domingo, 28 de abril de 2019

Epílogo do livro “O Terceiro Pilar”

Raghuram Rajan, no livro “O Terceiro Pilar” (The Third Pillar: How Markets and The State leave The Community Behind. New York: Penguim Press; 2019), argumenta: os três pilares de apoio à Sociedade – o Estado, os Mercados e a Comunidade – estão em constante fluxo, atingidos por choques econômicos e tecnológicos. A sociedade perpetuamente luta por um novo equilíbrio, através de um reequilíbrio dos pilares.

A revolução das TIC, acompanhada pela Crise Financeira Global de 2007–2008, mais uma vez destacou a necessidade de um reequilíbrio. Eleições recentes em todo o mundo desenvolvido sugerem que as pessoas estão profundamente insatisfeitas com o estado atual das coisas.

A revolução das TIC criou uma meritocracia. Ela é quase hereditária em alguns países desenvolvidos. Além disso, em reação à competição gerada pelos mercados globais, os poderosos, como grandes corporações e profissionais, criaram enclaves protegidos para si mesmos, aumentando ainda mais os benefícios de fazer parte da alta meritocracia.

Para o resto, fora dos enclaves murados e moídos, a competição de homens e máquinas de todo o mundo tem sido feroz. Para os desprotegidos, novas oportunidades, preservadas para os privilegiados por muros de credenciais e licenças, têm sido difíceis de acessar, em parte porque as escadas educacionais têm sido muito curtas e frágeis.

Em parte, eles também foram inacessíveis porque as maiores oportunidades surgiram nas cidades globais, onde o espaço limitado e as leis de zoneamento tornaram a residência inacessível para a maioria.

Quando a atividade econômica se afastou das comunidades rurais e semi-urbanas, o desespero e a desintegração social se instalaram. Com o establishment desacreditado, há um desejo generalizado de novas respostas.

Os demagogos da esquerda e da direita propõem respostas que as pessoas querem ouvir, não o que devem ouvir. Com muita frequência, há outra pessoa ou outra coisa para culpar. Então, simploriamente, se impõe o fardo da mudança para outro lugar. Isso é reconfortante para o público deles, mas perigosamente enganoso. A realidade é todos nós sermos parte do problema e todos nós podemos ser parte da solução.

Nos últimos cinco capítulos, Rajan traçou um caminho possível para um novo equilíbrio, uma forma de resistir à diminuição aparentemente inexorável da Comunidade, mesmo preservando o acesso aberto proporcionado pelos Mercados. A intenção é construir os pilares, em vez de reduzi-los ao menor denominador comum.

A essência desse novo equilíbrio é a rede de segurança no nível da comunidade, porque o localismo inclusivo tenta ampliar e equalizar as oportunidades. Ele permite os membros de cada comunidade participarem e se beneficiarem dos mercados globais.

O caminho proposto se baseia no possível hoje. Rajan não defende a eliminação de nenhum dos pilares – não recomenda a eliminação dos Mercados e da propriedade privada, nem sugere colocar tudo, incluindo a governança, à venda.

O Estado é necessário, mas tem que ceder poder à Comunidade e pode ser muito mais efetivo. A Comunidade é essencial para expressarmos nossa humanidade, mas ela precisa criar espaço nos Mercados e no Estado para florescer. Mesmo que pareça moderado, o caminho da reforma é ambicioso, pois evita soluções fáceis, mas muitas vezes erradas.

Nós também precisamos reconhecer realidades. No fundo, a grande maioria de nós reconhece o humano um no outro. No entanto, precisamos chegar perto o suficiente para fazer isso e, com muita frequência, rotulamos à distância. Compreensão e tolerância de outras culturas não é uma fraqueza, não é um sinal de patriotismo inadequado, não é uma indicação de que somos “cidadãos do nada”.

Na realidade, isso reflete nossa preparação para o mundo de amanhã, onde nos tornaremos cada vez mais misturados como povos, ao mesmo tempo onde estudaremos, valorizaremos e preservaremos nossa herança cultural coletiva.

O mundo ainda não chegou lá. Portanto, precisamos dar passos menores e mais fáceis, onde haja espaço para todos, à medida que desenvolvemos uma melhor compreensão mútua.

O fortalecimento das comunidades próximas não apenas permitirá a existência de uma diversidade de visões, incluindo as mais tribais e as mais cosmopolitas. Também nos permitirá preservar a interação social direta. Ela pode muito bem ser onde estão os empregos do futuro, à medida que a automação esgota os empregos em setores que produzem bens e serviços comerciais.

Talvez as mudanças prestes a nos atingir sejam mais extraordinárias em lugar de qualquer coisa jamais vista. Talvez a maioria de nós esteja desempregada em uma década, tornada redundante por robôs e superinteligência artificial generalizada.

Rajan duvida, porque desde os anos 1950 os especialistas previam a inteligência artificial generalizada gerando desemprego tecnológico. Os algoritmos capazes de substituir totalmente os humanos estão a menos de duas décadas de distância, mas Rajan também não teme esse resultado, caso preservemos o equilíbrio entre os três pilares.

Se estivermos desempregados, significará as máquinas estarem fazendo nosso trabalho mais barato. Logo, o custo de bens e serviços cairá e a qualidade deles aumentará, para refletir a maior produtividade das máquinas. Como Keynes argumentou há quase cem anos, “ficaremos livres para contemplar os elementos mais sutis da nossa existência, para criar e valorizar a grande arte e a beleza, para valorizar o bem e não apenas para o sucesso comercial”.

Muitos de nós temem não termos a renda para uma vida tão boa, porque as máquinas serão de propriedade de poucos e toda a renda fluirá para elas. No entanto, como nossa excursão pela história sugere, os valores sociais mudam. Nós glorificamos o guerreiro vitorioso, nos voltamos para louvar mercadores e banqueiros, hoje colocamos empresários de sucesso em um pedestal, e podemos exaltar trabalhadores da comunidade amanhã.

Se a distribuição da riqueza se desviar para uns poucos, os poucos podem decidir a acumulação de riqueza ser inconveniente e encontrar maneiras de devolvê-la. A sociedade ajudará nesse processo, silenciando seus aplausos para os capitães da indústria, dedicados só à acumulação, ao mesmo tempo aumentando o apoio para aqueles capazes de distribuírem sabiamente. De fato, isso já parece estar em andamento com o Giving Pledge, reunindo bilionários em todo o mundo com a promessa de doar pelo menos metade de sua riqueza.

Mesmo se os valores não mudarem, o temido resultado da pobreza em massa em meio à abundância produtiva não se concretizará se mantivermos nossa democracia e a separação entre corporações gigantescas e o Estado leviatã. Os direitos de propriedade são uma construção social, criada e aplicada apenas com a tolerância das pessoas.

Se os rendimentos e a riqueza se desviarem mais para alguns proprietários, a democracia deixará de proteger a propriedade de poucos para a preservação de oportunidades para muitos, como já fez antes. Dessa forma, a coalizão do gigante corporativo e do leviatã estatal, subvertendo a democracia para impor os direitos de propriedade de poucos e a pobreza para muitos, pode ficar no meio do caminho.

Essa possibilidade ainda está no futuro, e precisamos garantir nunca chegarmos lá, mantendo nossa democracia forte e vigilante, e o reino do mercado e do governo separados. O caminho que proponho nos ajudará a fazer isso.

Um problema mais imediato enfrentado por muitos países diz respeito ao envelhecimento da população. Em um futuro próximo, alguns países terão um excesso de empregos de cuidadores, os quais serão precisos serem ocupados, ao invés de poucos empregos.

Senão, teremos excesso de capital físico – infraestrutura, instalações e maquinário, edifícios e casas – e todos serão desperdiçados por carência de renda e demanda agregada. Para países como o Japão, com populações amplamente homogêneas, a tentação será usar mais máquinas-robôs cuidadores de idosos, evitando assim os problemas de lidar com a diversidade provinda da imigração.

Essa é uma escolha para os países envelhecidos com populações homogêneas fazerem – escolher a solidão para seus idosos ou aceitar o choque cultural inicial e depois a adaptação. Para os países em envelhecimento com populações já diversificadas, a escolha responsável deve ser a imigração estável e controlada, com o objetivo de integrar os imigrantes e torná-los cidadãos plenos e ativos. Mais uma vez, o caminho proposto por Rajan oferece maneiras de atrair e integrar os imigrantes, mantendo o apoio da população nativa.

Rajan falou pouco sobre um dos nossos problemas mais prementes, a mudança climática e problemas associados, como a escassez de água. Talvez a mudança tecnológica nos permita abordar isso mais facilmente no futuro. Por exemplo, energia renovável barata como energia solar ou eólica, armazenável em baterias grandes e alimentando nossos carros, caminhões e fábricas, pode nos ajudar a reduzir significativamente as emissões de carbono. Se também alimentar plantas de osmose reversa, geradoras de água doce a partir da água do mar, e ajudar a canalizar essa água para o interior, poderemos resolver problemas de escassez de água e transformar muitos dos desertos em terras exuberantes.

Mas também devemos estar preparados para a possibilidade de a tecnologia se desenvolver muito lentamente. Então, teremos de lidar com a mudança climática através de medidas coletivas mais dolorosas.

Não podemos nos permitir um nacionalismo de interesse zero e soma zero se o destino do mundo estiver em questão. Em vez disso, precisaremos de internacionalismo responsável. Ao enfraquecer nossa propensão ao nacionalismo jingoísta, o localismo inclusivo nos permitirá abraçar a responsabilidade como nação.

Finalmente, as excursões históricas neste livro sugerem esperança. Nossos valores não são estáticos – eles mudam. O Dr. Martin Luther King Jr. disse: “O arco do universo moral é longo, mas inclina-se para a justiça”.

Quando visto em curtos trechos, parece a história se repetir, o racismo e o nacionalismo militante periodicamente surgirem no mundo para semear o ódio e gerar conflitos. No entanto, a sociedade a experimentar esses movimentos reacionários não é a mesma, ela tende a ser mais tolerante, mais respeitosa e mais justa.

Em torno dessa linha de tendência, subimos e descemos. Podemos estar em baixa hoje e temos um longo caminho para seguir, mas a distância de onde viemos deve nos dar esperança. Não deixemos o futuro nos surpreender. Em vez disso, vamos moldá-lo. Há muito o que fazer. Devemos o escolher com sabedoria, se queremos viver juntos bem e em paz. Rajan está confiante em ser possível.

Epílogo do livro “O Terceiro Pilar” publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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