Para fazer parte, conecte-se no blog!”
Com seu título envolvente, a ira em estado puro, o chamado ao Vaffanculo Day viraliza em segundos e começa a se espalhar nas telas e monitores, para muito além das fronteiras dos simpatizantes dos Meetup.
Só as mídias tradicionais não se dão conta de nada. Uma semana antes da manifestação, Grillo tenta convocar uma entrevista coletiva para explicar a iniciativa, mas é forçado a cancelá-la, pois apenas um jornalista de um diário responde ao convite. Nos dias precedentes ao V-Day, a imprensa não dedica uma só linha, e os canais de TV não cedem um mísero minuto de suas antenas ao acontecimento.
Mas, no dia 8 de setembro de 2007, a Praça Maggiore, de Bolonha, está abarrotada.
Internet revoluciona a Política publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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