Yuval Noah Harari, no livro “Homo Deus: Uma breve história do amanhã” (São Paulo: Companhia das Letras; 2015), narra: cada vez com mais frequência indivíduos, organizações, corporações e governos estão pensando muito seriamente na busca da imortalidade, da felicidade e de poderes divinos.
Companhias de seguro, fundos de pensão, sistemas de saúde e ministérios de Fazenda estão horrorizados com o salto na expectativa de vida humana. As pessoas estão vivendo muito mais do que se esperava. Não há dinheiro suficiente para pagar sua aposentadoria e os tratamentos médicos de que necessitam. Especialistas defendem a elevação da idade de aposentadoria e a reestruturação do mercado de trabalho.
Quando nos damos conta da rapidez com que nos aproximamos do grande desconhecido, e de que não podemos contar nem mesmo com a morte para nos proteger disso, nossa reação é esperar que alguém pise nos freios para nos desacelerar. Mas não podemos pisar nos freios, por diversas razões.
Primeiro, ninguém sabe onde os freios estão. Embora alguns especialistas conheçam bem os desenvolvimentos em algum campo, como é o caso da inteligência artificial, da nanotecnologia, de megadados ou da genética, ninguém é especialista em tudo. Ninguém, portanto, é capaz de ligar todos os pontos e enxergar o quadro completo.
Os diversos campos influenciam uns aos outros de maneiras tão intricadas que mesmo as mentes mais avançadas não conseguem prever como descobertas em inteligência artificial podem impactar a nanotecnologia, ou vice-versa. Ninguém consegue absorver todas as recentes descobertas científicas, ninguém é capaz de predizer qual será o aspecto da economia global daqui a dez anos, e ninguém tem uma pista de para onde estamos indo nessa carreira desabalada. Como ninguém compreende o sistema como um todo, ninguém pode fazê-lo parar.
Segundo, se alguém de algum modo conseguir pisar nos freios, nossa economia vai entrar em colapso, assim como a sociedade. Como será explicado em um capítulo adiante do livro “Homo Deus: Uma breve história do amanhã”, a economia moderna precisa de um crescimento constante e por tempo indefinido para sobreviver.
Se o crescimento parar, a economia não vai se ajustar num patamar mais baixo, num equilíbrio aconchegante: ela se despedaçará. É por isso que o capitalismo nos incentiva a buscar a imortalidade, a felicidade e a divindade.
Há um limite para o número de sapatos que podemos calçar, para o número de carros que podemos guiar e para os dias de férias que podemos usufruir. Uma economia construída sobre um crescimento perpétuo apresenta uma necessidade interminável de projetos — tais como a busca da imortalidade, da felicidade e da divindade.
Quando o procedimento de seleção in vitro se tornar aceitável e barato, seu emprego poderá se disseminar. Mutações constituem um risco onipresente. Todas as pessoas carregam em seu DNA algumas mutações danosas e alelos – cada uma de duas ou mais formas alternativas de um gene, quando podem formar-se por mutação genética uns a partir dos outros, podem substituir-se em um mesmo locus de um cromossomo e desempenham a mesma função em uma célula. Eles estão aquém da condição ótima. A reprodução sexual é uma loteria.
Uma anedota famosa — e provavelmente apócrifa — conta de uma conversa, em 1923, entre o prêmio Nobel de Literatura Anatole France e a bela e talentosa dançarina Isadora Duncan. Debatendo o então popular movimento pela eugenia, Duncan disse: “Imagine só uma criança com a minha beleza e o seu cérebro!”. France retrucou: “Sim, mas imagine uma criança com a minha beleza e o seu cérebro”.
Bem, se é assim, por que não viciar a loteria? Fertilize vários óvulos e escolha aquele que apresentar a melhor combinação. Desde que a pesquisa com células-tronco nos permite criar um suprimento ilimitado de embriões humanos com baixo custo, é possível selecionar o bebê ideal entre centenas de candidatos, todos carregando nosso DNA, todos perfeitamente naturais, e nenhum deles requerendo uma engenharia genética futurista. Se fizermos a iteração desse procedimento por algumas gerações, facilmente obteremos super-humanos (ou uma repugnante distopia).
Claro que os humanos podem limitar e limitam o uso de novas tecnologias. Os movimentos favoráveis à eugenia deixaram de ser apoiados depois da Segunda Guerra Mundial, e, embora o comércio de órgãos humanos atualmente seja não só possível como potencialmente muito lucrativo, ainda é visto como uma atividade marginal. Um dia projetar bebês pode se tornar tecnologicamente tão exequível quanto assassinar pessoas para colher seus órgãos, mas continua a ser algo marginal.
Assim como escapamos das garras da Lei de Tchékhov na guerra, podemos também escapar em outros campos de ação. Algumas armas aparecem no palco sem que jamais sejam disparadas. Por isso é tão vital pensar numa nova agenda para a humanidade. Exatamente porque temos alguma opção no que concerne ao uso de novas tecnologias, é melhor que compreendamos o que está acontecendo e tenhamos uma opinião a respeito, antes que isso tenha uma opinião por nós.
Evolução Caótica de um Sistema Complexo: Afastamento das Condições Iniciais publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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