Suzi Katzumata (Valor, 29/09/2020) informa: em duas das últimas cinco eleições presidenciais americanas, o candidato que perdeu no voto popular acabou indo para a Casa Branca. Isso ocorreu em 2000, com George W. Bush, e em 2016, com Donald Trump – ambos republicanos. Tal cenário é visto como possível novamente neste ano, em uma eleição disputada em meio a um ambiente sócio-político altamente polarizado e uma pandemia com profundo impacto na economia e na vida cotidiana.
Isso ocorre porque os EUA escolhem o seu presidente, em última instância, não pelo voto direto, mas por uma votação indireta no Colégio Eleitoral. Cada Estado tem direito a um certo número de delegados nesse Colégio. O candidato ao vencer a eleição em um Estado leva, em quase todos os Estados, todos os delegados desse Estado.
Isso, porém, causa uma série de distorções. Se um candidato, por exemplo, ganhar por ampla margem em alguns Estados e perder por pequena margem em outros, pode se eleger mesmo tendo menos votos populares. Foi o que ocorreu nas eleições presidenciais de 2000 e 2016.
Por que os EUA ainda escolhem seu presidente por meio de um sistema eleitoral tão complexo e que permite ignorar a vontade popular? A resposta à essa pergunta é perturbadora, pois está relacionada com a injustiça racial estrutural no país, diz Alexander Keyssar, professor de história e ciências políticas na Universidade Harvard.
“O sistema [do Colégio Eleitoral] é só parcialmente democrático. Nem todos os votos têm o mesmo peso, e eles não são tratados de forma igual”, diz Keyssar em entrevista ao Valor por telefone. Segundo ele, isso é reconhecido por muitos hoje nos EUA e as tentativas de mudanças vêm desde o Século 19. “O enigma é por que não conseguimos nos livrar dele”, continua. “E isso tem muito a ver com uma discriminação racial sistêmica e o poder dos Estados do Sul dos EUA.”
Autor do “The Right to Vote” (o direito de votar, 2000), Keyssar lançou em julho passado o livro “Why Do We Still Have the Electoral College?” (por que ainda temos o Colégio Eleitoral?). Ele diz que, ao longo de 200 anos, a oposição sistemática à adoção
do voto popular para a eleição presidencial não partia dos Estados menores – segundo o argumento convencional – mas dos Estados do Sul.
A Constituição americana deu aos Estados escravagistas dos Sul dos EUA o direito de representação no Congresso não só para os cidadão brancos, mas também para três quintos de seus escravos – que, porém, não podiam votar. A distribuição dos votos no Colégio Eleitoral é equivalente à representação do Estado no Congresso. Esse desenho garantiu aos Estados sulistas uma vantagem em relação aos demais na eleição presidencial, argumenta Keyssar no livro.
Com o fim da escravidão, essa vantagem dos Estados do Sul ficou ainda maior, já que a representação no Congresso (e também no Colégio Eleitoral) passou a incluir todos os cidadãos, incluindo os negros, que porém continuavam privados de muitos direitos (inclusive o de votar) por causa de leis locais e estaduais de segregação racial – que prevaleceram até 1965.
Em 1904, por exemplo, Delaware tinha o mesmo número de votos para o Congresso que a Geórgia, embora a Geórgia tivesse onze representantes, enquanto Delaware tinha apenas um, relata Keyssar em seu livro. Nesse mesmo ano, Ohio tinha o mesmo número de eleitores que nove Estados do Sul combinados, mas que juntos tinham 99 votos no Colégio Eleitoral, contra apenas 23 de Ohio.
Os Estados segregacioanistas do Sul viam o Colégio Eleitoral como fundamental não só para manter sua vantagem em relação aos demais, mas também para continuar evitando o voto negro nas eleições estaduais. O voto popular nacional levaria à pressão para que os Estados do Sul eliminassem as restrições impostas ao voto dos negros.
Mesmo depois do movimento por direitos civis e do fim da segregação racial, os senadores sulistas continuaram a bloquear os esforços para aprovar uma emenda constitucional a favor do voto popular. “O Colégio Eleitoral é uma das poucas salvaguardas políticas restantes do Sul. Vamos mantê-lo”, escreveu o senador democrata pelo Estado do Alabama James Allen em 1969, de acordo com Keyssar.
“Houve muitas tentativas de mudar ou se livrar do Colégio Eleitoral. Houve quase mil propostas de emenda constitucional no Congresso para mudar isso. Algumas no
Século 19, e a mais recente em 1969-70, quando faltaram uns poucos votos para aprovar uma eleição nacional com base no voto popular”, diz Keyssar.
O esforço de 1969-70 foi o mais perto que os EUA chegaram de mudar o sistema eleitoral na história recente e ocorreu na esteira dos protestos pelos direitos civis. Embora esse movimento não tivesse como foco o fim do Colégio Eleitoral, Keyssar diz que havia uma correlação entre os dois eventos.
“A mesma ideologia que alimentava o movimento por direitos civis também teve um papel no esforço para acabar com o Colégio Eleitoral. Assim como hoje, os movimentos para acabar com o Colégio Eleitoral estão ligados aos movimentos pró- democracia, através do Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] e outros. Elas têm uma forte correlação”, disse.
Isso quer dizer que a recente onda de protestos antirracismo – a partir da morte de George Floyd, em maio – pode influenciar o resultado da eleição em novembro e recolocar em pauta a reforma do sistema eleitoral? Isso não está claro, diz Keyssar. Por um lado os protestos estimularam o engajamento da população afro-americana, mas também estão mobilizando republicanos que temem o BLM. “Assim, não sabemos qual será o resultado disso no Congresso.”
No atual ambiente polarizado dos EUA, uma mudança constitucional como a reforma do sistema eleitoral é muito difícil, pois exige a mobilização da chamada supermaioria: apoio de dois terços na Câmara e no Senado, seguida da aprovação de três quartos dos Estados. Mas Keyssar crê que isso será possível em alguns anos, a depender de quem vencer esta eleição e do que ocorrer com o Partido Republicano – cada vez mais branco e que hoje domina o Sul dos EUA.
“O Partido Republicano acredita que o Colégio Eleitoral o beneficia”, diz. “Mas isso pode mudar.”
Por exemplo, no Texas e na Geórgia os republicanos costumavam ter uma maioria confiável. Mas neste ano há a possibilidade de os democrata vencerem nesses Estados. “Se isso acontecer, a atitude dos republicanos [com relação ao Colégio Eleitoral] pode mudar. Eles podem querer um sistema diferente se acharem vantajoso.”
O empurrão para uma revisão do sistema eleitoral também pode vir de uma crise social – algo que pode ocorrer se o resultado da eleição presidencial for contestado.
“As chances de mudar esse sistema após esta eleição talvez sejam boas. Não imediatamente, nem no próximo ano ou dois, mas em cinco anos. Provavelmente enfrentaremos uma crise real, em parte por causa do sistema e em parte por causa da polarização de forças no país. Essa polarização não vai desaparecer em janeiro. Teremos dias muitos difíceis pela frente”, disse.
“Muita gente hoje está se preparando não só para a eleição, mas para a possibilidade de uma crise social depois da eleição. Estamos trabalhando com diferentes cenários e probabilidades. Esta não é uma eleição normal”, acrescentou.
A grande dúvida, diz Keyssar, é até onde Trump e seus aliados podem ir para desafiar o resultado da eleição e tentar manter Trump na Casa Branca. “As pessoas estão falando em pegar em armas.”
No caso de um resultado muito apertado, a disputa pós-eleitoral pode se estender até a data da posse, em janeiro. Essa é outra parte disfuncional do sistema eleitoral. “Não há uma clareza de como resolver uma eleição disputada. Os procedimentos e os princípios [previstos na constituição] não são claros”, diz Keyssar. “O sistema tem algumas regras, mas elas são incompletas e contraditórias.”
Ele dá o exemplo de 1876, quando houve uma grande crise sobre quem teria vencido a eleição, quem deveria decidir e quem deveria contar os votos. Depois disso, levou 11 anos para o Congresso elaborar regras sobre o que fazer em casos como esse. Ao fim, foi aprovada uma lei que era tão complicada que por semanas professores de direito ficaram tentando explicá-la. “Portante, não existe um claro mecanismo de resolução no caso de o resultado da eleição presidencial ser contestado.”
Outra peculiaridade do sistema eleitoral americano é que a Constituição não garante ao cidadão o direito de votar para presidente. “A grande maioria dos americanos não sabe disso”, diz Keyssar. “Temos uma Constituição muito antiga e antiquada, e como qualquer documento, ela não é perfeita e não se espera que seja perfeita.”
Colégio Eleitoral e o Viés Racista nos Estados Unidos publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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