Obs.: avaliação de ruim/péssimo continua a subir.
Vivemos na era dos potenciais déspotas carismáticos eleitos. A política dele – é quase sempre “ele” – é a política do medo e do rancor. É necessário ter um determinado tipo de personalidade para dominar essa política. Nas circunstâncias apropriadas – ou seja, nas erradas -, líderes desse tipo surgem naturalmente. Isso não surpreende após uma revolução violenta. O que surpreende muito mais é que esses líderes venham surgindo em democracias consolidadas.
Vemos atualmente “autocratas” eleitos – reais e potenciais – em todo o lugar. Os principais exemplos são Vladimir Putin na Rússia, Recep Tayyip Erdogan na Turquia, Nerendra Modi na Índia, Nicolás Maduro na Venezuela, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Jair Bolsonaro no Brasil, Benjamin Netanyahu em Israel, Matteo Salvini na Itália e Donald Trump nos EUA.
Esses dirigentes diferem entre si em termos de graus de sofisticação. Os países nos quais atuam também diferem. Alguns são economicamente desenvolvidos, enquanto outros não. Alguns são democracias tradicionais, outros não.
Mas todas essas pessoas são personagens de uma história contada com propriedade pela instituição americana independente de vigilância Freedom House. O “Freedom in the World 2019“, publicado em fevereiro, informou o 13o ano consecutivo de deterioração da saúde mundial da democracia. Essa deterioração ocorreu em todas as regiões do mundo, notadamente nas democracias surgidas após a Guerra Fria. Sobretudo, ocorreu em democracias ocidentais, com os Estados Unidos – o mais influente sustentáculo dos valores democráticos – na liderança.
Que tipo de pessoa é esse líder? Em “A República“, a primeira obra da filosofia política ocidental, Platão (um antidemocrata) o descreve como um “protetor”. Sob o respaldo da multidão, ele não alimenta escrúpulos em torno de suas promessas ou atos. Qual será seu destino?, pergunta Platão. “Não estará ele fadado a perecer nas mãos de seus inimigos ou a transmutar-se, de um homem, num lobo – isto é, num tirano?”
A ideia de um suposto protetor como déspota potencial é reveladora. Mas uma pessoa desse tipo não se apresenta como um protetor de todos. Ele se apresenta como um protetor do “povo verdadeiro” contra estrangeiros, minorias e elites traiçoeiras. É uma afirmação moral, não política. Sua política, além disso, é a da paranoia. Se algo der errado, será necessariamente culpa do “estado profundo” ou de algum outro inimigo interno ou externo.
O professor de Princeton Jan-Werner Müller qualifica esse tipo de político de “populista” em seu magnífico livro “What is Populism?”
Para ter sucesso, um demagogo populista tem de projetar confiança em si mesmo como um homem do destino. Auto- obsessão e mesmo megalomania podem ajudar; talvez sejam até essenciais. Em um livro imprescindível, “Disordered Minds“, o escritor irlandês Ian Hughes sugere que essas pessoas são narcisistas ou psicopatas. Para olhos pouco experientes, elas parecem, efetivamente, dementes. Que outra pessoa poderia vender a ideia de que “Só eu sou a salvação do povo” a si mesma?
Se um líder desse tipo quiser subverter a democracia, essa, infelizmente, não será uma tarefa difícil, como argumentam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, de Harvard, em “Como as Democracias Morrem” [Zahar, 2018, 272 págs.].
- É só, primeiramente, se apoderar das instâncias de arbitragem (o Judiciário, as autoridades fiscais, os órgãos de inteligência e policiais).
- Em segundo lugar, marginalizar ou eliminar opositores políticos e, acima de tudo, a mídia.
- Em terceiro lugar, subverter as regras eleitorais.
O que dará sustentação a esses atentados será a forte insistência em torno do caráter ilegítimo da oposição e da “falsidade” das informações que não se coadunam com o que o dirigente considera útil ao poder público.
O povo vai querer confiar num dirigente desse gênero toda vez que desejar desesperadamente acreditar que alguém poderoso está ao seu lado em um mundo injusto. É isso o que acontece quando a confiança nas instituições e as normas de uma democracia complexa vacilam.
Quando desaparece a crença na formulação de políticas públicas sérias, o personagem carismático desponta sob a forma de líder mais velha de todas: o chefe tribal. Quando as coisas alcançam esse grau de primariedade, a diferença entre as democracias em desenvolvimento e as conhecidas como avançadas pode até desaparecer.
É verdade que estas últimas têm instituições e normas mais sólidas e um eleitorado mais instruído. Em circunstâncias normais, isso pode ser suficiente para resistir. Alguns argumentam que continuará sendo suficiente. Mas somos humanos. Humanos idolatram déspotas carismáticos; sempre idolatraram.
Nos países em desenvolvimento, a eleição de autocratas potenciais ocorre frequentemente após estrondosos fracassos dos antecessores (como no Brasil), ou situações de profunda humilhação nacional (como na Rússia) – ou ambos. Como, então, entender o que se passou nos Estados Unidos, onde, como mostra o relatório do promotor especial Robert Mueller, o comportamento do presidente teria sido, em outras épocas, considerado inaceitável? Por que Trump foi eleito? Por que ele ainda detém a confiança de tantos?
A resposta abrange duas partes.
- Uma é a força do medo e da raiva. Eles se devem, em parte, a fracassos econômicos de longa data, em parte à crise financeira e em parte a mudanças culturais.
- A outra resposta é a disposição de partes da elite de explorar emoções desse gênero, de obter enormes cortes de impostos e de eliminar a regulamentação.
Tenho chamado essa postura de “plutopopulismo“. Ela pode também ser vista como a estratégia da divisão racial empregada pelas velhas elites do Sul dos EUA, só que modernizada e aplicada ao país como um todo.
Os EUA representam, em boa medida, o caso mais importante, porque têm sido o principal defensor da democracia liberal. Mas não são muito diferentes as correntes de sentimento que existem em outros países de alta renda.
O domínio desinstitucionalizado de autocratas eleitos pode ser ainda pior que o domínio institucionalizado de um dirigente nomeado, como Xi Jinping, da China.
A política do medo e do rancor pende na direção da tirania. As instituições, por si sós, não detêm essa ameaça. Apenas uma política calcada em parte na esperança pode fazer isso. Como sugeriu Abraham Lincoln, uma república democrática só durará se receber o toque dos “melhores anjos da nossa natureza”. (Tradução de Rachel Warszawski)
Martin Wolf é editor e principal analista econômico do FT
Era do Déspota Eleito publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário