domingo, 28 de abril de 2019

Mudança de Autoridade: dos Humanos para o Algoritmo

Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), afirma: s crença liberal nos sentimentos e nas escolhas livres dos indivíduos não é natural, nem muito antiga. Durante milhares de anos as pessoas acreditaram a autoridade provir de leis divinas e não do coração humano. Devíamos, portanto, santificar a palavra de Deus e não a liberdade humana. Só nos séculos mais recentes a fonte da autoridade passou das entidades celestiais para humanos de carne e osso.

Em breve, a autoridade pode mudar novamente — dos humanos para os algoritmos. Assim como a autoridade divina foi legitimada por mitologias religiosas, e a autoridade humana foi justificada pela narrativa liberal, a futura revolução tecnológica poderia estabelecer a autoridade dos algoritmos de Big Data, ao mesmo tempo que solapa a simples ideia da liberdade individual.

Ideias científicas sobre o funcionamento de nosso corpo e cérebro sugerem: nossos sentimentos não são uma qualidade espiritual exclusivamente humana, e não refletem nenhum tipo de “livre-arbítrio”. Na verdade, sentimentos são mecanismos bioquímicos. Todos os mamíferos e todas as aves usam para calcular probabilidades de sobrevivência e reprodução. Sentimentos não se baseiam em intuição, inspiração ou liberdade — baseiam-se em cálculos.

Quando um macaco, um camundongo ou um humano veem uma cobra, o sentimento de medo surge porque milhões de neurônios no cérebro calculam rapidamente os dados relevantes e concluem a probabilidade de morrer ser alta. Sentimentos de atração sexual surgem quando outros algoritmos bioquímicos calculam um indivíduo próximo oferecer alta probabilidade de acasalamento bem-sucedido, ligação social ou algum outro objetivo almejado.

Sentimentos morais como indignação, culpa ou perdão derivam de mecanismos neurais. Evoluíram para permitir cooperação grupal. Todos esses algoritmos bioquímicos foram aprimorados durante milhões de anos de evolução.

Se os sentimentos de algum antigo ancestral cometeram um erro, os genes que configuram esses sentimentos não foram passados à geração seguinte. Assim, sentimentos não são o contrário de racionalidade — eles incorporam uma racionalidade evolutiva.

Normalmente, não nos damos conta de que os sentimentos são na verdade cálculos, porque o intenso processo de cálculo ocorre abaixo do nível da consciência. Não sentimos os milhões de neurônios no cérebro computando probabilidades de sobrevivência e reprodução. Assim acreditamos, erroneamente, nosso medo de cobras, nossa escolha de parceiros ou parceiras sexuais ou nossas opiniões sobre a União Europeia são o resultado de algum misterioso “livre-arbítrio”.

Embora o liberalismo esteja errado ao julgar que nossos sentimentos refletem o livre-arbítrio, confiar nos sentimentos faz sentido, na prática. Isto porque, embora não houvesse nada mágico ou livre no que concerne a nossos sentimentos, eles eram o melhor método em todo o universo para decidir o que estudar, com quem casar e em que partido votar. Nenhum sistema externo pode compreender meus sentimentos melhor do que eu.

Mesmo se algumas instituições me espionassem todo dia a toda hora, elas não teriam o conhecimento biológico e a capacidade computacional necessários para hackear os processos bioquímicos que formam meus desejos e minhas escolhas. Era razoável alegar, na prática, que disponho de livre-arbítrio, porque minha vontade foi formada principalmente pela interação entre forças interiores.

Ninguém no exterior seria capaz de ver. Eu poderia desfrutar da ilusão de que controlo minha arena interior secreta, enquanto quem está de fora nunca seria capaz de compreender o que de fato está acontecendo dentro de mim e como tomo decisões.

Da mesma forma, o liberalismo estava certo ao aconselhar às pessoas seguirem o coração e não os ditames de algum sacerdote ou militante partidário. No entanto, em breve algoritmos de computador poderão nos aconselhar melhor do que sentimentos humanos. Enquanto os espiões dão lugar ao algoritmo, o “livre-arbítrio” provavelmente será desmascarado como um mito, e o liberalismo pode perder suas vantagens práticas.

Estamos agora na confluência de duas imensas revoluções. Por um lado, biólogos estão decifrando os mistérios do corpo humano, particularmente do cérebro e dos sentimentos. Ao mesmo tempo cientistas da computação estão nos dando um poder de processamento de dados sem precedente.

Quando a revolução na biotecnologia se fundir com a revolução na tecnologia da informação, ela produzirá algoritmos de Big Data capazes de monitorar e compreender meus sentimentos muito melhor do que eu. Então, a autoridade provavelmente passará dos humanos para os computadores.

Minha ilusão de livre-arbítrio, provavelmente, vai se desintegrar à medida que eu me deparar, diariamente, com instituições, corporações e agências do governo capazes de compreenderem e manipularem o que era, até então, meu inacessível reino interior.

Isso já está acontecendo no campo da medicina. As decisões médicas mais importantes de nossa vida se baseiam não na sensação de estarmos doentes ou saudáveis, nem mesmo nos prognósticos informados de nosso médico — mas nos cálculos de computadores que entendem de nosso corpo muito melhor do que nós.

Dentro de poucas décadas, os algoritmos de Big Data, alimentados por um fluxo constante de dados biométricos, poderão monitorar nossa saúde 24 horas por dia, sete dias por semana. Serão capazes de detectar, logo em seu início, a gripe, o câncer ou o mal de Alzheimer, muito antes de sentirmos que há algo errado conosco. Poderão então recomendar tratamentos adequados, dietas e regimes diários, sob medida para nossa compleição física, nosso DNA e nossa personalidade, que são únicos.

As pessoas usufruirão dos melhores serviços de saúde da história, mas justamente por isso estarão doentes o tempo todo. Existe sempre algo errado em algum lugar do corpo.

Mudança de Autoridade: dos Humanos para o Algoritmo publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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