sábado, 29 de agosto de 2020

Terrorismo Fiscal de O Mercado

Claudia Safatle e Fabio Graner (Valor, 24/08/2020) informam: com a multiplicação do déficit público e a piora nas condições do mercado, o “colchão de liquidez” do Tesouro Nacional caiu neste ano para um patamar muito próximo do nível mínimo de segurança para a gestão da dívida pública. O limite prudencial é de cerca de três meses de vencimentos. Ainda no início da crise da covid-19, o Tesouro tinha caixa para cerca de seis meses, uma referência genérica. Ele não aponta valores diretamente.

Acendeu a luz vermelha do déficit público, cujo valor, no conceito primário (excluindo a conta de juros da dívida), é de cerca de R$ 800 bilhões, praticamente seis vezes o que era projetado antes da pandemia, de R$ 129 bilhões. O dinheiro do caixa do Tesouro Nacional está acabando.

O quadro na administração da dívida para este ano ainda não é dramático. A despeito da redução do caixa, não haverá problemas para fazer frente aos vencimentos de títulos até o fim do ano. Eles somam, na dívida interna, pouco mais de R$ 250 bilhões. Mas para os quatro primeiros meses de 2021, a situação é bem desafiadora, com ao menos R$ 443 bilhões de vencimentos previstos. Só em janeiro, o governo teria de pagar R$ 118,6 bilhões a investidores.

Os números de vencimentos, porém, devem ser ainda maiores porque esses dados são de junho, e não consideram as emissões de prazos curtos feitas nas últimas semanas, como os R$ 29 bilhões de títulos com prazo de seis meses emitidos nos leilões da semana passada.

Agora o Tesouro está à espera dos cerca de R$ 400 bilhões de resultado do Banco Central com o câmbio. Isso deverá bater na conta única em setembro. E tem risco, ainda, em cerca de R$ 170 bilhões de um projeto do deputado Mauro Benevides (PDT-CE) a respeito da desvinculação das receitas de dezenas de fundos públicos, p.ex., fundo da marinha mercante. Eles tendem a desaparecer.

O subsecretário de dívida pública do Tesouro busca administrar vencimentos, emissões e resgates para manter o nível dessa reserva acima de três meses. Caiu pela metade foi o número de meses de vencimentos do colchão de liquidez. Mas a gente trabalha para manter a reserva de liquidez igual ou acima do nível prudencial de três meses. Para os próximos três meses os vencimentos somam cerca de R$ 180 bilhões.

Gestores privados praticam terrorismo fiscal. Dizem acompanhar o dia a dia das contas do Tesouro, o que sobrou de caixa seriam apenas cerca de R$ 50 bilhões. A STN nega esse valor e argumenta haver dificuldade de os analistas fazerem as contas sobre qual o tamanho do caixa do governo em valores nominais.

Por questões estratégicas, a área nunca fala exatamente qual o número reservado para isso. Até porque, explica, esse dado tem muita volatilidade, devido ao processo de vencimento da dívida, dos níveis de rolagem, do tamanho do déficit público, entre outros fatores. Às vezes o caixa cai muito em um dia de grande vencimento, mas depois recupera.

A complexidade para calcular o tamanho do caixa é alta para quem está fora da administração, porque os movimentos de entrada e saída de recursos envolvem muitas questões de fontes de receita e despesa. O volume nominal do caixa não é exatamente oculto e está disponível no relatório resumido de execução orçamentária (RREO).

Esse dado, porém, tem defasagem. Os números mais recentes são de junho e apontavam R$ 645,8 bilhões para o colchão da dívida, em um caixa total de R$ 939,3 bilhões (que envolve recursos vinculados para outras áreas). Em dezembro do ano passado, para se ter uma ideia da evolução, a reserva de liquidez estava em R$ 750,4 bilhões e o caixa total do governo era de R$ 1,33 trilhão. Nesse período, a parte livre para usar em qualquer destinação (despesas normais, dívida e outras) passou de R$ 91,1 bilhões para apenas R$ 10,5 bilhões.

Nesse sentido, em julho o Tesouro teve um volume enorme de vencimentos, da ordem de R$ 220 bilhões, e não conseguiu renovar sua totalidade, sinalizando uma redução de caixa de cerca de R$ 70 bilhões só por esse motivo.

O ponto importante de redução da reserva de liquidez é o déficit primário. A média mensal de resultado foi negativa em quase R$ 140 bilhões nos últimos três meses, embora parte desses déficits possa ser paga com recursos de outras fontes que não o caixa da dívida.

Os déficits devem persistir em níveis elevados nos próximos meses, com as medidas de combate à crise da pandemia. A previsão para o ano é de um resultado primário negativo da ordem de R$ 800 bilhões. Seria praticamente o dobro do verificado no primeiro semestre deste ano. Assim, o caixa do governo continuará sob forte pressão.

Não se espera qualquer possibilidade de as reservas de recursos do governo zerarem, situação limite que forçaria o governo a pagar juros muito elevados e prêmios de risco adicionais até mesmo nas Letras Financeiras do Tesouro (LFT, títulos atrelados à taxa Selic).

Ela não vai zerar. No limite, vai haver um encurtamento muito forte da dívida pública federal. Emissões curtas dão tempo para o governo aprofundar ações como reformas estruturais. Talvez elas melhorem as condições de captação em mercado, com prazos mais longos e juros baixos.

O subsecretário  tem os instrumentos para evitar o nível de caixa ficar abaixo do prudencial. O nível de risco aumentaria com caixa abaixo do prudencial, mas tem as ferramentas adequadas para não deixar isso acontecer. É importante também, no próximo ano, para evitar isso, a agenda de pagamentos do BNDES ao Tesouro ser retomada.

Não há, ainda, um problema de financiamento da dívida. Se perdurar o déficit, isso poderá se transformar em problema de financiamento. Os juros se manifestam na percepção do risco fiscal. Isso é o que explica, por exemplo, a taxa Selic estar em 2% ao ano mas a taxa de juros de um título de dez anos ser de 8% ao ano. No México, para se ter uma ideia, a taxa básica de juros é de 4% ao ano e os juros para papéis com prazo de dez anos são de 5,75% ao ano.

Os temores relacionados à sustentabilidade das contas públicas brasileiras têm dominado os negócios no mercado de juros desde o início do mês e o resultado é nítido. Cada vez mais, a diferença entre as taxas de curto e de longo prazo tem aumentado, em uma evidência do aumento do prêmio de risco. No jargão do mercado, a curva de juros tem ficado ainda mais inclinada.

Entre analistas e gestores, a avaliação é essa dinâmica permanecer por enquanto. No entanto, passadas as discussões orçamentárias, a percepção de que os juros de prazo intermediário e longo têm espaço para cair tende a ganhar força.

Existe a preocupação dos terroristas fiscais de a única âncora fiscal do Brasil, o teto de gastos, ser violada em meio a pressões para impulsionar os investimentos públicos no próximo ano. Há, ainda, para incertezas quanto à extensão do programa de auxílio emergencial.

Enquanto a fragilidade das contas públicas permanece no foco do mercado, analista de mercado aposta na inclinação da curva de juros futuros, mais especificamente no intervalo entre os contratos de Depósito Interfinanceiro (DI) para janeiro de 2023 e janeiro de 2025.

Desde a virada do mês, o duelo entre Brasil e África do Sul quanto à inclinação da curva de juros tem se mostrado mais acirrado. Dados do J.P. Morgan mostram que, no fim da semana passada, a disputa ainda era vencida pela África do Sul. A diferença entre os juros dos títulos públicos sul-africanos de três meses e dez anos era de 5,72 pontos percentuais. Perto desse nível estava a curva de juros brasileira, com spread de 5,31 pontos.

No início do mês, a diferença entre os juros sul-africanos de curto e de longo prazo estava em 5,57 pontos, enquanto o spread entre as taxas brasileiras começava agosto em 4,14 pontos.

As preocupações com o risco de uma nova espiral negativa no mercado de câmbio voltaram a rondar os negócios na última semana. O dólar disparou contra o real mesmo depois da decisão da Câmara de manter o veto presidencial à possibilidade de reajuste de salários de servidores públicos – algo que, em tese, traria alívio aos investidores. Dessa forma, o movimento do mercado local ameaça ter só uma direção, sem participantes que se atrevam a entrar na mão contrária, vendendo moeda americana.

Na última sexta-feira, o dólar comercial se manteve pressionado durante toda a sessão e encerrou em alta de 1%, a R$ 5,6078. Essa foi a primeira vez desde o dia 20 de maio que a taxa de câmbio encerra acima de R$ 5,60. O movimento foi amenizado apenas com nova intervenção do Banco Central, que injetou US$ 650 milhões no mercado à vista.

Essa dinâmica foi observada durante toda a semana. O dólar acumulou alta de 3,29% no período, enquanto a autoridade monetária vendeu um total de US$ 1,79 bilhão no mercado à vista (duas atuações na quinta e outra na sexta) e US$ 500 milhões via swap cambial (em um leilão extraordinário na quarta-feira)

A dificuldade de encontrar quem atue na contraparte – com exceção do Banco Central – persiste mesmo com o real sendo um ativo extremamente depreciado na comparação com outras moedas, o que, a princípio, abre espaço para arbitragem entre elas. No ano, a moeda brasileira acumula depreciação de 28,5% – movimento que corresponde a uma alta de 39,85% do dólar por aqui. A lira turca, segunda pior divisa de 2020, tem desvalorização de 18,92% no período.

 

Terrorismo Fiscal de O Mercado publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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