Lucinda Pinto e Paola de Orte (Valor,17/10/2019) avaliam: um mundo de taxas de juros muito baixas, onde a busca por melhores retornos, amplia o risco e a vulnerabilidade dos mercados, exige mais atenção por parte dos formuladores de políticas. E já há sinais de alerta que devem ser monitorados. Essa é a mensagem central do Relatório de Estabilidade Financeira do Fundo Monetário Internacional (FMI), divulgado durante a reunião anual do organismo.
O FMI estima a parcela de dívida de empresas com fraca capacidade de pagamento da dívida já ser considerável em várias economias importantes. Em um cenário de desaceleração da economia global, poderia atingir US$ 19 trilhões — o equivalente a 40% de toda a dívida corporativa das economias desenvolvidas –, volume superior ao observado na crise financeira de 2008. As dívidas das empresas incapazes de cobrir os gastos com juros com suas receitas, o que chamamos de dívida corporativa de risco, podem subir para US$ 19 trilhões em um cenário com quase a metade da severidade da crise financeira global.
Nos últimos seis meses, o vaivém da guerra comercial atingiu o mercado financeiro, fazendo com que o clima de negócios piorasse e crescessem as preocupações com os riscos de desaceleração econômica. A atuação dos bancos centrais, dando mais incentivos monetários e muitas vezes adotando juro negativo, contribui para amenizar esses riscos de desaceleração no curto prazo. Mas, ao mesmo tempo, essa política eleva os riscos financeiros e aumenta a vulnerabilidade, colocando em risco o crescimento a médio prazo.
Hoje, o volume de bônus com rendimento de juro negativo já equivale a US$ 15 trilhões, sendo mais de US$ 7 trilhões de bônus de governos de países desenvolvidos. Os juros de 10 anos agora estão negativos em países como Áustria, Dinamarca, Finlândia, Bélgica, França, Alemanha, Japão, Países Baixos, Suíça e Suécia.
Quando se olha para os preços de mercado, a expectativa é que cerca de 20% dos bônus soberanos estarão negativos até 2022. Em alguns casos, os juros desses papéis de longo prazo caem sem haver fundamentos para justificar esse movimento. [FNC: Ora, quando aumenta a demanda por títulos prefixados de longo prazo já emitidos com juros maiores, elevam-se seus preços de mercado e caem então os juros reminescentes. Confira a figura abaixo.]
Esse quadro de juros baixos tem incentivado seguradoras e fundos de pensão e outros investidores institucionais a aplicarem em ativos mais arriscados e menos líquidos. Segundo o FMI, hoje, a vulnerabilidade dessas entidades cresceu e permanece elevada em 80% das economias com setores financeiros sistemicamente importantes. Essa fatia é semelhante à observada no auge da crise financeira de 2008 e 2009.
O avanço do endividamento do setor privado não financeiro é um foco de atenção, com riscos a serem observados no médio prazo, alerta o FMI. Há um bom número de empresas não financeiras frágeis nessas economias que ainda estão conseguindo rolar a dívida e continuam a acumular dívida por causa de taxas de juros muito baixas. A preocupação é que no caso de uma desaceleração econômica essas companhias possam experimentar dificuldades para pagar suas dívidas e tenham que alavancar. E quando isso acontece, elas cortam investimentos, empregos, e isso exacerba a recessão.
O fluxo de capitais para mercados emergentes é outro efeito provocado pelos juros baixos nas economias desenvolvidas. Esse movimento tem dado suporte ao aumento do endividamento: a mediana da dívida externa cresceu ao equivalente a 160% do volume de exportações dos países, ante uma taxa de 100% observada em 2008. Em alguns países, essa proporção chega a 300%. Na eventualidade de um brusco aperto das condições financeiras, esse aumento de empréstimos pode elevar o custo de rolagem e os riscos de sustentabilidade da dívida.
Dados do FMI mostram que, no fim de 2018, o total da dívida global, pública e do setor privado não financeiro, atingiu US$ 187,5 trilhões, o equivalente a 226,5% do PIB. O volume representa um crescimento de 61,2% em dez anos. Desse total, US$ 68,7 trilhões são dívida pública e US$ 118,8 trilhões são dívida privada.
Somente o grupo dos países que integram o G20 detinha, no fim de 2018, um total de US$ 155,9 trilhões, ou 240,1% do PIB. Nesse caso, houve um avanço de 66,7%.
O maior crescimento ocorreu, no entanto, no volume de dívida de países emergentes integrantes do G20. Para esse grupo, o total da dívida atingiu US$ 44,5 trilhões, um avanço de 295%. Em proporção do PIB, essa dívida representa 139,5%. A dívida soberana somou US$ 11,8 bilhões, enquanto privada, US$ 32,7 trilhões.
O alerta feito pelo FMI é: a busca por retornos em um período prolongado de juros baixos pode levar a uma disparada nos preços de alguns ativos pelo mundo, aumentando o risco de uma correção brusca e repentina das condições financeiras – com efeitos sobre a capacidade de crescimento econômico no médio prazo. Sinais de atenção já são percebidos nos mercados de ações de países desenvolvidos.
A volatilidade implícita dos ativos de renda variável, contudo, diminuiu, em média, este ano, a despeito dos riscos impostos pela guerra comercial e das incertezas sobre o crescimento econômico global. Essa contradição reflete a crença do mercado de que os bancos centrais estarão dispostos a agir para sustentar os preços num cenário de aperto financeiro. Quadro que eleva o desafio da comunicação dos bancos centrais.
Para o FMI, as bolsas do Japão e dos EUA parecem supervalorizadas. Desde abril, as bolsas americanas subiram, enquanto os fundamentos pioraram, devido ao aumento das incertezas sobre crescimento de lucros. Já os mercados de ações de países emergentes parecem ter valor mais justo, pois já foram “temperados” pelas dúvidas sobre a guerra comercial e as perspectivas fracas de crescimento.
Também os bônus soberanos de emergentes parecem estar sobrevalorizados desde o terceiro trimestre de 2019 para mais de 30% dos emissores incluídos no índice de mercados emergentes (Embi), calculado pelo J.P. Morgan.
Segundo o FMI, os formuladores de políticas precisam estar preparados para enfrentar a próxima desaceleração econômica, e uma das maneiras é acompanhar o custo das dívidas corporativas. “Esforços devem ser feitos para aumentar a transparência nos mercados financeiros não bancários, a fim de permitir uma avaliação mais abrangente dos riscos. Nas economias em que a dívida geral do setor corporativo é considerada sistemicamente alta, além das ferramentas prudenciais setoriais específicas para os bancos, os formuladores de políticas podem considerar o desenvolvimento de ferramentas prudenciais para empresas altamente alavancadas. Reduzir o viés nos sistemas tributários que favorece a dívida sobre o financiamento de ações também ajudaria a reduzir os incentivos para empréstimos excessivos”, destaca o FMI.
Outro ponto a ser atacado é o aumento da participação de títulos mais arriscados e ilíquidos por investidores institucionais. A recomendação do FMI é que a supervisão de entidades financeiras não bancárias deve ser reforçada. “As vulnerabilidades entre investidores institucionais podem ser tratadas por meio de incentivos adequados [por exemplo, para reduzir a oferta de produtos com retorno garantido], padrões mínimos de solvência e liquidez e divulgação aprimorada”, diz o fundo, no relatório.
As incertezas comerciais agem junto com vulnerabilidades financeiras. São mecanismos amplificadores de más notícias. “Quando há más notícias no fronte comercial, quanto mais alta a vulnerabilidade financeira, pior é a amplificação”, diz o FMI. “Urgimos aos formuladores de políticas ao redor do mundo que continuem a trabalhar juntos para resolver essas tensões comerciais, porque elas são uma fonte significativa de incerteza.”
Relatório de Estabilidade Financeira do FMI: especulação em ativos de risco por retornos maiores face aos juros baixos publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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