quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? Parte I (Blog do Bianchini)

I. O valor da dívida não tem sentido

No site da Auditoria Cidadã há um “dividômetro” informando, no final de novembro de 2015, o valor da dívida interna ser de R$ 3.794 bilhões e a dívida externa ser de USD 546 bilhões[1].

Um primeiro problema é os conceitos utilizados pela Auditoria Cidadã para dívida interna e externa serem diferentes. Enquanto a dívida interna seria a dívida interna pública, a externa seria a dívida externa total, pública e privada. Adicionalmente, o conceito usado para dívida interna não corresponde ao do Manual de Finanças Públicas, nem seguem metodologia aceita internacionalmente.

  1. Dívida Interna

Até a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o BCB emitia títulos próprios para operacionalizar a política monetária, tal como ocorre na maioria dos países. Como o BCB emitia títulos próprios, não era necessária a manutenção de títulos em carteira, pois a emissão ocorria conforme as necessidades da política monetária.

O art. 34 da LRF alterou essa sistemática ao vedar a emissão de títulos de dívida pública pelo BCB. O objetivo de tal medida foi aumentar a transparência da relação Tesouro Nacional e BCB e impedir que, por meios indiretos, o BCB financiasse o Tesouro Nacional, algo vedado pelo art. 164 da Constituição Federal.

Como o BCB já não pode emitir títulos próprios, é necessário ele ter uma carteira de títulos do Tesouro Nacional maior face à necessária para a operacionalização da política monetária. Caso contrário, a Autoridade Monetária teria de recorrer ao Tesouro Nacional sempre quando precisasse realizar operações de mercado aberto, criando um complicador desnecessário para a execução da política monetária e submetendo a administração da política monetária ao Tesouro Nacional.

Por essa razão, o BCB não utiliza todos os títulos do Tesouro Nacional de sua carteira para a execução da política monetária. No caso dos títulos não utilizados, os juros líquidos são nulos: os juros apropriados pelo BCB são transferidos para o Tesouro Nacional. Por essa razão, os títulos em carteira do BCB e não utilizados nas operações compromissadas (I) não integram a dívida interna, algo recentemente reconhecido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)[2].

A metodologia da Auditoria Cidadã desconsidera essa diferença porque entendem “o governo OMITE o montante de títulos da dívida interna em poder do Banco Central (BC)[3]”. O que eles parecem ignorar é os títulos na carteira do BCB utilizados nas operações compromissadas (H), por resultarem em despesas líquidas de juros para o Estado, são incluídos no conceito de dívida interna (DI). A exclusão se dá apenas para os títulos emitidos, mas não utilizados. Esse equívoco aumenta a dívida interna em R$ 294 bilhões (24% dos títulos do Tesouro Nacional na carteira do BCB).

Outra questão é a exclusão das aplicações de entes da Administração federal e governos subnacionais em títulos públicos federais, o que infla a dívida interna em R$ 41,1 bilhões. Neste caso, os credores do Tesouro Nacional são entes estatais.

Para os entes da Administração federal, trata-se de mera transferência de recursos entre órgãos do mesmo ente federativo. Desse modo, o impacto líquido sobre a dívida do governo é nulo.

Adicionalmente, é omitida a dedução dos títulos sob custódia do Fundo de Garantia à Exportação (FGE) (C), fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda. Assim como os títulos do Tesouro Nacional na carteira do BCB, não têm impacto líquido sobre a dívida do governo[4].

Curiosamente, essa associação obcecada em combater as relações entre Estado e rentistas não inclui na dívida interna as dívidas bancárias dos entes estatais de quase R$ 133 bilhões. Além de ser tecnicamente equivocada, a omissão exclui da dívida pública justamente as obrigações com maiores limitações impostas pela LRF (arts. 32 a 38) e com probabilidade não desprezível de ocorrência de ilegalidades.

Deste modo, a Auditoria Cidadã infla a dívida pública interna em R$ 341 bilhões e simultaneamente desconsidera dívidas bancárias de R$ 133 bilhões, de modo o chamado por eles de dívida interna é 5,8% maior da dívida interna de fato.

Quadro 1 – Dívida pública interna em bilhões de reais)

Set/15 Nov/15
Dívida interna (DI=A+H+J+K+L)  3.522   3.586 
          Dívida mobiliária em mercado (A=B+C+D+E+F)  2.539  2.529
             Dívida mobiliária do Tesouro Nacional (B)  2.579  2.564
             Títulos sob custódia do FGE (C) – 6 – 6
             Dívidas securitizadas e TDA (D)   9   11
             Aplicações de entidades da adm. Federal (E) -44 -41
             Aplicações dos governos subnacionais (F) -0,1 -0,1
          Títulos na carteira do Bacen (G=H+I)  1.214  1.219
             Operações compromissadas do Bacen (H)   854   925
             Títulos não utilizados (I)   360   294
          Dívida bancária do Governo Federal (J)   11   12
          Dívida bancária dos governos estaduais (K)   100   103
          Dívida bancária dos governos municipais (L)   17   18
Títulos emitidos pelo Tesouro Nacional (DE=B+D+G)  3.803   3.794 

Fonte: BCB (Nota de Política Fiscal, Quadros 17 e 36)

I2. Dívida externa

O valor da dívida externa considerado pela Auditoria Cidadã inclui a dívida privada e empréstimos intercompanhias, os quais atualmente não são classificados como empréstimos externos. A justificativa dada pela Auditoria Cidadã é: a dívida externa considerada “inclui a dívida externa privada, pois a mesma (sic) envolve uma obrigação do Estado, tendo em vista o BC ser o responsável por disponibilizar dólares para o pagamento desta dívida, se necessário, às custas (sic) de privatizações, juros altos, e aceitação das políticas do FMI, como sempre ocorreu e continua ocorrendo[5].”

Trata-se de uma tese no mínimo questionável. A Lei 4.595/64, art. 11, III atribui ao BCB a competência para intervir no mercado de câmbio, visando a “estabilidade relativa das taxas de câmbio e do equilíbrio no balanço de pagamentos”.

Como o regime cambial adotado é de câmbio flexível, não há compromisso da Autoridade Monetária em disponibilizar moedas estrangeiras. O que pode ocorrer é quando, em situações de excepcional desequilíbrio – efetivo ou iminente – do balanço de pagamentos o Conselho Monetário nacional (CMN) outorgar ao BCB o monopólio das operações de câmbio (Lei 4.595/64, art. 4º, XVIII).

Parte da confusão entre dívida externa pública com dívida externa total decorre de uma leitura descontextualizada do art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual determinava “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”.

Quando a Constituição Federal foi promulgada, o Brasil se encontrava em plena crise da dívida externa e quase toda a dívida externa era pública: de acordo com o BCB, em 1988, a dívida externa registrada era de USD 103,5 bilhões, dos quais 88% pública e 12% privada. Atualmente, a maioria da dívida externa é privada e emitida a partir dos anos 80 e 90.

Adicionalmente, houve renegociação da dívida externa brasileira no âmbito do Plano Brady e esses títulos já foram quitados na década passada. Portanto, o mandamento constitucional perdeu a eficácia.

A dívida externa pública (A+B+C) é de USD 69,7 bilhões, sendo quase 44% com agências governamentais e organismos internacionais. Isso inclui, por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (DES) no FMI [6] e crédito para obras de infraestrutura do Banco Mundial.

Se incluir as dívidas de empresas (D) e bancos estatais (E), o que não corresponde aos critérios internacionais de cálculo da dívida pública externa, mas que poderia fazer sentido em uma auditoria do setor público, a dívida externa chegaria a USD 133,5 bilhões, valor a corresponder apenas a 12% da dívida externa informada pela Auditoria Cidadã.

O restante (F+G+H) são passivos exclusivamente privados. Além da auditoria ser de questionável constitucionalidade, como o foco declarado da Auditoria Cidadã são os juros da dívida pública, não faz sentido auditar a dívida externa privada.

Quadro 2 – Dívida externa por credores e devedores (Setembro de 2015)

USD bilhões Organismos internacionais e agências governamentais Bancos Outros Total
Tesouro Nacional (A) 1,4 1,1 31,5 33,9
Banco Central (B) 4,1 4,1
Estados e Municípios (C) 25,0 3,7 3,0 31,8
Empresas públicas (D) 9,4 0,0 3,5 13,0
Bancos estatais (E) 6,0 30,2 14,5 50,8
Bancos privados (F) 2,4 71,7 30,7 104,8
Setor privado não bancário (G) 8,1 68,6 30,0 106,6
Operações intercompanhia (H) 203,8 203,8
Total 56,3 175,3 317,1 548,7

Fonte: BCB (Nota de Política Externa, Quadro 23)

Conclusão

Para uma associação a se propor a auditar a dívida pública, a Auditoria Cidadã utiliza conceito equivocado de dívida interna. Ela deixa de incluir a dívida interna bancária e inclui artificialmente a dívida interna com títulos emitidos pelo Tesouro Nacional e detidos por outros entes públicos e curiosamente.

Quanto à dívida externa, há uma leitura descontextualizada do art. 26 dos ADCTs e entendimento equivocado do papel do BCB no mercado de câmbio, levando-os a incluir a dívida externa privada e empréstimos intercompanhia naquilo a ser auditado.

É essencial os auditores terem conhecimento profundo das contas analisadas. Como levar a sério quem se propõe a auditar a dívida pública, mas apresenta números tão imprecisos?

Em breve postarei um texto sobre como o famoso gráfico pizza. Ele mostra 40% a 50% do orçamento público comprometido com a dívida pública, mas passa uma ideia completamente equivocada e repetida pela Auditoria Cidadã da Dívida [7].

[1] http://www.auditoriacidada.org.br/

[2] http://oglobo.globo.com/economia/fmi-vai-considerar-calculo-do-banco-central-para-divulgar-divida-bruta-do-brasil-12801806 e http://www2.valor.com.br/valor-investe/casa-das-caldeiras/3217106/relacao-institucional-entre-bc-e-divida-publica-%E2%80%93-alvo-do-f

[3] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf

[4] http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/finpub/manualfinpublp.pdf

[5] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf

[6] Não se deve confundir DES com os empréstimos tomados junto ao FMI na década passada e que foram quitados.

[7] http://www.auditoriacidada.org.br/auditoria-da-divida-e-destaque-em-debate-de-presidenciaveis/

Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? Parte I (Blog do Bianchini) publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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