Alex Ribeiro (Valor, 09/10/2019) informa: o projeto de lei de liberalização cambial enviado pelo governo ao Congresso flexibiliza algumas restrições históricas do regime cambial brasileiro como a proibição de compensação privada de pagamentos ao exterior e a vedação de pagamentos em dólares em transações dentro do país. O objetivo é facilitar investimentos em infraestrutura e permitir maior integração das empresas às cadeias de produção global.
Essas duas regras remontam a década de 1930 e foram criadas para garantir o curso forçado da moeda nacional. Nos surtos inflacionários, foram essenciais para evitar a dolarização da economia, um mal capaz de afetar países vizinhos, como a Argentina. O governo “ultraliberal” diz não querer abrir mão disso.
A vedação à compensação privada impede uma empresa ter um valor a receber e uma valor a quitar com uma outra empresa no exterior fazer um encontro de contas, pagando ou recebendo a diferença. O sentido dessa vedação é impedir a desintermediação das operações de câmbio. Isso seria uma brecha para usar o dólar nas operações em vez de fechar o câmbio em real.
Hoje, há uma exceção a essa regra para o setor aéreo. Ela permite a empresas nacionais e estrangeiras compensarem o pagamento de passagens de brasileiros voando trechos em empresas estrangeiras e vice-versa.
A Lei no 13.506, de 2017, permitiu ao BC abrir exceções a essa regra para atender, por exemplo, empresas participantes de cadeias globais e, ao mesmo tempo, importando e exportando de suas matrizes. O BC, porém, até agora não abriu nenhuma exceção porque a lei de 2017 não previu mecanismos para a coleta de dados dessas operações para serem monitoradas. O projeto de lei de liberalização cambial preenche essa lacuna ao criar a obrigação de prestar informações.
Outra restrição histórica a ser flexibilizada é a proibição de pagamentos em moeda estrangeira dentro do país. Hoje, isso só é possível para comércio exterior, dívida externa e algumas outras transações entre residentes e não residentes. O projeto de lei permite o Conselho Monetário Nacional (CMN) autorizar outras situações. Viva a casta dos sábios-tecnocratas!
Um exemplo de pagamento em dólares possível de ser permitido está nos investimentos em infraestrutura. Um investidor poderia, por exemplo, captar dinheiro no exterior para construir uma ferrovia. Ela atenderia a um exportador de bens primários. Para travar o risco cambial desse empréstimo, esse investidor poderia cobrar tarifa em dólares. O exportador usuário da ferrovia também teria seu risco travado porque tem receitas em dólares.
Hoje, há um projeto de lei abrindo essa possibilidade. Com a reforma cambial, a alçada seria infralegal, em decisão do CMN, atendendo o princípio de a exceção mitigar o risco cambial e ampliar a eficiência do negócio. Eficiência… palavrinha-mágica!
O projeto de lei também extingue outro meio histórico de controle: a exigência de cobertura cambial nas exportações. O governo sempre determinou as empresas venderem no mercado de câmbio doméstico os dólares obtidos com exportações. A regra era necessária na época de crises e escassez cambial, quando cada dólar era fundamental para fechar as contas externas.
A exigência começou a ser flexibilizada em 2006, por iniciativa do então ministro da Fazenda, Guido Mantega, para conter o fluxo de divisas. Ele levava à apreciação da taxa de câmbio. Ele permitiu, primeiro, exportadores deixarem 30% das receitas de exportação no exterior; em 2011, elevou esse percentual para 100%, o que na prática significou extinguir a exigência de cobertura cambial.
Mas a Lei no 11.371, de 2006, continuava com uma brecha para, de acordo com decisão do governo, mudar esses percentuais, retomando a exigência de cobertura cambial. O projeto de liberalização cambial revoga e altera os artigos dessa lei, acabando com a possibilidade de exigência de a cobertura cambial ser restabelecida e permitindo o exportador deixar a moeda no exterior e fazer uso dela da forma mais flexível. O projeto revoga, inclusive, proibição para os recursos no exterior serem utilizados para conceder operação de crédito.
Outra mudança importante do projeto de lei é permitir instituições financeiras fazerem empréstimos no exterior com recursos captados no mercado doméstico. Hoje, isso era permitido apenas por meio de subsidiárias dos bancos no exterior. Com a aprovação da nova lei, será possível fazer essas operações diretamente com clientes no exterior.
A regra permitirá bancos brasileiros financiarem diretamente as atividades de empresas brasileiras caso elas se internacionalizem. Isso deve alavancar, sobretudo, o financiamento de exportações, pois os bancos poderão financiar diretamente as empresas no exterior compradoras dos produtos de empresas brasileiras.
Enquanto o capitão desgoverna, estupidamente, na área de costumes, a casta dos sábios-tecnocrata conduz a “máquina-do-governo”! O boçal é dispensável… Não serve para nada.
Qual é o risco? Veja a Argentina.
A Argentina dificilmente escapará de um default, mesmo se o desembolso de US$ 5,4 bilhões do Fundo Monetário Internacional (FMI) sair ainda neste ano. Isso porque, diante incapacidade de financiamento do país hoje, é improvável não ocorrer uma corrida ao dólar. O diagnóstico é feito por Livio Ribeiro, economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Os US$ 5,4 bilhões estavam inicialmente previstos para setembro. O desembolso foi postergado para 15 de outubro, mas não é garantido. Parte disso deve-se à turbulência política após derrota do presidente Mauricio Macri para o kirchnerista Alberto Fernández nas prévias partidárias de agosto. Os idiotas de O Mercado aumentaram a incerteza quanto ao pagamento da dívida com seu pensamento binário: neoliberal ou caos.
No fim de setembro, o diretor-gerente interino do FMI, David Lipton, disse: o programa com a Argentina ficaria suspenso enquanto o país enfrentasse incertezas e a relação financeira com o país talvez tivesse de esperar. A fala de Lipton foi a mais forte indicação de o Fundo reter o repasse. Ela levou o porta-voz da instituição, Gerry Rice, a negar que a Argentina estivesse em “segundo plano”.
Mesmo se o desembolso sair antes da eleição, em 27 de outubro, o país continua com o mesmo problema, porque terá corrida cambial. Será muito difícil não haver um default.
A Argentina pode aguentar até a eleição sem um default. Depois, vai depender do discurso de posse de Fernández. Ele deverá vencer no primeiro turno, segundo pesquisas. Aí começará a chantagem da casta dos mercadores: se indicar seu governo sera moderado e menos heterodoxo em relação ao da ex-presidente e sua vice, Cristina Kirchner, poderá conseguir evitar uma corrida cambial. Esse filme já vimos antes… E no fim O Mercado é enquadrado direitinho.
Atualmente, a dívida pública da Argentina equivale a 82% do PIB. Desse total, diferentemente da brasileira, 80% é em moeda estrangeira. Isso porque o neoliberal Macri optou por fazer um ajuste gradual ancorado na emissão de dívida no mercado, confiando em um cenário externo otimista, isto é, ele ser reeleito. Tudo isso começou a mudar em 2018 com a miséria progressiva dos argentinos à brasileira.
Macri tinha déficit gêmeos (orçamentário e de conta corrente) e passou a se financiar em moeda estrangeira. Ele não olhou para o risco externo. A alta dos juros pelo Fed (o banco central americano) ao longo de 2018 complicou o cenário otimista de O Mercado quando um dos seus é eleito ou nomeado.
A derrota de Macri nas prévias partidárias de 11 de agosto acendeu um alerta. Macri tomou um NÃO gigante. Não foi nem a luz vermelha acendida, mas seu holofote estourou! Há 16 pontos de vantagem de Fernández sobre Macri.
O resultado levou a uma corrida cambial, nos dias seguintes. Ela fez o Banco Central da Argentina utilizar sua baixas reservas para defender o peso. O nível de reservas passou de US$ 66,3 bilhões em 9 de agosto para US$ 47,9 bilhões atuais.
Essa drenagem de reservas fez credores duvidarem da capacidade do governo de pagar a dívida. No mercado doméstico, a desconfiança ficou evidente com a dificuldade do governo para rolar a dívida de curto prazo. No fim de julho de 2019, a taxa de rolagem da dívida de Letes (títulos do Tesouro em dólar com vencimento de curto prazo) foi de 80%. Passou para 5% em 16 de agosto e zero em 28 de agosto.
Por isso, a renegociação da dívida de US$ 101 bilhões, anunciada no fim de agosto não surpreendeu, dado o sufoco.
No fim de agosto, o governo anunciou a intenção de renegociar os termos da dívida com FMI e com investidores privados, com o objetivo de adiar o pagamento. “Estritamente, não foi um default”, diz um apologista de O Mercado, ao ressaltar o governo renegociar prazo e não valores. Na prática, não faz diferença, pois mostra o país não conseguir honrar seus compromissos sem alongar o perfil da dívida para o próximo governo.
O efeito colateral disso é a falta de dólar a ser enfrentada pela Argentina daqui por diante. Se continuar essa dinâmica de desconfiança, e o Fundo não colocar dinheiro, haverá inevitavelmente um calote da dívida.
Apesar da situação difícil, duvida-se o FMI deixar de fazer os desembolsos para a Argentina. Se o fizer, a chance de 0,05% de o Fundo tinha de receber de volta o dinheiro emprestado cai para -5%.
No curto prazo, a Argentina não ficará livre de um ajuste fiscal. Ele deve empobrecer ainda mais o país. Dados divulgados recentemente pelo Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) mostram a pobreza na Argentina ter crescido de 32% da população, no segundo semestre de 2018, para 35,4% no primeiro semestre deste ano. Isso é o resultado social de um governo neoliberal…
Um cenário de retomada da Argentina, contudo, dependerá muito mais do ambiente externo em lugar de escolhas domésticas. Se Fernández não romper com o FMI, o Fundo continuar com os desembolsos, e todo esse impulso por corte de juros nos EUA e medidas de estímulo na Europa fizerem o mundo refluir, talvez seja possível uma retomada na Argentina.
Mas um economista idiota neoliberal prognostica: “não será porque Fernández fez alguma coisa. Será por algo de fora.” Já vimos esse filme: todo sucesso desenvolvimentista é atribuído por neoliberal à sorte e/ou a fatores exógenos!
Depois de ver a produção cair neste ano influenciada em grande parte pela Argentina, a indústria de transformação brasileira deve continuar a ter sua recuperação comprometida pelos efeitos da crise no vizinho em 2020, segundo economistas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV). A Argentina não dá sinais de melhora. Isso poderá afetar a indústria brasileira. E o mercado interno quanto pesa, hein?
Estudo do instituto mostrou a queda das exportações para a Argentina ter reflexos sobre o valor adicionado da indústria de transformação, comércio e transportes. Contribuiu para tirar 0,2 ponto percentual do PIB brasileiro de 2018 e deve tirar, no mínimo, 0,5 ponto do PIB de 2019. No ano passado, o Brasil cresceu 1,1%. Neste, deve ter expansão de 1%.
A estimativa de impacto sobre o PIB brasileiro foi calculado com base na projeção do FMI de queda de 1,2% no PIB argentino e recuo de 5,1% na demanda doméstica neste ano. Esses números, contudo, devem ser piores, o que significa efeito maior sobre o Brasil.
A estimativa foi conservadora e feita antes do último choque na Argentina. Em 11 de agosto o kirchnerista Alberto Fernández derrotou Mauricio Macri nas prévias partidárias, o que fez o peso cair 30% no dia seguinte.
As vendas de produtos do Brasil para a Argentina caem desde 2018. Nos piores momentos, entre o quarto trimestre de 2018 e o primeiro deste ano, recuaram 45%. O país é um dos principais parceiros da indústria brasileira. E não é só automóvel. Há toda uma cadeia produtiva, peças e equipamentos que vão fazer parte da produção do vizinho.
Segundo boletim Focus, do Banco Central, a mediana das estimativas para a produção industrial é de queda de 0,53% neste ano, contra previsão de crescimento de 3% do início do ano. Para 2020, a estimativa passou de alta de 3% para 2,3%.
Curso Forçado do Real evitará “a Argentina ser aqui”? publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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