quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Modelo econômico de “circulação dupla” na China: Regulação da Exportação de Tecnologia de Inteligência Artificial

Eva Xiao e Liza Lin (Dow Jones Newswires, 31/08/2020) informam: a China impôs novas restrições às exportações de tecnologia de inteligência artificial. Elas podem complicar a venda das operações do TikTok nos EUA, ao mesmo tempo em que intensificam a disputa tecnológica entre as duas maiores economias do mundo.

Os ministérios chineses encarregados do comércio e da ciência e tecnologia divulgaram as novas restrições para tecnologias de computação e processamento de dados e de análise de texto, recomendação de conteúdo, modelagem de fala e reconhecimento facial e de voz.

As tecnologias incluídas na lista não podem ser exportadas sem uma licença das autoridades locais de comércio. As novas restrições podem causar entraves nas negociações entre a empresa chinesa de tecnologia ByteDance e compradores em potencial, já que a proprietária do TikTok enfrenta pressão da Casa Branca para vender rapidamente as operações americanas do popular aplicativo de compartilhamento de vídeos ou será proibida de operar no país.

A agência oficial chinesa Xinhua News citou comentários de um assessor comercial do governo no sentido de a ByteDance estudar a nova lista de exportações e avaliar “séria e cuidadosamente” se deveria interromper as negociações para a venda.

A ByteDance deve seu sucesso internacional à competência da tecnologia chinesa, e fornecer algoritmos atualizados para empresas no exterior é uma forma de exportação de tecnologia, disse à Xinhua o professor Cui Fan, da Universidade de Negócios Internacionais e Economia. Não importa quem será o novo operador dos negócios internacionais da ByteDance, provavelmente haverá alguma transferência de tecnologia.

“Estamos estudando as novas regras”, disse Erich Andersen, da ByteDance. “Como em qualquer transação internacional, seguiremos as leis aplicáveis, que neste caso incluem as dos EUA e da China.”

O Ministério do Comércio chinês não respondeu aos pedidos de comentários sobre as restrições. A Casa Branca também não respondeu aos pedidos de comentários.

A Microsoft, o Walmart e a Oracle mostraram interesse no popular aplicativo, cujo sucesso se baseia nos feeds viciantes de vídeos alimentados pelo mecanismo de inteligência artificial de recomendação de conteúdo da ByteDance. As três empresas americanas não quiseram comentar o assunto.

A lista atualizada de exportações proibidas ou limitadas de tecnologia, que abrange os setores agrícola, farmacêutico e outros, também especificou novas restrições para tecnologias de laser, criptografia, design de chips e outras categorias de ponta.

A China tinha revisado sua lista de exportação de tecnologia pela última vez em 2008. Pequim justificou a atualização como necessária, dada a rapidez do desenvolvimento científico e tecnológico e o “avanço contínuo” da competitividade industrial da China.

A tecnologia é um ponto cada vez mais central no conflito geopolítico entre EUA e China. Além do TikTok, a Casa Branca de Donald Trump tem como alvo um número crescente de empresas chinesas de tecnologia, especialmente a gigante das telecomunicações Huawei e a Tencent.

Ao longo dos últimos dois anos, o governo dos EUA tem feito campanha para colocar a tecnologia 5G da Huawei na lista negra em todo o mundo – com cada vez mais eficácia – e cita riscos de segurança associados aos laços da empresa com o governo chinês. O governo Trump também restringiu o acesso da Huawei a chips produzidos no exterior, o que limita sua capacidade de terceirizar a produção de componentes.

O aplicativo de troca de mensagens WeChat, da Tencent, que serve como uma ponte crucial entre empresas dos EUA e o mercado chinês, pode enfrentar o mesmo tipo de proibição que o TikTok, sob o argumento de risco à segurança nacional.

No ano passado, o governo dos EUA também impôs restrições rigorosas à compra de tecnologia americana por empresas e pessoas chinesas. Desde outubro, dezenas de empresas foram incluídas na lista negra do Departamento de Comércio dos EUA. Elas não podem comprar certas tecnologias dos EUA sem obter primeiro uma licença. Como motivo, o governo Trump cita abusos dos direitos humanos na região de Xinjiang, no extremo oeste da China, e outras questões de segurança nacional.

Michael Pettis (Financial Times 31/08/2020) informa: desde maio de 2020, quando o presidente Xi Jinping introduziu pela primeira vez o conceito de modelo econômico de “circulação dupla”, os analistas que acompanham a economia chinesa têm tido dificuldades para entender exatamente com o que o governo chinês se comprometeu. Com base nas muitas referências formais que se seguiram, parece que a nova estratégia econômica de Pequim requer que o país continue a expandir a produção doméstica para exportação (“circulação internacional”) enquanto muda a economia para dar uma ênfase relativa maior à produção para o consumo doméstico (“circulação interna”).

Em princípio, isso faz sentido. Depois de fechar a disparidade de fundo entre investimento desejado e investimento real – o que provavelmente ocorreu no início dos anos 2000 -, a China precisava basear o crescimento na demanda interna impulsionada pelo aumento dos salários, em vez de depender das exportações ou de investimentos cada vez menos produtivos. Como a China dependia demais destes últimos, sua dívida disparou até tornar-se uma das mais altas do mundo.

E embora a “circulação dupla” seja apresentada como uma nova estratégia, na realidade ela não é. Pequim tem proposto algo semelhante pelo menos desde 2007, quando o então primeiro-ministro, Wen Jiabao, prometeu em um discurso que

Pequim daria prioridade a reequilibrar a demanda doméstica na direção do consumo.

Isso não aconteceu. A participação do consumo no Produto Interno Bruto (PIB) chinês continua a ser extraordinariamente baixa, apenas dois pontos percentuais mais alta em 2019 do que era em 2007. Entretanto, e não por acaso, durante o mesmo período a relação dívida/PIB da China dobrou.

E isso vai piorar neste ano. Com a queda acentuada do consumo em relação ao PIB – em parte por causa da covid-19 e em parte por causa da resposta de Pequim à pandemia, focada na produção – a participação do consumo no PIB diminuirá em 2020 até eliminar a maior parte dos ganhos obtidos desde seu nível mais baixo, há uma década. Enquanto isso, a relação dívida/PIB da China, que subiu seis pontos percentuais em 2019, aumentará em extraordinários 16-20 pontos percentuais em 2020. Em outras palavras, pouca coisa mudou desde 2007, exceto pelo peso da dívida do país: fora isso, a demanda na economia chinesa está tão desequilibrada como sempre.

Circulação dupla no nome, reequilíbrio por natureza: Isso é claramente insustentável e é por essa razão que é tão urgente para a China impulsionar uma demanda interna sustentável. No entanto, existem dois grandes problemas para Pequim com a dupla circulação.

O primeiro é que reorientar a economia em direção à demanda doméstica, chame-se isso de “reequilíbrio” ou de “circulação dupla”, requer uma transformação econômica, social e política. Provavelmente, será muito maior do que Pequim – e a maioria dos economistas chineses e estrangeiros, para falar a verdade – parece perceber.

As baixas taxas de consumo interno da China – entre as mais baixas da história – são principalmente uma consequência do fato da participação das famílias no PIB ser uma das menores do mundo em todos os tempos. Reequilibrar a demanda na direção do consumo significa nada menos do que um grande reequilíbrio da renda para as famílias comuns.

Para o consumo chinês ser alinhado de forma geral com o de outros países em desenvolvimento, as famílias devem recuperar ao menos 10-15 pontos percentuais do PIB à custa das empresas, dos ricos ou do governo. Isso significa que o reequilíbrio envolve uma transferência massiva de riqueza – e, com ela, de poder político – para as pessoas comuns. O que não será fácil.

O segundo grande problema é a contradição interna que está no centro do novo modelo de “circulação dupla” da China. A “competitividade” das exportações da China, como o ex-escritor de Alphaville Matt Klein e eu explicamos em nosso livro “Trade Wars are Class Wars” (guerras comerciais são guerras de classe), depende de garantir que seja alocada aos trabalhadores, seja por meio de salários ou da rede de segurança social, uma parcela muito baixa do que produzem. Em outras palavras, o vigor das exportações da China depende, ao menos em parte, da pequena parcela que os trabalhadores retêm daquilo que produzem.

Aí está o problema. Se a China só poderá contar com o consumo doméstico para impulsionar uma parcela muito maior do crescimento se os trabalhadores começarem a receber uma parcela muito maior do que produzem, então o processo de reequilíbrio vai minar obrigatoriamente a competitividade da China nas exportações.

Isso significa, para a “circulação interna” ser bem-sucedida, a “circulação internacional” deve ser prejudicada. Uma não pode estimular a outra, como propõe Pequim: a mudança em si exigirá um período de ajuste difícil.

Embora o vocabulário tenha mudado, o crescimento sustentável que os formuladores de políticas chineses querem ainda exige uma grande transformação na forma como a renda é distribuída aos diferentes setores. O desafio político não é apenas imenso como sempre, mas porque no passado o crescimento chinês dependeu tão fortemente das atuais distorções na distribuição de renda, a transformação para um novo modelo quase certamente exigirá um período de ajuste muito difícil.

Para a circulação dupla funcionar, a circulação interna só pode ocorrer à custa da circulação internacional e, à medida que isso acontecer, a riqueza – e com ela o poder – deve ser transferida das elites de hoje para as famílias chinesas comuns.

Modelo econômico de “circulação dupla” na China: Regulação da Exportação de Tecnologia de Inteligência Artificial publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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