quarta-feira, 3 de junho de 2020

Psicologia: Passagem entre Ciências Naturais e Ciências Sociais

Segundo Elias (1939), existe hoje uma padronização muito difundida da autoimagem, induzindo o indivíduo a se sentir e pensar assim: “Estou aqui, inteiramente só; todos os outros estão lá, fora de mim; e cada um deles segue seu caminho, tal como eu seguirei o meu sozinho”.

É como esse “eu” interior fosse o verdadeiro. Haveria uma roupagem externa para suas relações com as outras pessoas, não correspondente a esse puro “eu”.

Essa atitude perante si mesmo e os outros afigura-se inteiramente natural e óbvia para quem a adotou. Na realidade, esse individualismo constitui a expressão de uma singular conformação histórica do indivíduo pela rede de relações, por uma forma de convívio dotada de uma estrutura muito específica em uma economia de mercado onde as relações entre pessoas desconhecidas se estabelecem de maneira impessoal através de dinheiro.

O que se veicula através dela é a autoconsciência de pessoas obrigadas a adotar um grau elevadíssimo de refreamento, controle afetivo, renúncia e transformação dos instintos. Elas estão acostumadas a relegar grande número de funções, expressões instintivas e desejos a enclaves privativos de sigilo, afastados do olhar do “mundo externo”, ou seja, ao fundo de seu psiquismo, ao semiconsciente ou inconsciente.

Esse tipo de autoconsciência corresponde à estrutura psicológica estabelecida em certos estágios de um processo civilizador. Ela se caracteriza por uma diferenciação e uma tensão especialmente intensas entre:

  1. as ordens e proibições sociais inculcadas como autodomínio, e
  2. os instintos e inclinações não controlados ou recalcados dentro do próprio ser humano.

Ao se adotar um ponto de vista dinâmico mais amplo, em vez de uma concepção estática, se constata a visão de um muro intransponível entre um ser humano e todos os demais, entre os mundos interno e externo, evaporar-se. É substituída pela visão de um entrelaçamento incessante e irredutível de seres individuais.

Confere à substância animal a qualidade de seres humanos através de seu autocontrole psíquico e seu caráter individual. Assume a forma própria de sua personalidade, específica dentro e através de relações com os outros.

Na metáfora da rede de tecido, muitos fios isolados ligam-se uns aos outros. No entanto, nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem ser compreendidas em termos de um único fio, ou mesmo de todos eles, isoladamente considerados. A rede só é compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca. Essa ligação origina um sistema de tensões para o qual cada fio isolado concorre, cada um de maneira um pouco diferente, conforme seu lugar e função na totalidade da rede.

Uma rede de muitas unidades origina uma ordem não possível de ser estudada nas unidades individuais. Entretanto, as relações interpessoais nunca podem ser expressas em simples formas espaciais.

Esse é um modelo estático. Para Elias (1939), ele atendaria um pouco melhor a seu objetivo se imaginarmos a rede em constante movimento, como um tecer e destecer ininterrupto das ligações. Assim efetivamente cresce o indivíduo, partindo de uma rede de pessoas existentes antes dele para ir a uma rede formada com sua ajuda na tecedura desse entrelaçamento incessante.

A psique é a estrutura formada por funções relacionais. O ser humano não é, como faz parecer uma certa forma histórica de autoconsciência humana, simplesmente um continente fechado, com vários compartimentos e órgãos. É um ser organizado, por natureza, como parte de um mundo maior.

O alto grau de maleabilidade e adaptabilidade das funções relacionais humanas é, por um lado, uma precondição para a estrutura das relações entre as pessoas ser tão mais variável se comparada à de outros animais. Aqui está a base da historicidade fundamental da sociedade humana. É responsável pelo fato de ser o animal humano, em uma medida especial, um ser social, dependente da companhia de outras pessoas.

A forma assumida pelas funções psíquicas de uma pessoa não pode jamais ser deduzida exclusivamente de sua constituição hereditária. Decorre, na verdade, do modo pelo qual ela se constitui conjuntamente com outras pessoas e da estrutura da sociedade onde o indivíduo cresce.

Há um grau bastante elevado de autorregulação humana livre do controle de mecanismos reflexos hereditários. O que é estabelecido pela hereditariedade, como a extensão ou o timbre da voz, por exemplo, meramente fornece o arcabouço para uma infinita variedade de articulações possíveis.

Deve-se partir da estrutura das relações entre os indivíduos para compreender a psique da pessoa singular. Psique é uma palavra, em sua origem, usada para descrever a alma ou o espírito. Relacionada com a Psicologia, passa a ser usada com a conotação de mente ou ego, para evitar ligações com a religião e a espiritualidade.

A Psicologia tem de primeiro esclarecer a estrutura geral desse processo de diferenciação e moldagem, isto é, como a forma particular de controle comportamental se consolida em um “caráter”, em uma composição psicológica individual dentro do indivíduo. Ocorre com base em um determinado conjunto de relações, em uma moldagem social específica. Depois, tem de explicar como a mente dessa pessoa funciona, posteriormente, no convívio com as outras pessoas.

A primeira parte dessas tarefas conduz diretamente a uma investigação das regularidades fisiológicas e biológicas do organismo. A outra conduz à investigação das estruturas e regularidades sócio históricas das quais dependem a direção e a forma da diferenciação individual. Em suma, segundo Norbert Elias, no livro “A Sociedade dos Indivíduos”, a Psicologia constitui a ponte entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais.

Psicologia: Passagem entre Ciências Naturais e Ciências Sociais publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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