Este livro de Yuval Noah Harari, “Homo Deus: Uma breve história do amanhã” (São Paulo: Companhia das Letras; 2015), começou com a previsão de que, no século XXI, os humanos tentarão alcançar a imortalidade, a felicidade e a divindade.
Essa previsão não é muito original ou de longo alcance. Ela simplesmente reflete os ideais tradicionais do humanismo liberal. Como o humanismo há muito tem santificado a vida, as emoções e os desejos dos seres humanos, não há de ser surpresa que uma civilização humanista queira maximizar a duração da vida humana, a felicidade humana e o poder humano.
Mas a terceira e última parte do livro vai argumentar: a tentativa de realizar esse sonho humanista solapará suas fundações ao desencadear novas tecnologias pós-humanistas. A crença humanista nos sentimentos nos habilitou a nos beneficiarmos dos frutos da aliança moderna sem pagar seu preço. Não precisamos de deuses que limitem nosso poder e nos outorguem significado — as livres escolhas de clientes e eleitores nos provêm de todo o significado que requeremos.
O que, então, acontecerá assim que nos dermos conta de que clientes e eleitores nunca fazem livres escolhas, assim que dispusermos da tecnologia para calcular, projetar ou passarmos a perna em seus sentimentos?
Se o Universo inteiro está vinculado à experiência humana, o que acontecerá quando a experiência humana se tornar somente outro produto projetável, não diferente na essência de qualquer outro item no supermercado?
As páginas precedentes do livro nos levaram a um giro pelas descobertas científicas recentes capazes de minar a filosofia liberal. Na última parte, examina as implicações práticas dessas descobertas científicas.
Os liberais defendem os livres mercados e as eleições democráticas porque acreditam todo humano ser um indivíduo único e valioso, cujas livres escolhas são a fonte definitiva da autoridade. No século XXI, três desenvolvimentos práticos podem tornar essa crença obsoleta:
- Os humanos perderão sua utilidade econômica e militar e, em decorrência, o sistema econômico e político deixará de lhes atribuir muito valor.
- O sistema ainda dará valor aos humanos coletivamente, mas não a indivíduos únicos.
- O sistema ainda dará valor a alguns indivíduos únicos, mas estes constituirão uma nova elite de super-humanos avançados e não a massa da população.
Harari examina essas três ameaças detalhadamente. A primeira — de que os desenvolvimentos tecnológicos farão com que os humanos sejam econômica e militarmente inúteis — não vai demonstrar que o liberalismo está errado em um nível filosófico, mas na prática é difícil conceber como a democracia, os livres mercados e outras instituições liberais sobreviveriam a tamanho golpe.
Afinal, o liberalismo não se tornou a ideologia dominante simplesmente porque seus argumentos filosóficos eram mais precisos. Seu sucesso se deve ao fato de haver muito sentido político, econômico e militar na atribuição de valor a cada ser humano.
Nos campos de batalha em massa das guerras industriais modernas e nas linhas de produção em massa das economias industriais modernas, cada humano contava. Havia valor em cada par de mãos que pudesse empunhar um fuzil ou puxar uma alavanca.
No século XXI, a maioria tanto de homens como de mulheres perdeu seu valor militar e econômico. A convocação em massa das duas guerras mundiais já é passado. Os exércitos mais avançados deste século se apoiam muito mais em tecnologia. No lugar de um número ilimitado de buchas para canhão, agora só se precisa de um número reduzido de soldados altamente treinados, um número ainda menor de forças especiais de supercombatentes e um punhado de especialistas que saibam como produzir e utilizar tecnologia de ponta. Forças high-tech “tripuladas” por drones sem piloto e vermes cibernéticos estão substituindo os exércitos de massas do século XX, e os generais delegam cada vez mais suas decisões críticas a algoritmos.
Na esfera da economia, a aptidão para manejar um martelo ou apertar um botão também está se tornando menos valiosa do que era antes, o que põe em perigo a aliança crítica entre liberalismo e capitalismo.
No século XX, liberais explicaram que não temos de escolher entre ética e economia. Proteger direitos e liberdades humanos era tanto a coisa moral a ser feita quanto a chave do crescimento econômico. Grã-Bretanha, França e Estados Unidos alegadamente prosperavam porque tinham liberalizado suas economias e suas sociedades, e se a Turquia, o Brasil ou a China quisessem tornar-se igualmente prósperos, deveriam fazer o mesmo. Em muitos — se não a maioria — dos casos era o argumento econômico, em lugar do argumento moral, que convenceu tiranos e juntas a se liberalizarem.
No século XXI o liberalismo terá muito mais dificuldades para se vender. À medida que as massas perdem sua importância econômica, a proteção dos direitos e liberdades humanos pode continuar a ser moralmente justificável, mas o argumento moral sozinho será suficiente? As elites e os governos continuarão a dar valor a cada ser humano mesmo que ele não compareça com dividendos econômicos?
No passado, havia muitas coisas que somente os humanos podiam fazer. Mas hoje robôs e computadores estão assumindo esse papel e logo poderão sobrepujar os humanos no cumprimento da maioria das tarefas.
É verdade que o funcionamento dos computadores é muito diferente do dos humanos, e parece improvável que eles se tornem humanoides em pouco tempo. Em particular, não parece que computadores estejam prestes a ter consciência, nem emoções e sensações. As últimas décadas assistiram a um avanço imenso na inteligência de computadores, mas o avanço na consciência dessas máquinas foi nulo.
Até onde sabemos, computadores não são, em 2016, mais conscientes do que seus protótipos na década de 1950. No entanto, estamos à beira de uma grave revolução. Humanos correm o perigo de perder seu valor porque a inteligência está se desacoplando da consciência.
Até hoje, uma grande inteligência sempre andou de mãos dadas com uma consciência desenvolvida. Apenas seres conscientes podiam realizar tarefas que exigissem alto grau de inteligência, como jogar xadrez, dirigir automóveis, diagnosticar doenças ou identificar terroristas.
Entretanto, estão em desenvolvimento novos tipos de inteligência não consciente capazes de realizar essas tarefas muito melhor que os humanos. Tais tarefas baseiam-se em padrões de reconhecimento, e algoritmos não conscientes podem rapidamente superar a consciência humana no que diz respeito a esses padrões.
Para se equiparar à inteligência humana e suplantá-la, computadores terão de desenvolver consciências. Mas a ciência real conta uma história diferente. Poderá haver vários caminhos alternativos capazes de levarem à superinteligência, e apenas parte deles passam pelo estreito da consciência.
Durante milhões de anos a evolução orgânica tem navegado lentamente pela rota da consciência. A evolução de computadores inorgânicos pode ter superado completamente essas passagens estreitas, tomando um caminho diferente e muito mais rápido para a superinteligência.
Isso levanta uma nova questão: o que é realmente importante, a inteligência ou a consciência? Enquanto andavam de mãos dadas, discutir seus valores relativos era apenas um passatempo para filósofos. Porém, no século XXI, isso está se tornando uma questão política e econômica premente. É sensato dar-se conta de que, ao menos para exércitos e corporações, a resposta é simples e direta: a inteligência é mandatória, mas a consciência é opcional. Exércitos e corporações não podem funcionar sem agentes inteligentes, mas não precisam de consciência nem de experiências subjetivas.
Alguns economistas predizem que, cedo ou tarde, humanos não melhorados serão completamente inúteis. Robôs e impressoras 3-D já estão os substituindo em trabalhos manuais, como o de fabricar camisas, e algoritmos altamente inteligentes farão o mesmo com as ocupações de colarinho-branco.
Funcionários de banco e agentes de viagem, que até pouco tempo estavam totalmente imunes a uma possível automação, tornaram-se espécies em perigo. De quantos agentes de viagem vamos precisar quando pudermos usar nossos smartphones para comprar passagens aéreas de um algoritmo?
Corretores da bolsa de valores também estão em perigo. A maior parte das transações na atualidade já é gerenciada por algoritmos de computador, que podem processar em um segundo mais dados do que um humano em um ano e que podem reagir aos dados mais rapidamente do que um humano é capaz de piscar.
Grande Desacoplamento publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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