sábado, 24 de outubro de 2020

Explicando O Poder do Voto (Documentário na Netflix)

Em 1776, 56 homens assinaram um documento alegando algo radical: “todos os homens são criados iguais e todos os governos obtêm seus poderes justos do consentimento dos governados”. Esses dizeres foram inscritos na Constituição dos Estados Unidos. 

A contradição, desde logo, foi o Direito do Voto não ter sido concedido para todos seres humanos nascidos/naturalizados nos Estados Unidos, mas apenas para os donos de seres humanos. Votar era um privilégio exclusivo de homens brancos com propriedade, destacadamente os escravistas. 

Quando George Washington foi eleito o primeiro presidente da República norte-americana, no máximo 20% dos governados podiam votar. A luta para decidir e declarar o voto ser um direito – e não um privilégio – é ainda um desafio.

Primeiro, após a Guerra Civil (1860-1865), os negros conquistaram o direito ao voto, retirado logo após no Sul. Depois, em 1920, as mulheres e os nativos indígenas o conquistaram. Em 1971, a idade de voto caiu de 21 para 18 anos. Em 2016, cerca de 90% dos maiores de 18 anos nos EUA podia votar, mas só 56% exerceu o direito.

Os Estados Unidos ficaram abaixo da maioria dos países desenvolvidos em participação dos eleitores. Com a pandemia não há como fugir do debate sobre a votação no Império militar, econômico e cultural. O atual presidente com o risco de ser derrotado já anuncia o voto eleitoral ser fraudado, não disposto a reconhecer seu fracasso.

Há o medo, entre os republicanos minoritários, de haver “gente demais votando”. Outros, até democratas, se perguntam: “se o potencial eleitor não liga o suficiente a ponto de se deslocar para votar, será mesmo importante o voto dessa pessoa?”

É um debate antigo nos Estados Unidos entre o voto ser um privilégio ou um direito. Direito de todos ou de alguns? Deve ser fácil para os brancos mais ricos e difícil para os negros, nativos e latinos mais pobres votarem? Não se discute ser um dever da cidadania.

A atual eleição é inédita porque os estados de todo o país ter oferecido a opção de voto por correio. Há poucos (3) estados com voto por correio universal, onde as cédulas são enviadas aos eleitores registrados. Na maioria, é necessário solicitar uma cédula e ela só será enviada quando a assinatura no seu pedido for verificada e conferir com a assinatura no registro do eleitor.

Em alguns estados do Sul, o voto por correio pede justificativa – e a pandemia não é considerado argumento. As regras para as eleições nos Estados Unidos são feitas por políticos estaduais. Os do Sul ainda abominam os votos da maioria negra…

Os estados governados por republicanos são copiados por outros em seus critérios de exclusão ou privilégio. Os políticos partidários podem determinar quem tem direito ao voto. Por exemplo, a Flórida revogou o direito de voto de condenados, perpetuamente, por ser sua maioria composta por negros.

De 2007 a 2011, 155.000 pessoas recuperaram esse direito graças ao ex-governador republicano Charlie Crist, em um processo quase automático. Depois, Rick Scott se tornou governador e revogou as políticas de indulto da administração anterior. 

Exigiu ex-presidiários terem de recorrer em uma audiência em frente do governador e seu gabinete para implorar a restauração de seus direitos. O governador negava o perdão de quem suspeitava ser seu adversário. 

Nesse processo arbitrário, permitiu menos de 4.000 ex-presidiários em oito anos. Em consequência, conseguiu por muito pouco um assento no Senado Federal: 50,06% ou menos de 10.000 votos.

Pelo risco de não ser (re)eleito, sempre houve resistência à ampliação do direito ao voto. Em 1776, com a Independência dos Estados Unidos, deu-se direito ao voto a quem tivesse riqueza suficiente, mas tentou-se excluir viúvas ricas e afro-americanos livres com posses.

Daí veio a cínica preocupação com fraude eleitoral, tipo “homens se vestindo de mulheres para votar”! Os políticos profissionais buscavam um jeito de excluir todos aqueles grupos com potencial de votar contra eles. 

Antes, quem era eleitor podia votar em quase todo lugar onde estivesse, depois, os estados revogaram o direito de voto fora do domicílio. O direito de voto concedido pelo governo federal aos negros em 1867 sofreu alteração na Flórida, no ano seguinte, revogando-o para os condenados. A 15ª Emenda Constitucional proibiu a restrição ao direito ao voto por etnia, mas não disse nada sobre presidiários.

Havia leis às quais só os negros eram sujeitos. Era a fórmula para os criminalizar e impedir escravos recém-libertos poderem participar da democracia norte-americana. As leis de perda do direito ao voto por condenados se espalharam, pior, através de políticos do Partido Democrata do Sul racista.

A falta de riqueza era uma restrição ao exigir o pagamento de impostos. Se seu avô, votada toda sua descendência se tornava isenta de comprovar a não sonegação. As primeiras gerações de descendentes de escravos, naturalmente, não obtinham esse direito.

Da mesma forma, a exigência de compreensão das cláusulas da Lei Eleitoral era prova de alfabetização. Analfabetos eram excluídos com base em “pegadinhas” em testes. Isso começou no Nordeste norte-americano e, inicialmente, visava excluir imigrantes europeus de países onde não se falava inglês.

Atingia as comunidades por sua etnia predominante por quem estava no poder não desejava perde-lo através de votos dos seus adversários. Se não havia leis coercitivas, impunha-se a violência policial racista e anticomunista.

No Sul, o direito ao voto popular foi praticamente destruído. Em 1940, só 3% dos adultos afro-americanos do Sul tinham registro de eleitores.

Em 1964, uma Emenda Constitucional proibiu os impostos pagos serem pré-requisitos para votar.

Centenas de manifestantes marcharam pelo direito ao voto em Selma, Alabama. Os policiais os atacaram. O presidente Lyndon Johnson, sucessor do assassinado John Kennedy (irmão do posteriormente assassinado Robert Kennedy e apoiador do outro assassinado Mart Luther King), resolveu agir ao afirmar “nenhum americano com valores morais pode negar o direito de voto universal”. Conseguiu a aprovação no Congresso da Lei dos Direitos de Voto em 1965.

Os Estados Unidos da América se tornou, assim, uma democracia em sentido pleno. Todas as táticas racistas passaram a ser ilegais. Finalmente, estados com retirada do direito de cidadãos precisariam de aprovação do Governo Federal para dificultar o voto.

Daí surgiu o consenso bipartidário para prorrogar a Lei dos Direitos de Voto quando ela estava prestes a expirar. Buscou-se facilitar o registro de eleitores, permitir votos antes do dia da eleição, expandir o voto por correio. 

O primeiro presidente afro-descendente, Barack Obama, foi eleito em 2008 por um número recorde de pessoas historicamente impedidas de votar. A partir daí, o consenso bipartidário se desfez porque Obama e o Partido Democrata tinham captado a diversidade crescente nos Estados Unidos – e os republicanos não.

Democratas do Sul tinham sido incentivados a reprimir votos no passado. Republicanos passaram a fazer isso no presente. 

Em 2013, a Suprema Corte com maioria conservadora (5X4) facilitou a mudança das regras eleitorais ao derrubar um pilar do Movimento dos Direitos Civis: a Lei dos Direitos de Voto. Decidiu as áreas abrangidas pela Lei terem mudado sem a Lei ter acompanhado essas decisões dos estados e condados. E eles poderiam alterar suas leis eleitorais sem autorização federal.

A Suprema Corte não fiscalizaria mais a supressão de eleitores como os tribunais faziam antes. Neste período recente, metade dos Estados Unidos criou novas restrições às formas de votar. Locais de votação fecharam e as filas para os pobres negros e latinos votarem cresceram – eles esperavam 45% mais tempo se comparados aos eleitores brancos –, levando à desistência. Foi intencional dificultar a hora do voto.

Os estados mantinham lista de registros para não conferir a “escorregada”, isto é, qualquer diferença entre assinaturas ou nomes extras de eleitoras. Apelaram para diferença de fotos, por exemplo, entre as fotos registradas de jovens e as atuais de idosos. Sem supervisão federal, os estados excluíram mais de 40% dos nomes!

Criou-se o mito da fraude eleitoral em massa – como aqui no Brasil se criou o mito da corrupção em todas as atividades do setor público. Um “não-cidadão” ter votado passou a ser argumento para os republicanos conservadores condenarem todos eleitores adversários. 

Trump alegou milhões terem votado ilegalmente, em 2016, sem apresentar nenhuma prova. Isto é contumaz por parte de adeptos de Teorias da Conspiração. Se os “não-residentes” votaram, concluiu: uma porcentagem alta votou em sua adversária. Ele sabe a maioria dos habitantes norte-americanos o detestarem. 

Com sua cínica “cara-de-pau”, tal como o submisso daqui, desmente, sumariamente, todas as acusações dele fraudar o sistema eleitoral universal em favor de seus eleitores típicos. Nomeou uma Comissão e ao não ela não encontrar nenhuma prova de fraude, simplesmente, a dissolveu sem reconhecer seu trabalho de investigação.

Em três estados com voto por correio universal, só houve 372 casos de votos suspeitos em um total de 14,6 milhões de cédulas enviadas. Quem frauda não é eleitor, mas sim o político profissional sem aceitar a alternância de poder em democracia.

Explicando O Poder do Voto (Documentário na Netflix) publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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