quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Bonds Vigilantes: pressão sobre a dívida pública de países sem disciplina fiscal.

Até o editorial do Valor, “chapa-branca” de O Mercado, protestou contra a liberalização do câmbio pelo governo ultraliberal na economia e ultraconservador nos costumes culturais. Veja abaixo.

“O projeto de liberalização cambial a ser encaminhado pelo Banco Central e Ministério da Economia ao Congresso é tão ambicioso a ponto de parecer irreal. Com a intenção secundária, embora importante, de livrar-se de entulhos burocráticos, ele explicita um objetivo muito polêmico na teoria e na prática: a livre movimentação de capitais. Seu artigo 2 é claro: “As operações no mercado de câmbio podem ser realizadas livremente, sem limitação de valor” a partir de sua aprovação, desde que feitas de acordo com a lei e segundo os regulamentos do Banco Central. Na prática, define limites do que poderá ser a política econômica não só do atual governo como dos futuros.

Há a óbvia necessidade de modernizar a legislação cambial atual, dezenas de artigos espalhados por um labirinto de dispositivos legais, alguns deles do início do século XX. Mas a meta final que dá a direção dos passos intermediários é pôr fim ao curso forçado do real, algo que livrou o Brasil de encrencas maiores do que as que enfrentou até agora.

O projeto dispõe a livre movimentação de capitais estar em linha com o que fazem as economias avançadas e as principais economias emergentes, ignorando o exemplo mais importante: o da China, segunda maior economia do mundo, e das dinâmicas economias asiáticas. Elas encontraram formas mais eficientes de adaptação ao mundo globalizado do que a pretensão de tornar conversíveis suas moedas.

O Brasil está longe de possuir as condições econômicas capazes de permitirem essa abertura. A promessa de a liberalização ser feita com “prudência” tem de ser vista com algum ceticismo. As diretorias do Banco Central mudam, assim como seus graus de sensatez, mas as leis ficam.

O Brasil não é sequer grau de investimento para poder dar passos iniciais nesta direção. Continua enredado em uma terrível armadilha fiscal, sua economia continua basicamente instável – foi do quase paraíso em 2010 ao inferno em 2014, início da maior recessão da história – e não têm forças para sustentar crescimento razoável por um par de anos.

A livre movimentação de capitais tem de ser vista de forma pragmática, não ideológica. Pode funcionar ou não, dependendo de uma série de características históricas, políticas e econômicas. A China chegou ao que é fazendo o contrário do que prega o anteprojeto do BC. Ela não tem a menor intenção de liberar a conta de capitais em breve, se é que algum dia o fará. A experiência latino-americana também é mais negativa que positiva sobre este ponto.

O México quebrou duas vezes, em 1982 e 1995, por políticas macroeconômicas erradas das quais sobressai a dívida pública contraída majoritariamente em dólares, combinada com desequilíbrios desastrosos no balanço de pagamento. Teve melhor sorte que a terceira maior economia latina, a Argentina, que sobrevive de crise em crise, sempre beirando a ruína, sem abandonar uma política cambial liberal. O México pelo menos tem agora a justificativa econômica para isso, ao fazer parte da área do dólar, sacramentada por um acordo econômico com EUA e Canadá.

A Argentina foi tão longe quanto possível na liberalização cambial, com resultados tétricos – não tem mais moeda nacional. Sua mais extravagante experiência com a conversibilidade foi o “currency board” do ex-ministro Domingo Cavallo, que prometia livrá-la de suas mazelas: inflação muito alta, déficit público insustentável e baixas reservas internacionais. Terminou em tragédia, com um presidente fugindo da sede do governo de helicóptero diante de massas enfurecidas.

A situação argentina dá vários exemplos do que não se deve fazer. Além da escassez de dólares criada por déficits em conta corrente, há o insaciável apetite doméstico pela moeda americana, saciado pela permissão das contas bancárias em divisas

externas, cujos montantes podem ser livremente remetidos ao exterior. Com demanda tão grande, acumular reservas internacionais tornou-se bem mais difícil e a saída argentina foi sempre a emissão de dívida soberana em dólares, com resultados conhecidos. Mauricio Macri seguiu o caminho de sempre e sua bancarrota, política e econômica, é a mais recente, não a última.

As condições estruturais da economia precisam mudar muito antes de o Brasil sequer pensar em dar este passo. Serão necessários anos a fio de crescimento sustentado com inflação civilizada, aumento da produtividade e juros baixos. Afirmar, como a exposição de motivos do projeto, que a liberdade cambial “é compatível com o atual grau de inserção da economia brasileira nas cadeias globais” é inverter a ordem dos fatores, com consequências imprevisíveis.”

Ao lado, foi publicado um artigo interessante sobre os “bonds vigilantes“, escrito por Gabriel Aidar, pesquisador visitante no Ilas-Columbia University e doutorando pelo IE-UFRJ, e Julia Braga, professora da Faculdade de Economia da UFF.

“Em decorrência da mais lenta recuperação econômica já vista na história brasileira, ganha força no meio político e econômico a ideia de expandir os gastos públicos para promover a retomada consistente do crescimento. Para que essas ideias se concretizem, no entanto, é necessário revisões das regras fiscais (de resultado primário e do teto de gastos). Propostas nesse sentido já foram apresentadas e geraram reação contrária da equipe econômica do governo e de alguns economistas liberais.

Um dos principais argumentos dos críticos a uma alteração de regras fiscais visando o crescimento dos gastos públicos é o conceito de Bonds Vigilantes. Muito usado nos anos 1980 e 1990, refere-se à pressão que investidores fariam sobre a dívida pública de países que não seguissem uma disciplina fiscal. Assim, os governantes seriam reféns desses investidores, que demandariam disciplina fiscal desses governos, caso contrário venderiam os títulos públicos desses países. No caso dos países emergentes, segundo essa concepção, os investidores internacionais poderiam provocar uma elevação dos spreads de risco, ou risco-país, cobrados sobre títulos públicos e privados, como consequência da fuga generalizada de capital.

Mas quão crível é essa ameaça de fato? Uma das formas possíveis de se avaliar o quão real são as ameaças dos Bonds Vigilantes é avaliando o quanto os fatores domésticos de um país, como por exemplo as contas públicas ou as contas externas, impactam na trajetória de risco-país vis-à-vis as condições internacionais de liquidez. Esse tipo de análise remonta ao trabalho seminal de Guillermo Calvo, Leonardo Leiderman e Carmen Reinhart, em um “working paper” do FMI de 1992, em que se perguntavam o que explicava a recuperação do fluxo de capitais para economias emergentes na América Latina no início dos anos 1990.

Esse debate ficou conhecido na literatura econômica como a controvérsia pull-push. Interessava aos autores saber se o apetite dos investidores por esses países era determinado por fatores domésticos (pull) ou externos (push).

Para tentar responder a essa questão, realizamos um estudo para avaliar o comportamento do risco-país (medido pelo EMBI e pelo CDS) para 12 países emergentes, incluindo o Brasil, durante de janeiro 1999 a abril de 2019. Utilizamos a análise de componente principal, que procura encontrar o percentual de fatores comuns às diferentes séries de tempo. O resultado da investigação empírica indica que cerca de 70% da variação das séries de risco-país se deve a um fator comum a todas elas. Isso indica que os capitais internacionais parecem ser muito mais movidos por fatores globais que afetem em conjunto esses países do que pelas condições particulares de cada um deles.

Uma hipótese para os determinantes desse fator comum diz respeito às condições de liquidez internacional, como originalmente estudada pelos autores do FM, tais como a taxa de juros das economias centrais, especialmente do Fed americano, e a volatilidade das bolsas internacionais frente a episódios de turbulências globais. Além disso, para países em desenvolvimento, os preços das commodities costumam também ser relevantes para aumentar a liquidez internacional.

Em nosso estudo (Texto para Discussão n. 342 da Faculdade de Economia da UFF), encontramos que o fator comum das séries de risco-país corrobora nossa hipótese e tem os efeitos esperados da taxa de juros americana de 5 anos, do preço do petróleo e do indicador de volatilidade da bolsa americana (VIX). Concluímos também que houve uma mudança estrutural (favorável) nessas condições entre os anos de 2002 e 2005, reduzindo spreads de risco-país nas economias emergentes. Isso ocorreu devido a um ciclo positivo de liquidez global puxado pela expansão das importações chinesas de matérias primas, boom das commodities, políticas domésticas de acumulação massiva de reservas, regimes cambiais flexíveis fortemente administrados e redução das taxas de juros nas economias avançadas.

Afirmar que os fatores internacionais prevalecem em relação aos domésticos não significa dizer, contudo, que ignoramos que a conjuntura doméstica afete o risco- país. Casos de crises políticas que ameaçam a institucionalidade dos governos locais, como a que ocorre hoje na Venezuela, ou situações de insolvência em moeda estrangeira, como Argentina, são exemplos emblemáticos de disparada no risco-país e contágio para as demais economias emergentes.

Contudo, a trajetória do fator comum prevalece sobre as idiossincrasias de cada país. O caso do Brasil em 2016 ilustra isso e pode ser analisado à luz dos resultados de nosso estudo: o prêmio de risco-país começou a diminuir em fevereiro 2016, meses antes da aprovação da PEC do teto de gastos (aprovada em primeiro turno na Câmara em outubro, no Senado em novembro e promulgada no Congresso em dezembro).

A trajetória declinante do prêmio de risco-país continuou ao longo do ano, o que levou muitos economistas a associar tal queda às reformas ficais. Ocorre que a mesma que aconteceu em diversos outros países, como a Rússia, a África do Sul, a Colômbia e a Turquia, reforçando a nossa hipótese da predominância de um fator externo na explicação da queda do risco nessas economias. Os elementos em comum, nesse caso, foram a incerteza no mercado financeiro americano captada pelo VIX, que sofreu queda intensa no início de 2016, sinalizando um cenário com menos riscos, e a recuperação do preço do petróleo, que apresentou aumento de 77%, em 2016.

Em suma, a condição de país em desenvolvimento de fato nos coloca claramente em posição subordinada em relação aos investidores internacionais, como pressupõem os adeptos dos Bonds Vigilantes. Mas, ao contrário destes, que enfatizam elementos fiscais domésticos, nosso estudo empírico revela que, desde que a economia emergente em questão encontre-se solvente em moeda estrangeira, a sua subordinação a investidores está muito mais atrelada aos fatores externos que condicionam os ciclos de liquidez mundial.

Assim, não nos parece crível apostar, nesse momento da economia brasileira, com US$ 380 bilhões de reservas internacionais, numa fuga de capitais do país a partir da revisão de regras fiscais que viabilizem o aumento do gasto para o funcionamento adequado da máquina pública e o aquecimento da economia.”

VEJA MAIS UMA COMPLICAÇÃO… OU FACILITAÇÃO?

O dólar americano há muito domina os mercados e as finanças mundiais. O papel proeminente do dólar no comércio internacional e nas reservas oficiais é extraordinário e dificilmente vai deixar de sê-lo tão cedo. Ainda assim, os dados mais recentes do FMI sobre as reservas internacionais dos bancos centrais mostram um sutil afastamento do dólar, algo que segundo analistas poderia sinalizar uma reavaliação do risco político embutido nos ativos dos EUA.

Os bancos centrais [estão] enfraquecendo aos poucos o ‘privilégio exorbitante’ do dólar”, diz Alan Ruskin, estrategista-chefe internacional do Deutsche Bank, em Nova York. “A política americana está começando a prejudicar o dólar de maneiras que têm potencial para contestar o domínio da moeda.”

No relatório trimestral sobre as reservas dos bancos centrais de setembro, o FMI informa: a proporção total mantida em dólares foi de pouco menos de 62% no segundo trimestre de 2019, uma queda de 0,76 ponto percentual em relação ao mesmo período de 2018. A porcentagem das reservas em euro foi de 20%.

Embora o declínio tenha sido pequeno, a aparente resistência do dólar é enganosa. Durante esse trimestre o dólar foi a moeda de maior rendimento no mundo desenvolvido. Na teoria, isso deveria ter atraído mais investimentos em comparação a outras moedas.

Em vez disso, os gestores das reservas dos bancos centrais — uma importante força nos mercados mundiais — acumularam 3,5% a mais de dólares no ano, bem atrás do crescimento de 17% do volume de reservas em yuan e dos 8% da libra esterlina, apesar dos problemas da moeda britânica com o Brexit.

A queda na participação do dólar nas reservas representa um “voto do setor oficial contra o ‘excepcionalismo’ dos EUA. Esses dados devem fazer as autoridades americanas paralisarem os planos de implementar leis para tributarem as compras de ativos americanos por estrangeiros, de novas sanções com base no uso internacional do dólar e de planos para restringir o acesso aos mercados de capital dos EUA. Todas essas medidas poderiam enfraquecer ainda a influência do dólar.

Em agosto, o presidente do Banco da Inglaterra, Mark Carney, alertou as autoridades para o fato de que o dólar, além de ser a moeda dominante para faturar e liquidar operações de comércio exterior, representa quase 70% dos valores mobiliários emitidos no mundo e das reservas internacionais. Isso faz com que os acontecimentos econômicos nos EUA sejam o principal guia para a política monetária dos demais países, particularmente dos mercados emergentes.

No longo prazo, os bancos centrais deveriam passar a um sistema econômico “multipolar”. O yuan ainda tem um longo caminho a percorrer antes de estar pronto para assumir esse papel, embora os blocos da fundação inicial já existam.

As reservas mantidas em dólar caíram quase 4 pontos percentuais ao longo de 2017 e 2018. Ao mesmo tempo, os gestores das reservas continuaram ampliando a proporção do yuan e do iene, especialmente em países com relações políticas estremecidas com os EUA.

Até agora, esses fluxos têm estado bastante concentrados. A Rússia foi responsável por cerca de 70% das novas reservas em yuans em 2018 e Brasil e Chile, por cerca de 40% do acúmulo de reservas em yuan em 2019.

Os EUA têm usado cada vez mais o domínio do dólar para fortalecer suas políticas externa e comercial. Em reação a isso, vêm ganhando mais força ideias como começar a liquidar em euros o comércio mundial de petróleo.

Claudio Borio, chefe do departamento econômico e monetário do Banco de Compensações Internacionais (BIS), sinalizou em discurso neste ano: passar para o euro operações de liquidação e comercialização do petróleo e afastá-las do dólar “poderia limitar o alcance da política externa dos EUA”.

Nos últimos cinco anos, a Rússia também promoveu medidas direcionadas para afastar-se do dólar como moeda usada no comércio exterior e em outros pagamentos, de forma a reduzir o impacto da força da divisa americana em sua economia.

O economista Dmitry Dolgin, do ING Bank em Moscou, viu “claros sinais” no primeiro trimestre de aumento nas exportações em euros da Rússia para a União Europeia e a China e em rublos para a Índia.

Os bancos centrais, no entanto, deparam-se com uma difícil escolha. Nem o euro nem o yuan têm a alta liquidez que os mercados em dólar oferecem. Os rendimentos dos bônus governamentais da zona do euro estão em profundo território negativo, enquanto o yuan continua altamente controlado pelo governo chinês, apesar dos recentes esforços de liberalização.

Alguns gestores de reservas voltaram-se ao ouro. Um relatório do Conselho Mundial do Ouro (WGC, na sigla em inglês) e do centro de estudos OMFIF (Fórum Oficial de Instituições Monetárias e Financeiras), divulgado em setembro, ressaltou que os bancos centrais têm comprado o metal em níveis que não se viam desde Bretton Woods, quando as taxas de câmbio estavam atreladas ao ouro.

China, Rússia e Índia foram os maiores compradores de ouro, juntamente com Turquia e Cazaquistão. Só a China aumentou suas reservas em quase 100 toneladas de ouro nos últimos dez meses.

Quando se olha para isso de um ponto de vista de um a dois anos, é altamente improvável qualquer ativo usurpar o domínio do dólar. Mas quando fala em 10 a 20 anos, precisa ter outras considerações em mente.

Bonds Vigilantes: pressão sobre a dívida pública de países sem disciplina fiscal. publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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