sábado, 7 de dezembro de 2019

Redução da Jornada Semanal de Trabalho com Manutenção da Renda do Trabalho para Redistribuir a Produtividade Robótica

Diego Viana (Valor, 22/11/19) informa: a quarta Revolução Industrial – termo para se referir à era dos robôs e dos algoritmos – parece mudar não só a disponibilidade e a demanda de empregos, mas também o entendido por trabalho. Nos últimos meses, tentando prever como vai ser a realidade do trabalho com a quarta Revolução Industrial, além da OIT, foram lançados estudos não só do próprio Fórum Econômico Mundial, mas também da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

As preocupações desses relatórios podem ser reunidas em cinco categorias:

  1. Primeiro, a automatização, porque transfere tarefas cada vez mais sofisticadas aos computadores, eliminando também postos inteiros.
  2. Em seguida, as condições de trabalho, que se tornam mais duras à medida que a competição global é maior e os profissionais têm de responder a exigências mais rigorosas.
  3. Terceiro, os impactos sobre a seguridade social, particularmente a aposentadoria, já que os modelos de contribuição e os conceitos tradicionais de empregado, desempregado e aposentado já perderam boa parte do sentido.
  4. Quarto, o desequilíbrio entre corporações globais, de posse de algoritmos e sistemas automatizados, e o poder de pressão dos sindicatos e da legislação do trabalho.
  5. Por fim, o possível paradoxo entre a pressão para expandir a oferta de trabalho em tempos de transição climática.

Há vários cenários possíveis, desde o mais desesperador, quando uma pequena elite trabalha intensamente e todo o resto da sociedade é transformado em seres humanos inúteis, até aquele onde as sociedades se preparam, como a Alemanha vem tentando fazer. No entanto, preparar-se não é fácil, porque ainda não está claro como o mundo do trabalho vai receber o impacto das transformações tecnológicas, demográficas e ambientais.

As estimativas sobre quantos empregos poderão ser automatizados nas próximas três décadas variam violentamente. O método mais utilizado é o dos economistas Carl Benedikt Frey e Michael Osborne, publicado em 2013 com aplicação nos EUA. Com esse método, estima-se que podem ser substituídos por máquinas 47% dos postos de trabalho no país de Donald Trump. No Reino Unido, são 35%, com uma média de 57% para os países da OCDE.

Os estudos convergem ao afirmar: o que será substituído por robôs e computadores são as tarefas, em lugar de os empregos. Aproximadamente metade das tarefas será automatizada. O quanto isso se traduzirá em perda de postos de trabalho, ao redor do mundo, é que ainda é difícil divisar. Os números são mais altos para países em desenvolvimento: com uma média de 67%. No Brasil, há estimativa de 60% dos postos com alta probabilidade de automação.

Além da quantidade de empregos, mudará sua estrutura. Estamos acostumados a pensar o avanço tecnológico eliminar trabalhos exigentes de menor qualificação, criando novos postos mais qualificados, com salários melhores. Quem investe na própria educação e aprende a lidar com a tecnologia costuma se sentir seguro. Mas o desenvolvimento da inteligência artificial começa a eliminar postos com nível médio de qualificação, relata o economista Richard Baldwin, do Instituto de Pós-Graduação em Estudos Internacionais e Desenvolvimento, em Genebra.

Baldwin cunhou o termo “globotics” para fundir “globalização e robótica”, duas forças maiores que estão moldando o mundo do trabalho neste século. No livro “The Globotics Upheaval” (A sublevação globótica), Baldwin afirma que a combinação entre avanço tecnológico e mundialização da economia causa uma mudança brutal na estrutura de empregos: a segurança de determinados trabalhos que tinham que ser feitos localmente se perdeu, sem a necessidade de deslocar enormes contingentes populacionais.

Uma ironia do desenvolvimento tecnológico é os empregos capazes de se salvarem estar em algumas das faixas mais desvalorizadas atualmente em termos de remuneração e prestígio social. É o caso na “economia dos cuidados” (“care economy”). Ela envolve enfermeiros, acompanhantes de idosos, professores e sacerdotes. O envelhecimento da população é um fator determinante, somando-se ao fato de que uma pessoa prefere ser tratada por outra pessoa, em vez de um robô. É pequeno o impacto desses empregos no cálculo da produtividade. Os governos deveriam tomar medidas para melhorar sua remuneração.

Embora novos empregos surjam para suprir a destruição de postos de trabalho esperada, nada garante quem perder os empregos antigos serem capazes de ocupar os novos. Ao contrário, a estimativa da OIT é de os trabalhadores demitidos serem aqueles com menor chance de recolocação. Por isso, uma das propostas presentes no relatório da organização é os países investirem em um direito à aprendizagem contínua, ao longo de toda a vida. Esta proposta envolve fortes investimentos em instituições de formação e ensino, além da seguridade social para dar tempo ao desempregado para se reciclar.

As novas formas de trabalho também parecem destruir os sistemas de proteção social por repartição geracional. Eles já sofrem com o envelhecimento da população e a queda das taxas de natalidade. Além de haver uma base menor de pessoas contribuindo para uma base maior de aposentados, agora também há menos contribuição mesmo daqueles “pejotizados” (CPFs por CNPJs) trabalhando, porque suas contribuições são calculadas a partir do salário mínimo. Sem acesso a outros benefícios, como o seguro- desemprego, os trabalhadores precários e alternativos estão menos protegidos das flutuações do ciclo econômico.

Mesmo os índices de desemprego são calculados sobre uma base a rarear. Com o avanço dos trabalhos periódicos ou temporários, a ideia do desempregado como alguém procurando emprego perde força. É comum distinguir entre trabalho e emprego, o segundo podendo ser formal ou informal. Mas o emprego formal, tradicional, onde se tem carteira assinada, contrato, está em certo lugar por determinadas horas todo dia, recebendo um salário relativamente fixo, vai ser cada vez menos comum.

Com a transformação rápida do mundo do trabalho, as pessoas precisam de um tempo para se reinventar ou requalificar. Se o auxílio-desemprego for muito pequeno ou por um intervalo curto, não é suficiente. Na Europa, as regras de desemprego obrigam a pessoa a ir às agências de emprego regularmente, pegar fila, procurar trabalho, mas cada vez mais os governos reconhecem esses empregos simplesmente não existirem mais.

O problema atinge também a lógica dos sistemas de contribuição. Este novo contexto está criando insegurança social. Vai ruir o modelo montado em cima de emprego e do salário, com previdência pública paga por contribuições sobre a folha salarial. Lamentavelmente, o governo neoliberal brasileiro não participa do debate. Aliás, parece sequer ter percebido a velocidade da mudança.

Mesmo antes da tendência de flexibilização das relações de trabalho, o Brasil já era um país onde o trabalho informal era expressivo e mais de 52% dos trabalhadores estão fora do regime de proteção social. No entanto, as recentes reformas do mercado de trabalho e da Previdência Social ainda levam em conta o modelo que prevaleceu no século XX.

Neste cenário, ganha força a ideia da Renda Básica Universal. Ela seria paga para todos os cidadãos, independentemente da renda familiar ou da situação profissional. Porém, o debate da renda universal é incipiente e falho porque deixa uma série de questões em aberto: “O que vai ser dos sistemas de seguridade social? Os empregadores vão usar a renda básica para baixar os salários? Como essa renda universal vai ser financiada?”.

Uma estratégia para compensar a perda de receita previdenciária consistiria em deslocar a lógica da contribuição fundada sobre o trabalho, transformando-a na taxação dos próprios robôs. Se é por meio da automação que a produtividade é aumentada, então a seguridade social poderia ser financiada justamente pelo imposto sobre essa produtividade, assim como até recentemente ela era sustentada pelo imposto sobre a produtividade do trabalhador humano.

Esta proposta chegou a ser aventada por Bill Gates em 2017. No mesmo ano, o parlamento europeu rejeitou um projeto de financiar programas de treinamento para trabalhadores demitidos por meio de um imposto sobre robôs e algoritmos. Algo como esse imposto já existe no país mais automatizado do mundo: Coreia do Sul. Em 2017, o país decidiu reduzir os incentivos fiscais para empresas que avançassem na robotização de seus processos produtivos.

Entre economistas, a proposta tem recebido atenção cada vez maior, mas com opiniões divididas. Nos países industrializados, o emprego é uma das principais fontes de receita fiscal. Nos EUA, são 35%, enquanto o imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas atinge 57%. Por isso, a redução de postos de trabalho é não apenas uma maneira de evitar impostos, como uma pressão significativa sobre as contas públicas. Críticas à proposta apontam para o risco de perda de eficiência e dificuldades de definir o que conta como robô.

Outra categoria afetada pelas transformações do mundo do trabalho é o sindicalismo. Historicamente, os sindicatos cumpriam três objetivos:

  1. redistribuição econômica, com salários maiores para trabalhadores menos qualificados;
  2. condições melhores no local de trabalho, com a alocação de direitos de controle dentro da firma; e
  3. representação política.

Todos esses papéis estão sofrendo erosão. Plataformas de “microtarefas” ou “crowdwork”, da qual a mais conhecida é a Mechanical Turk (MTurk), da Amazon, põem diretamente em relação a demanda e a oferta por trabalhos pontuais. A mobilidade de capital na Era da Globalização permite a empresas escolher a localização de seus negócios segundo a facilidade de encontrar trabalhadores.

Existe um dilema ou uma armadilha perante o movimento sindical: defender os empregos tradicionais nos setores tradicionais ou tentar organizar os trabalhadores em situação precária dessas novas plataformas. O trabalho, aos olhos das empresas contratantes de serviços na economia de plataformas, parece um recurso global virtualmente inesgotável e disponível, para o qual foi criada uma nova expressão: “nuvem humana”.

Na tentativa de tornar o ambiente de trabalho mais previsível, a União Europeia adotou no primeiro semestre a Diretiva da União Europeia sobre as Condições de Trabalho Previsíveis e Transparentes, uma tentativa de atualizar as leis do trabalho por meio do acesso à informação.

A diretiva visa estender a trabalhadores do sistema de plataforma, com contratos temporários ou intermitentes e demais formas de trabalhar no século XXI, proteções que eram previstas para trabalhadores empregados regularmente. Esta extensão vale para algo entre 2 e 3 milhões de trabalhadores na Europa, o que é uma porcentagem muito baixa.

Tentativas de organizar o trabalho no mundo digital e de plataforma empregam ferramentas antigas e novas. A tradicional forma da greve apareceu em duas ocasiões recentes, primeiro em 2016, quando os entregadores do aplicativo Deliveroo na Inglaterra pararam, e em seguida em maio deste ano, quando motoristas dos aplicativos Uber e Lyft nos EUA protestaram por melhores pagamentos e informações sobre as corridas.

Ferramentas novas são aplicativos e softwares pelos quais os trabalhadores se comunicam e podem decidir em conjunto formas de melhorar suas condições de trabalho ou sua remuneração. É o caso do Turkopticon, criado por prestadores de serviço da plataforma MTurk. Trata-se de uma barra de tarefas acoplada ao navegador, pela qual os contratantes são avaliados pelos trabalhadores em categorias como valor, dificuldade do trabalho e pontualidade do pagamento.

Neste contexto, além da perda de empregos e da precarização do trabalho, uma terceira preocupação diz respeito às condições onde as pessoas trabalham. As tecnologias digitais permitem os desempenhos dos empregados e dos prestadores de serviços serem avaliados constantemente e em detalhe, tanto pelos empregadores quanto pelos clientes. São chips RFID, câmeras de vigilância, ferramentas de geolocalização, softwares de controle, telefones. Tanto nos EUA como na Europa, já podemos verificar esse olhar constante em cima dos empregados começando a erodir a relação de confiança deles com os empregadores.

Por outro lado, mesmo se a profecia de Keynes de menor jornada de trabalho não se concretizou até hoje, a quarta Revolução Industrial relança a possibilidade de agora ser o momento. Apesar da diluição entre tempo de lazer e tempo de trabalho percebida por muitos profissionais urbanos, nos países industrializados, incluindo o Brasil, o número médio de horas trabalhadas por ano diminuiu significativamente desde as décadas de 50/70. Mesmo assim, isso não significa a necessidade de trabalhar estar sendo substituída pelo ócio, como queria o economista inglês.

Duzentos anos de história industrial mostram o tempo de trabalho não ter diminuído ‘mecanicamente’ pela automatização da produção. Há ceticismo quanto às teorias do fim do trabalho. Ao contrário, quem automatiza algumas de suas tarefas procura produzir mais, em vez de trabalhar menos, e quem investiu em maquinário buscará amortizar o investimento. Foi o que ocorreu com a introdução das máquinas a vapor no setor têxtil inglês da década de 1840.

A redução do tempo de trabalho só aconteceu quando os próprios trabalhadores exigiram, e geralmente após longos conflitos sociais. Assim, além da evolução tecnológica, que gera ganhos de produtividade, é preciso mobilizar os trabalhadores e eles reivindicarem sua parte nesses ganhos sob a forma de trabalhar menos. Algo parecido aconteceu no século XIX, quando o mote dos movimentos sindicalistas nascentes era a divisão do dia em três períodos iguais de oito horas: um para o descanso, outro para o lazer e o último para o trabalho. Daí surgiu a jornada de oito horas.

Uma das razões para a profecia de Keynes não se realizar está em imperativos econômicos. Em trabalhos muito complexos, o custo de comunicação dentro da equipe é maior se temos várias pessoas com jornadas curtas de trabalho do que se colocamos toda a responsabilidade na mão de uma pessoa só. As empresas preferem pagar bem para um indivíduo de modo ele acabar trabalhando muito mais.

Oficialmente, as jornadas de trabalho chegaram a ser reduzidas na Europa, sobretudo a partir da década de 80. No ano passado, sindicatos da indústria metalúrgica e empregadores alemães chegaram a um acordo para uma jornada de 28 horas. A novidade na Alemanha é a redução acontece sem redução de salário, ao contrário do ocorrido na França desde François Mitterrand [1916- 1996]. É como se o empresário dissesse: um dia por semana o robô vai trabalhar para o operário, este pode ir para casa.

O trabalho não é só uma atividade produtiva, é também uma maneira de se inserir na sociedade, encontrar um lugar nela, ser reconhecido. Isto se refere às plataformas digitais e no parcelamento de tarefas (“microwork”) como “taylorismo digital”. Promove uma “tendência à mercantilização do trabalho”. Como resultado, a função social do trabalho tende a desaparecer. Mas ela é primordial para a coesão de uma sociedade.

Por isso, a mudança das condições de trabalho é um dos fatores da instabilidade política capaz de atingir muitos países nesta década. A insegurança no trabalho e as diferentes formas de precarização social fazem parte da mistura. Ela acaba provocando a cólera de parte da população ao redor do mundo.

A noção de “trabalho decente” usada pela OIT foi adotada a partir da Declaração de Filadélfia, de 1944, quando a Segunda Guerra Mundial (1939- 1945) caminhava para seu fim. Assim como no documento fundador da entidade, de 1919, a regulação das relações de trabalho é considerada na declaração como um mecanismo importante de coesão social capaz de resolver conflitos sem violência.

A guerra mundial foi em parte resultado da crise dos anos 1930. Ela permitiu a regimes autoritários mobilizar grandes populações. Assim como tinham visto em 1919, sob impacto também da Revolução Russa e da quase revolução alemã, os delegados entenderam: sem condições decentes de trabalho, a paz é muito precária.

Redução da Jornada Semanal de Trabalho com Manutenção da Renda do Trabalho para Redistribuir a Produtividade Robótica publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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