I. O valor da dívida não tem sentido
No site da Auditoria Cidadã há um “dividômetro” informando, no final de novembro de 2015, o valor da dívida interna ser de R$ 3.794 bilhões e a dívida externa ser de USD 546 bilhões[1].
Um primeiro problema é os conceitos utilizados pela Auditoria Cidadã para dívida interna e externa serem diferentes. Enquanto a dívida interna seria a dívida interna pública, a externa seria a dívida externa total, pública e privada. Adicionalmente, o conceito usado para dívida interna não corresponde ao do Manual de Finanças Públicas, nem seguem metodologia aceita internacionalmente.
- Dívida Interna
Até a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o BCB emitia títulos próprios para operacionalizar a política monetária, tal como ocorre na maioria dos países. Como o BCB emitia títulos próprios, não era necessária a manutenção de títulos em carteira, pois a emissão ocorria conforme as necessidades da política monetária.
O art. 34 da LRF alterou essa sistemática ao vedar a emissão de títulos de dívida pública pelo BCB. O objetivo de tal medida foi aumentar a transparência da relação Tesouro Nacional e BCB e impedir que, por meios indiretos, o BCB financiasse o Tesouro Nacional, algo vedado pelo art. 164 da Constituição Federal.
Como o BCB já não pode emitir títulos próprios, é necessário ele ter uma carteira de títulos do Tesouro Nacional maior face à necessária para a operacionalização da política monetária. Caso contrário, a Autoridade Monetária teria de recorrer ao Tesouro Nacional sempre quando precisasse realizar operações de mercado aberto, criando um complicador desnecessário para a execução da política monetária e submetendo a administração da política monetária ao Tesouro Nacional.
Por essa razão, o BCB não utiliza todos os títulos do Tesouro Nacional de sua carteira para a execução da política monetária. No caso dos títulos não utilizados, os juros líquidos são nulos: os juros apropriados pelo BCB são transferidos para o Tesouro Nacional. Por essa razão, os títulos em carteira do BCB e não utilizados nas operações compromissadas (I) não integram a dívida interna, algo recentemente reconhecido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)[2].
A metodologia da Auditoria Cidadã desconsidera essa diferença porque entendem “o governo OMITE o montante de títulos da dívida interna em poder do Banco Central (BC)[3]”. O que eles parecem ignorar é os títulos na carteira do BCB utilizados nas operações compromissadas (H), por resultarem em despesas líquidas de juros para o Estado, são incluídos no conceito de dívida interna (DI). A exclusão se dá apenas para os títulos emitidos, mas não utilizados. Esse equívoco aumenta a dívida interna em R$ 294 bilhões (24% dos títulos do Tesouro Nacional na carteira do BCB).
Outra questão é a exclusão das aplicações de entes da Administração federal e governos subnacionais em títulos públicos federais, o que infla a dívida interna em R$ 41,1 bilhões. Neste caso, os credores do Tesouro Nacional são entes estatais.
Para os entes da Administração federal, trata-se de mera transferência de recursos entre órgãos do mesmo ente federativo. Desse modo, o impacto líquido sobre a dívida do governo é nulo.
Adicionalmente, é omitida a dedução dos títulos sob custódia do Fundo de Garantia à Exportação (FGE) (C), fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda. Assim como os títulos do Tesouro Nacional na carteira do BCB, não têm impacto líquido sobre a dívida do governo[4].
Curiosamente, essa associação obcecada em combater as relações entre Estado e rentistas não inclui na dívida interna as dívidas bancárias dos entes estatais de quase R$ 133 bilhões. Além de ser tecnicamente equivocada, a omissão exclui da dívida pública justamente as obrigações com maiores limitações impostas pela LRF (arts. 32 a 38) e com probabilidade não desprezível de ocorrência de ilegalidades.
Deste modo, a Auditoria Cidadã infla a dívida pública interna em R$ 341 bilhões e simultaneamente desconsidera dívidas bancárias de R$ 133 bilhões, de modo o chamado por eles de dívida interna é 5,8% maior da dívida interna de fato.
Quadro 1 – Dívida pública interna em bilhões de reais)
Set/15 | Nov/15 | |
Dívida interna (DI=A+H+J+K+L) | 3.522 | 3.586 |
Dívida mobiliária em mercado (A=B+C+D+E+F) | 2.539 | 2.529 |
Dívida mobiliária do Tesouro Nacional (B) | 2.579 | 2.564 |
Títulos sob custódia do FGE (C) | – 6 | – 6 |
Dívidas securitizadas e TDA (D) | 9 | 11 |
Aplicações de entidades da adm. Federal (E) | -44 | -41 |
Aplicações dos governos subnacionais (F) | -0,1 | -0,1 |
Títulos na carteira do Bacen (G=H+I) | 1.214 | 1.219 |
Operações compromissadas do Bacen (H) | 854 | 925 |
Títulos não utilizados (I) | 360 | 294 |
Dívida bancária do Governo Federal (J) | 11 | 12 |
Dívida bancária dos governos estaduais (K) | 100 | 103 |
Dívida bancária dos governos municipais (L) | 17 | 18 |
Títulos emitidos pelo Tesouro Nacional (DE=B+D+G) | 3.803 | 3.794 |
Fonte: BCB (Nota de Política Fiscal, Quadros 17 e 36)
I2. Dívida externa
O valor da dívida externa considerado pela Auditoria Cidadã inclui a dívida privada e empréstimos intercompanhias, os quais atualmente não são classificados como empréstimos externos. A justificativa dada pela Auditoria Cidadã é: a dívida externa considerada “inclui a dívida externa privada, pois a mesma (sic) envolve uma obrigação do Estado, tendo em vista o BC ser o responsável por disponibilizar dólares para o pagamento desta dívida, se necessário, às custas (sic) de privatizações, juros altos, e aceitação das políticas do FMI, como sempre ocorreu e continua ocorrendo[5].”
Trata-se de uma tese no mínimo questionável. A Lei 4.595/64, art. 11, III atribui ao BCB a competência para intervir no mercado de câmbio, visando a “estabilidade relativa das taxas de câmbio e do equilíbrio no balanço de pagamentos”.
Como o regime cambial adotado é de câmbio flexível, não há compromisso da Autoridade Monetária em disponibilizar moedas estrangeiras. O que pode ocorrer é quando, em situações de excepcional desequilíbrio – efetivo ou iminente – do balanço de pagamentos o Conselho Monetário nacional (CMN) outorgar ao BCB o monopólio das operações de câmbio (Lei 4.595/64, art. 4º, XVIII).
Parte da confusão entre dívida externa pública com dívida externa total decorre de uma leitura descontextualizada do art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual determinava “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”.
Quando a Constituição Federal foi promulgada, o Brasil se encontrava em plena crise da dívida externa e quase toda a dívida externa era pública: de acordo com o BCB, em 1988, a dívida externa registrada era de USD 103,5 bilhões, dos quais 88% pública e 12% privada. Atualmente, a maioria da dívida externa é privada e emitida a partir dos anos 80 e 90.
Adicionalmente, houve renegociação da dívida externa brasileira no âmbito do Plano Brady e esses títulos já foram quitados na década passada. Portanto, o mandamento constitucional perdeu a eficácia.
A dívida externa pública (A+B+C) é de USD 69,7 bilhões, sendo quase 44% com agências governamentais e organismos internacionais. Isso inclui, por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (DES) no FMI [6] e crédito para obras de infraestrutura do Banco Mundial.
Se incluir as dívidas de empresas (D) e bancos estatais (E), o que não corresponde aos critérios internacionais de cálculo da dívida pública externa, mas que poderia fazer sentido em uma auditoria do setor público, a dívida externa chegaria a USD 133,5 bilhões, valor a corresponder apenas a 12% da dívida externa informada pela Auditoria Cidadã.
O restante (F+G+H) são passivos exclusivamente privados. Além da auditoria ser de questionável constitucionalidade, como o foco declarado da Auditoria Cidadã são os juros da dívida pública, não faz sentido auditar a dívida externa privada.
Quadro 2 – Dívida externa por credores e devedores (Setembro de 2015)
USD bilhões | Organismos internacionais e agências governamentais | Bancos | Outros | Total |
Tesouro Nacional (A) | 1,4 | 1,1 | 31,5 | 33,9 |
Banco Central (B) | 4,1 | – | – | 4,1 |
Estados e Municípios (C) | 25,0 | 3,7 | 3,0 | 31,8 |
Empresas públicas (D) | 9,4 | 0,0 | 3,5 | 13,0 |
Bancos estatais (E) | 6,0 | 30,2 | 14,5 | 50,8 |
Bancos privados (F) | 2,4 | 71,7 | 30,7 | 104,8 |
Setor privado não bancário (G) | 8,1 | 68,6 | 30,0 | 106,6 |
Operações intercompanhia (H) | – | – | 203,8 | 203,8 |
Total | 56,3 | 175,3 | 317,1 | 548,7 |
Fonte: BCB (Nota de Política Externa, Quadro 23)
Conclusão
Para uma associação a se propor a auditar a dívida pública, a Auditoria Cidadã utiliza conceito equivocado de dívida interna. Ela deixa de incluir a dívida interna bancária e inclui artificialmente a dívida interna com títulos emitidos pelo Tesouro Nacional e detidos por outros entes públicos e curiosamente.
Quanto à dívida externa, há uma leitura descontextualizada do art. 26 dos ADCTs e entendimento equivocado do papel do BCB no mercado de câmbio, levando-os a incluir a dívida externa privada e empréstimos intercompanhia naquilo a ser auditado.
É essencial os auditores terem conhecimento profundo das contas analisadas. Como levar a sério quem se propõe a auditar a dívida pública, mas apresenta números tão imprecisos?
Em breve postarei um texto sobre como o famoso gráfico pizza. Ele mostra 40% a 50% do orçamento público comprometido com a dívida pública, mas passa uma ideia completamente equivocada e repetida pela Auditoria Cidadã da Dívida [7].
[1] http://www.auditoriacidada.org.br/
[2] http://oglobo.globo.com/economia/fmi-vai-considerar-calculo-do-banco-central-para-divulgar-divida-bruta-do-brasil-12801806 e http://www2.valor.com.br/valor-investe/casa-das-caldeiras/3217106/relacao-institucional-entre-bc-e-divida-publica-%E2%80%93-alvo-do-f
[3] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf
[4] http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/finpub/manualfinpublp.pdf
[5] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf
[6] Não se deve confundir DES com os empréstimos tomados junto ao FMI na década passada e que foram quitados.
[7] http://www.auditoriacidada.org.br/auditoria-da-divida-e-destaque-em-debate-de-presidenciaveis/
Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? Parte I (Blog do Bianchini) publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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