domingo, 8 de dezembro de 2019

Modelo de Gestão do Futebol Brasileiro: da Comunidade para a Autorregulação do Mercado e/ou a Fiscalização Governamental

Graziella Valenti e Luiz Henrique Mendes (Valor, 27/11/2019) avaliam: os títulos conquistados pelo Flamengo, campeão brasileiro e da Libertadores, consagra o entendimento de a força e a capacidade financeira, com boa gestão, alteram o placar. Não garantem título, mas aumentam a chance. Contudo, com raríssimas exceções, o Brasil está para lá de atrasado no debate sobre profissionalização e organização das finanças no futebol. Há assuntos financeiros até proibidos de se discutir em clubes de futebol, como se a razão não pudesse conviver com a paixão quando o tema é a camisa.

Mas, queiram os apaixonados ou não, as finanças dos clubes entrarão de forma definitiva no roteiro esportivo em 2020. Junto com o equilíbrio das contas, o debate sobre clubes se transformarem em empresas ou criarem companhias exclusivas para o futebol, atraindo investidores, está na ordem do dia.

O vitorioso clube da Gávea passou por uma troca importante de gestão há seis anos e reduziu a dívida de R$ 750 milhões a R$ 460 milhões. Dessa forma, conseguiu investir R$ 190 milhões no ano passado, vindo de um piso de R$ 22 milhões em 2014, quando a nova administração fez secar a torneira para dar conta dos compromissos. Dos números, ninguém foge.

Ainda neste ano, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) deve anunciar um programa de ratings para avaliar a situação econômica de cada clube. Conhecido como Fair Play Financeiro, o modelo de fiscalização já é aplicado pela União das Associações Europeias de Futebol (UEFA) e visa cultivar a responsabilidade financeira, para promover um ambiente saudável.

A discussão também vem rapidamente ganhando corpo no Congresso Nacional — embora com participação tímida ou quase nula dos protagonistas, os clubes. Há dois projetos de lei em marcha para tentar criar caminhos para que cada time possa equilibrar suas contas e viabilizar uma mudança de tipo social para empresa com avanços em governança. Os textos têm orientações diversas e, cada qual, um padrinho político peso-pesado em Brasília.

A dobradinha ‘Fair Play e modelo empresarial’ já começou a criar o dilema de tostines: virar empresa deve vir depois de arrumar as contas ou é o caminho para isso?

O debate precisa dar conta de duas fragilidades para mudar o panorama do esporte mais popular do país —e, por isso, com maior potencial econômico. Sem dúvida, a gestão financeira, problema que coloca clubes tradicionais como o Botafogo à beira do abismo, é um deles. Mas não é suficiente. A estrutura política dos clubes remonta ao período do futebol amador do século XX em muitos casos e está na berlinda. Resolver a governança, portanto, está nesse mesmo pacote.

Hoje, a isenção dos clubes para impostos corporativos — por serem associações sem fins lucrativos — e a falta de visão de negócios dos dirigentes são unanimemente apontados como os dois grandes entraves para a adesão ao modelo empresarial. A falta de percepção coletiva dos clubes para seguirem bons exemplos dos rivais fora dos campos, o motivo para a discussão não ser mais rápida e eficiente para os próprios.

No Congresso, o projeto que parece mais avançado no momento é o relatado pelo deputado Pedro Paulo (DEM-RJ). Ele tinha votação em plenário prevista para logo, mas, nem de longe, agrada a todos. Exceto os clubes que o veem como uma tábua de salvação — como os de situação financeira calamitosa —, a avaliação é que a proposta vai criar uma diferença significativa e artificial entre os clubes. O pilar do projeto é criar incentivos para os clubes abandonarem a forma associativa e se transformarem em empresas.

A proposta de Pedro Paulo é apoiada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e prevê facilidades tributárias, adesão imediata à recuperação judicial e possibilidade para captação de recursos incentivados aos clubes que se transformarem em empresas, sejam elas limitadas ou sociedades anônimas.

Críticos da proposta argumentam um novo Refis (o último perdão de dívidas é de 2015) é um prêmio a clubes não cumpridores das obrigações, na contramão do exemplo do Flamengo. Este ficou anos sem títulos de expressão até reorganizar a casa. O projeto do deputado também enfrenta resistências do Ministério da Economia.

Um segundo projeto de lei conta com a simpatia do governo e está no Senado. Registrado pelo senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a proposta de lei prevê a criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Abre caminho para a criação do Novo Mercado do Futebol e tenta formar um ambiente seguro para atrair investidores. O modelo se inspira no feito na bolsa de valores, pela via da autorregulação, com a criação de um segmento especial de governança, na tentativa de restabelecer a confiança dos investidores no mercado de ações brasileiro.

O texto desse projeto é dos advogados Rodrigo Monteiro de Castro e José Francisco Mansur. Eles há cinco anos se dedicam a criar formas de aproximar o futebol de investidores privados. Especializado em legislação societária, Monteiro de Castro explicou: a SAF permitirá os clubes oferecerem um ambiente estável para atrair investimentos — seja na forma de sociedade ou de emissão de dívida. O esforço do senador Pacheco tem apoio de Afif Domingos, secretário do ministro da Economia Paulo Guedes e designado por ele a cuidar do tema.

“A SAF é voluntária e tem vários caminhos. O clube pode migrar de modelo e ser empresa ou pode se manter clube e ser dono da empresa de futebol”, explicou o advogado. A proposta está na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado e, após a tramitação, segue para a Comissão de Educação, Cultura e Esporte, com decisão terminativa, sem necessidade de ir a plenário. Cumprido o rito, vai à Câmara.

O conteúdo focado em economia tem conquistado apoio de participantes do mercado de capitais atentos ao momento quando a paixão se tornará oportunidade — dado o potencial do Brasil como mercado consumidor e fonte de talentos.

“Se houver uma legislação segura, que traga também governança, eu sou comprador”, afirmou Marcos Duarte, sócio fundador da gestora Polo Capital, usando a expressão máxima do mundo financeiro para demonstrar interesse de investimento. “Há um indústria bilionária de investidores especializados lá fora. Estamos perdendo tudo isso”.

A gestora carioca foi pioneira em produtos financeiros quando lançou, em 2012, um fundo de recebíveis dos direitos pagos pela TV Globo pelo Campeonato Brasileiro, como forma de antecipar receita aos clubes. A carteira vem sendo renovada ano a ano e já mobilizou entre R$ 600 milhões e R$ 700 milhões nesse período. Duarte conhece de perto o drama da má gestão dos clubes. Na visão dele, só a profissionalização, com uma gestão empresarial, pode salvar o futebol nacional.

Rodolfo Richter, presidente do banco Brasil Plural, também acompanha o desenvolvimento do tema com interesse. “Existindo produtos robustos disponíveis, há muita gente para investir e muita coisa para explorar”, afirmou. Por produtos, entende-se desde títulos de dívida até ações e outras estruturas.

“O produto seleção brasileira está perdendo charme, em parte como reflexo da desorganização do tema no país, e com isso, enormes oportunidades. No mundo, o futebol já é um grande produto. Os clubes estão acomodados e os torcedores ainda não entenderam a dinâmica”, disse o presidente do Brasil Plural.

Enquanto o faturamento da UEFA, entidade máxima do futebol na Europa, foi de 2,8 bilhões de euros no ano passado, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) teve receita equivalente a 140 milhões de euros. O Brasil, exportador de pé de obra, respondeu por aproximadamente 10% das transações com jogadores do mundo no último ano.

Entre os clubes brasileiros, o Flamengo está na liderança. Se levar o Mundial de Clubes, em dezembro, poderá ver a receita chegar perto de R$ 950 milhões, bem acima dos R$ 510 milhões do ano passado. O rubro-negro deve ser o primeiro time bilionário do Brasil. Ainda assim, mesmo com uma das maiores torcidas do planeta, com 40 milhões de pessoas, o volume é uma fração dos mais de 750 milhões de euros (o equivalente a R$ 3,5 bilhões) de faturamento que o Real Madrid, maior campeão de clubes da Europa, teve em 2018.

A situação flamenguista contrasta com a média dos times brasileiros. “Pelo menos metade dos clubes da Série A do futebol têm problemas financeiros graves”, enfatizou César Grafietti, consultor do Itaú BBA e maior especialista em finanças do futebol, em entrevista ao Valor.

“Só virar empresa não é garantia de solução. Mas a experiência demonstra que a combinação de métricas de controle, como o Fair Play Financeiro, e adoção do modelo de empresa é o melhor caminho. O Brasil tem times que não conseguem se resolver sem dinheiro novo. Nem 30 anos de Fair Play Financeiro dariam jeito”, disse o consultor em evento recente sobre o assunto, realizado pelo site “No Ângulo”, no Museu do Futebol, na capital paulista.

O projeto da SAF tem como finalidade maior permitir que os clubes encontrem uma forma de ser mais atrativos para investidores. “São as garantias da Lei das S.A. com uma régua mais alta de governança e transparência de acionistas, que são questões importantes para dar segurança nesse segmento dada as enormes desconfianças”, afirmou Monteiro de Castro.

O modelo estabelece em lei parâmetros mínimos para tentar blindar e dar independência à gestão, além de exigir abertura de dados dos sócios até a pessoa física. Por sua vez, como donos ou minoritários, os clubes teriam direitos políticos preservados para questões-chaves (como manutenção do escudo) e garantia de dividendos, o que ajudaria a custear o clube social, que ficaria desvinculado das operações do futebol. “Tudo isso se traduz em previsibilidade e confiança”, na visão do senador Pacheco, responsável pela iniciativa.

Richter, do Brasil Plural, destacou que o caminho da SAF é voluntário e isso é essencial. “É a mesma coisa que a bolsa fez ao não banir as ações preferenciais quando criou o Novo Mercado, onde são aceitas empresas apenas com ações ordinárias.”

A bolsa anunciou o Novo Mercado em 2000. A primeira adesão ocorreu somente dois anos depois quando todos já duvidavam do sucesso da medida. Hoje, 140 das 328 empresas com ações listadas na B3 estão nesse segmento especial. A criação desse espaço diferenciado, junto com a reforma da Lei das S.A. em 2001 e a regulamentação para ofertas públicas de ações, foi determinante para a revitalização do mercado brasileiro.

Mesmo clubes com balanço em dia, como o Palmeiras, são criticados por problemas de governança. No alviverde, o excesso de papéis exercidos por Leila Pereira, da financeira Crefisa, patrocinadora do time, é questionado. Cotada para disputar a presidência do clube em 2021, a empresária é ao mesmo tempo credora, patrocinadora do clube e da torcida organizada.

Entre especialistas dedicados ao futebol, parece consenso que um perdão de dívidas só adiaria a crise. Para defensores da transformação em empresas, o choque de capitalismo poderia oferecer uma solução para aprimorar a governança, garantindo segurança jurídica a potenciais investidores.

Fanático pelo São Paulo Futebol Clube, que já foi considerado um exemplo de gestão e amarga uma seca de títulos desde 2012, o empresário Abilio Diniz viu frustrados os planos de ajudar na mudança da administração do tricolor paulista. Ele chegou a bancar uma auditoria da PwC para apontar alternativas para o clube, que ainda é extremamente dependente da venda extraordinária de jogadores para fechar as contas. Mas divergências políticas abortaram o projeto e provocaram a desistência de Abilio, que foi criticado por financiar uma torcida organizada e acabou se afastando do conselho consultivo do São Paulo.

“Não acreditava que aquela direção fosse ter sucesso na implementação das recomendações. Desejei sucesso a eles e me afastei pois não queria fazer críticas e tumultuar a situação”, afirmou Abilio ao Valor, por meio de sua assessoria.

Na avaliação dele, o Flamengo é um exemplo de que uma boa gestão ganha jogo. A transformação dos clubes em empresas, acrescentou, já deveria estar mais avançada. “Antes tarde do que nunca. E não basta só atuar em Brasília para aprovar uma lei. É preciso atuar junto aos clubes, onde velhas práticas e velhos grupos se atrelam ao poder”, disse o empresário.

Por ora, os clubes que seguiram esse caminho são de menor porte, como o Botafogo de Ribeirão Preto, que é comandado desde o ano passado por um grupo de investidores liderados por Adalberto Baptista, da farmacêutica Aché. Reunidos na Trex Holding, injetaram R$ 8 milhões no clube e assumiram 40% do capital.

“Resolvemos enfrentar a questão tributária. É um ponto negativo do nosso movimento estratégico, mas apostamos em gestão para que a produtividade nos dê vantagem no longo prazo”, afirmou o advogado Gustavo Oliveira, membro do conselho de administração do Botafogo e filho de Sócrates, ídolo histórico do clube do interior paulista.

Na avaliação de Oliveira, que no passado foi dirigente do São Paulo e do Santos, o ambiente político é danoso para os clubes. “É mais fácil fazer na empresa porque você afasta o ambiente político, embora possa haver alguma sociedade entre clube e investidor, que tenha a gestão [modelo do Botafogo]”, sustentou.

Exemplo de boa gestão, o Flamengo não alterou sua estrutura e nem entende que a transformação em empresa seria necessária, a menos que exista um projeto específico de captação de recursos. A avaliação interna é que o clube está coeso o suficiente para não perder a responsabilidade financeira como norte, mesmo que o grupo político de Rodolfo Landim, atual presidente, seja derrotado.

Apesar da euforia do momento, há quem diga que o modelo precisa de mais anos para se provar consolidado. “Está tudo bem agora porque quem está lá está fazendo direito. Mas que garantia existe de continuidade da gestão? Em uma empresa, há muito mais estabilidade na administração e, ao mesmo tempo, espaço para mudanças quando há insatisfação”, comentou um ex-gestor de uma grande casa carioca.

Mas não é só a busca de oportunidades por agentes de mercado e a atuação da CBF, impulsionada por determinações da própria Federação Internacional do Futebol (FIFA), que trazem o debate sobre o tipo societário dos clubes. A realidade das contas é o fator de maior pressão. Enquanto a receita corrigida dos clubes da Série A subiu de R$ 4,2 bilhões para R$ 5,2 bilhões, de 2013 a 2018, a dívida efetiva dos clubes avançou muito mais rápido, de R$ 5 bilhões para R$ 6,8 bilhões. “A dívida não é o problema. É o sintoma da má gestão. Como as contas dos clubes não fecham, eles tomam dívida para cobrir o déficit”, explicou Grafietti, responsável pelo levantamento.

A questão gera um problema que se retro-alimenta. A estratégia recorrente para resolver os problemas é vender jogadores. A formação do atleta começa no Brasil, mas é lá fora que o profissional termina de desenvolver seu potencial.

A geração de caixa, medida pelo lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização financeira (Ebitda), dos times da Série A deixa claro o que a venda de jogadores representa. O Ebitda dos clubes em 2018 foi R$ 1,1 bilhão. Mas o resultado recorrente, excluídas essas transações, foi de apenas R$ 37 milhões. Se Flamengo e Palmeiras, times de melhor gestão, forem retirados do cálculo, o número é negativo.

Na visão de Pedro Paulo, é essa situação que exige medidas diretas, daí sistemas e regimes diferenciados para as dívidas (Confira os detalhes na versão do site). Ele rejeita a classificação recorrente ao seu projeto como “assistencialista”, por prever facilidades a quem aderir ao modelo de empresa.

“Defendemos o modelo empresarial. Só não acho necessária a criação de um modelo específico de sociedade. A governança do time não precisa estar na lei, embora nosso projeto também tenha avanços nesse quesito”, acrescentou o deputado.

No futuro, os projetos não podem coexistir e deve haver alguma consolidação durante a tramitação no Congresso. A reportagem ouviu diversos clubes sobre o tema e a percepção é que o assunto está distante da pauta do dia de muitos ainda.

Com as contas equilibradas e segurança jurídica, não são poucos os que apostam que os times brasileiros podem ser empresas de capital aberto com ações listadas na bolsa. O texto dos advogados Monteiro de Castro e Mansur tenta deixar o caminho pavimentado nessa direção. No mundo, os maiores expoentes dos times de capital aberto são Juventus e Roma, na Itália, Manchester United, na Inglaterra, Ajax, na Holanda, e Porto, em Portugal.

O jurista especialista em direito societário Nelson Eizirik avaliou que a proposta da SAF tem toda condição de criar a estabilidade necessária, pois terá tramitação pelo Congresso. Com críticas pontuais ao texto, acredita que o projeto abrange os principais desafios que dificultam a adoção do modelo empresarial pelos clubes.

Elias Albarello, diretor executivo financeiro do São Paulo, acredita que, de fato, esse é o futuro. E que seria saudável para os times essa evolução. Contudo, defende que a mudança seja gradual. Na visão do executivo, é importante, antes de tudo, que os clubes se adaptem ao Fair Play Financeiro. O modelo empresarial, de capital aberto ou não, seria um passo posterior à conquista do equilíbrio de contas, avaliou. O São Paulo já fez um estudo para segregar o futebol e se transformar em empresa, mas o conselho ainda não avaliou essa questão.

Já os autores de ambos os projetos em andamento no Congresso pensam diferente. Para os envolvidos em ambas as iniciativas, a adoção de uma estrutura empresarial é justamente uma possível saída para a melhoria das finanças, seja pela renegociação de compromissos velhos ou pelo ingresso de novos recursos, via sociedade ou dívida mais barata.

Grafietti, do Itaú BBA, estima o custo médio da dívida privada dos grandes clubes estar em CDI mais 7% ao ano. “Varia conforme a situação das contas. É sempre alto, podendo estar entre CDI mais 5% ao ano até CDI mais 15%”, disse.

Modelo de Gestão do Futebol Brasileiro: da Comunidade para a Autorregulação do Mercado e/ou a Fiscalização Governamental publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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