Martin Wolf (Valor, 04/12/2019) escreveu o artigo abaixo.
“Está claro então que… os Estados nos quais a classe média é grande, e, se possível mais forte que as outras duas [os ricos e os pobres] juntas, ou, pelo menos, mais forte do que qualquer uma delas isoladamente, têm toda a possibilidade de ter uma constituição bem-administrada”.
Foi nesses termos que Aristóteles resumiu sua análise das cidades-Estado gregas. A estabilidade do que chamaríamos atualmente de “democracia constitucional” dependia, segundo ele, do tamanho de sua classe média. Não é por acaso que os Estados Unidos e o Reino Unido, democracias antigas e estáveis que hoje sucumbiram à demagogia, são os mais desiguais dentre os países ocidentais de alta renda. Aristóteles, sabemos agora, estava certo.
A análise de Martin Wolf do “capitalismo em prol dos ricos” concluiu: “precisamos de uma economia capitalista dinâmica que proporcione a todos a convicção justificada de que podem participar dos benefícios. O que parecemos ter cada vez mais, em vez disso, é um instável capitalismo rentista, uma concorrência enfraquecida, um crescimento débil da produtividade, alta desigualdade e, não por acaso, uma democracia cada vez mais degradada”. Em vista disso, o que devemos fazer?
A resposta não é derrubar a economia de mercado, desfazer a globalização ou deter a mudança tecnológica. É fazer o que foi feito várias vezes no passado: reformar o capitalismo. Foi essa a tese que defendi em recente debate com o ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis sobre se o capitalismo liberal deveria ser salvo ou não. Argumentei, na verdade, que “se quisermos que tudo continue como está, é preciso mudar tudo”, como escreveu o escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Se quisermos preservar nossa liberdade e nossa democracia, teremos de abraçar a mudança. Seguem-se cinco áreas de política pública a serem abordadas.
Em primeiro lugar, a concorrência. O maravilhoso livro do professor de finanças da Universidade de Nova York Thomas Philippon, “The Great Reversal: How America Gave Up on Free Markets”, demonstra o quanto a concorrência enfraqueceu nos EUA. Isso não resulta de forças inevitáveis, e sim de escolhas de política pública, principalmente do abandono de uma política competitiva dinâmica. Os mercados americanos ficaram menos competitivos: a concentração de capital é alta, os líderes estão consolidados e as taxas de lucros são exageradamente elevadas.
Além disso, essa falta de concorrência prejudicou os consumidores e trabalhadores americanos: levou à alta dos preços e à queda dos investimentos e do crescimento da produtividade. Em estudo sobre a redução da desigualdade, que faz parte da coletânea inestimável “Beyond Brexit: A Programme for UK Economic Reform”, o macroeconomista Russell Jones e John Llewellyn, ex-chefe de gabinete da OCDE, ambos britânicos, argumentam que a concentração de capital e as elevações dos preços também aumentaram no Reino Unido.
Nos últimos dez anos, Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft somadas fizeram mais de 400 aquisições no mundo inteiro. Não deveria ser concedida a empresas hegemônicas a liberdade de ação para comprar concorrentes potenciais. Tamanho poder de mercado e político é inaceitável. Uma reformulação da política pública concorrencial deveria partir do pressuposto de que as fusões e aquisições têm de ser devidamente justificadas.
Em segundo lugar, o sistema financeiro. Uma das conclusões mais impressionantes do professor Philippon é a de que o custo unitário da intermediação financeira não cai há 140 anos nos EUA, apesar dos avanços tecnológicos. Essa estagnação dos custos, infelizmente, não implicou estabilidade financeira. Há provas, além disso, de que existe hoje simplesmente um excesso de crédito e de débito. Existem soluções radicais para isso também: elevar significativamente as exigências de capitalização dos intermediários das operações bancárias, reduzindo, ao mesmo tempo, as intervenções prescritivas, baseadas em determinações legais; e, o que é essencial, eliminar a dedutibilidade dos juros nos impostos, colocando assim o financiamento de dívidas em pé de igualdade com a capitalização.
Em terceiro lugar, a empresa. A empresa de responsabilidade limitada e controle definido foi uma grande invenção, mas é também uma entidade altamente privilegiada. O foco estreito na maximização do valor de mercado da empresa exacerbou os efeitos colaterais ruins. Como argumenta o relatório “Principles for Purposeful Business”, da British Academy, “o objetivo das empresas é resolver os problemas das pessoas e do planeta de forma lucrativa, e não lucrar com a criação de problemas”. Isso é claro como água.
Ao mesmo tempo, é inútil contar apenas com a regulamentação para nos poupar das consequências do comportamento empresarial míope, especialmente quando as empresas usam seus amplos recursos para fazer “lobby” sobre a outra ponta. A US Business Roundtable (organização que reúne os executivos-chefes das maiores empresas americanas) reconheceu isso. Precisamos de novas leis, para concretizar as mudanças necessárias.
Em quarto lugar, a desigualdade. Como advertiu Aristóteles, para além de determinado ponto, a desigualdade é corrosiva. Torna a política muito mais incontrolável, mina a mobilidade social; enfraquece a demanda agregada e desacelera o crescimento da economia. O enfrentamento disso exigirá uma combinação de políticas públicas: política concorrencial proativa; ataques à elisão fiscal e à sonegação de impostos; um compartilhamento mais justo da carga fiscal do que o adotado em muitas democracias hoje em dia; mais gastos em educação, principalmente para os muito jovens; e políticas de mercado de trabalho ágeis, associadas a bons salários mínimos e a bons incentivos fiscais.
Finalmente, nossas democracias precisam de uma reforma. Talvez as preocupações mais importantes envolvam o papel do dinheiro na política e o funcionamento da mídia. O dinheiro compra os políticos. Isso é plutocracia, não democracia. O impacto maligno das “fake news” (que são o contrário do que o presidente dos EUA quer dizer com essa expressão) também está claro. Precisamos de financiamento público de partidos, de total transparência do financiamento privado e também de um emprego muito maior de comissões consultivas.
Sem uma reforma política, pouco do que precisamos em outras esferas acontecerá. Se as coisas, então, ficarem como estão, o desempenho econômico e político tende a piorar, até nosso sistema de capitalismo democrático entrar em colapso, na totalidade ou parcialmente. A causa é, portanto, relevante. A premência também. Não podemos aceitar o “status quo”. Ele não funciona e tem de mudar.
Reformar o Capitalismo Manipulado para enfrentar a fraqueza da competição, a alta desigualdade e a degradação da democracia publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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