Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), afirma: maior parte do dito a respeito do desemprego tecnológico é apenas especulação, claro.
No momento em que ele escrevia — início de 2018 —, a automação acabou com muitos setores da economia, mas não resultou em desemprego massivo. Na verdade, em muitos países, como os Estados Unidos, o nível de desemprego é um dos mais baixos da história.
Harari é historiador e não economista. Parece desconhecer a Teoria do Emprego. Há desemprego tecnológico, é inegável, mas ele pode ser compensado por investimentos público e privado em infraestrutura logística e/ou tecnológica, por exemplo. Novos produtos resultam em nova linha de produção não necessariamente automatizada. Emprego depende de demanda efetiva, isto é, expansão do consumo, investimento privado, gasto governamental e exportação líquida.
Ninguém sabe com certeza qual impacto o aprendizado de máquina e a automação terão em diversas profissões. É dificílimo estimar o cronograma dos desenvolvimentos mais importantes, em especial quando dependem tanto de decisões políticas e tradições culturais quanto de inovações puramente tecnológicas. Assim, mesmo depois que veículos autodirigidos provarem ser mais seguros e mais baratos do que motoristas humanos, políticos e consumidores poderão impedir essa mudança durante anos, talvez décadas.
Contudo, não podemos ser complacentes. É perigoso simplesmente supor que surgirão novos empregos para compensar quaisquer perdas. O fato de isso ter acontecido em ciclos anteriores de automação não é garantia nenhuma de que vai acontecer de novo nas condições muito diferentes do século XXI. As potenciais rupturas social e política são tão alarmantes que, mesmo que a probabilidade de desemprego sistêmico em massa seja baixa, devemos levá-la a sério.
No século XIX, a Revolução Industrial criou novas condições e problemas com os quais nenhum dos modelos sociais, econômicos e políticos existentes era capaz de lidar. O feudalismo, o monarquismo e as religiões tradicionais não estavam adaptados para administrar metrópoles industriais, o êxodo de milhões de trabalhadores ou a natureza instável da economia moderna.
Consequentemente, o gênero humano teve de desenvolver modelos totalmente novos — democracias liberais, ditaduras comunistas e regimes fascistas — e foi preciso mais de um século de guerras e revoluções terríveis para pôr esses modelos à prova, separar o joio do trigo e implementar as melhores soluções.
No século XXI, o desafio apresentado ao gênero humano pela tecnologia da informação e pela biotecnologia é indubitavelmente muito maior do que o desafio que representaram, em época anterior, os motores a vapor, as ferrovias e a eletricidade. E, considerando o imenso poder destrutivo de nossa civilização, não podemos mais nos dar ao luxo de ter mais modelos fracassados, guerras mundiais e revoluções sangrentas. Desta vez, os modelos fracassados podem resultar em guerras nucleares, monstruosidades geradas pela engenharia genética e um colapso completo da biosfera. Portanto, temos de fazer melhor do que fizemos ao enfrentar a Revolução Industrial.
As soluções potenciais cabem em três categorias principais:
- o que fazer para impedir a perda de empregos;
- o que fazer para criar empregos novos; e
- o que fazer se, apesar de nossos melhores esforços, a perda de empregos superar consideravelmente a criação de empregos.
Impedir por completo a perda de empregos é uma estratégia pouco atraente e provavelmente indefensável, porque significa abrir mão do imenso potencial positivo da IA e da robótica. No entanto, os governos podem decidir retardar o ritmo da automação para reduzir seu impacto e dar tempo para reajustes.
A tecnologia nunca é determinista, e o fato de que algo pode ser feito não quer dizer que deva ser feito. A legislação pode bloquear com sucesso novas tecnologias mesmo se forem comercialmente viáveis e economicamente lucrativas.
Por exemplo, durante muitas décadas tivemos tecnologia para criar um mercado de órgãos humanos completo, com “fazendas de corpos” humanos em países subdesenvolvidos e uma demanda quase insaciável de compradores abastados. Essas fazendas de corpos poderiam valer centenas de bilhões de dólares. Mas a lei proíbe o livre comércio de partes do corpo humano, e, embora exista um mercado negro de órgãos, é muito menor e circunscrito do que se poderia esperar.
Retardar o ritmo das mudanças pode nos dar tempo para a criação de novos empregos capazes de substituir a maior parte das perdas. Porém, como já observado, o empreendedorismo econômico terá de ser acompanhado por uma revolução na educação e na psicologia.
Pressupondo que os novos empregos não serão apenas sinecuras públicas, provavelmente exigirão altos níveis de especialização, e, à medida que a IA continua a se aperfeiçoar, os empregados humanos terão de adquirir constantemente novas habilidades e mudar de profissão. Governos terão de intervir, tanto no subsídio a um setor de educação vitalício quanto na garantia de uma rede de proteção para os inevitáveis períodos de transição.
Se um ex-piloto de drone de 41 anos de idade leva três anos para se reinventar como designer de mundos virtuais, provavelmente vai precisar de muita ajuda do governo para sustentar a si e a sua família durante esse período. (Esse tipo de esquema está sendo implantado pioneiramente na Escandinávia, cujos governos seguem o lema “proteger trabalhadores, não empregos”.)
Porém, mesmo que a ajuda do governo seja suficiente, não sabemos se bilhões de pessoas serão capazes de se reinventar repetidamente sem perder o equilíbrio mental.
Portanto, se apesar de todos os nossos esforços um percentual significativo do gênero humano for excluído do mercado de trabalho, teremos de explorar novos modelos de sociedades pós-trabalho, de economias pós-trabalho e de política pós-trabalho. O primeiro passo é reconhecer que os modelos sociais, econômicos e políticos que herdamos do passado são inadequados para lidar com tal desafio.
Tome, por exemplo, o comunismo idealizado por marxistas. Quando a automação ameaça abalar os fundamentos do sistema capitalista, pode-se supor que o comunismo seja capaz de o substituir. Mas o comunismo não foi feito para explorar esse tipo de crise.
O socialismo realmente existente do século XX supôs que a classe trabalhadora fosse vital para a economia, e os pensadores comunistas tentaram ensinar ao proletariado como traduzir seu imenso poder econômico em poder político. O plano político comunista conclamava a uma revolução da classe trabalhadora.
- Que relevância teriam esses ensinamentos se as massas perdessem seu valor econômico e precisassem lutar contra a sua irrelevância, mais do que contra a exploração?
- Como se começa uma revolução da classe trabalhadora se não há classe trabalhadora?
Alguém poderá alegar que humanos nunca se tornarão economicamente irrelevantes, porque, mesmo que não consigam competir com a IA no mercado de trabalho, sempre serão necessários como consumidores. No entanto, não temos certeza se a economia do futuro vai precisar de nós, mesmo como consumidores. Máquinas e computadores poderiam fazer isso também.
Em teoria, Harari dá um exemplo com bens de produção, isto é, bens de capital e bens intermediários, não cita bens de consumo durável e não durável. Diz ele: “pode-se ter uma economia na qual uma corporação de mineração produz e vende ferro para uma corporação de robótica, a corporação de robótica produz e vende robôs para a corporação de mineração, que extrai mais ferro, que é usado para produzir mais robôs, e assim por diante. Essas corporações podem crescer e se expandir até os pontos mais distantes da galáxia e todas precisam de robôs e computadores — não precisam de humanos nem mesmo para comprar seus produtos”.
Hoje computadores e algoritmos já são clientes, além de produtores. Na bolsa de valores, por exemplo, algoritmos estão se tornando os mais importantes compradores de títulos, ações e commodities. Da mesma forma, na publicidade, o cliente mais importante de todos é um algoritmo: o mecanismo de busca do Google. Quando as pessoas projetam páginas da internet, frequentemente procuram agradar mais ao algoritmo de busca do Google do que a qualquer ser humano.
Algoritmos obviamente não têm consciência, assim, ao contrário de consumidores humanos, não são capazes de usufruir daquilo que compram, e suas decisões não são modeladas por sensações e emoções. O algoritmo de busca do Google não é capaz de experimentar um sorvete. No entanto, algoritmos selecionam coisas com base em seus cálculos internos e preferências integradas, e essas preferências cada vez mais modelam nosso mundo.
Demanda Efetiva versus Desemprego Tecnológico: Problema de Oferta face à Carência de Demanda publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário