quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Da crise à Desigualdade: economistas ortodoxos erraram feio

Edward Luce (Financial Times 11/10/2019) resenha três novos livros de Economia. Eles dissecam como o capitalismo está mudando e como fracassamos em identificar sinais de perigo pela frente.

Cinco anos antes do desastre financeiro de 2008, Robert Lucas declarou celebremente: “o problema central da prevenção contra depressões foi solucionado […] e, na realidade, foi solucionado há muitas décadas.”

O economista da Universidade de Chicago não estava sozinho. Até às vésperas do pior colapso do mercado em 80 anos, eminências econômicas dos EUA insistiam não haver motivo para alarme, incluindo Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano), e seu sucessor, Ben Bernanke.

Além de não preverem a crise, muitos desses economistas erraram feio ao interpretar as suas consequências. Em dezembro de 2008, Mervyn King, presidente do Banco da Inglaterra (banco central do Reino Unido), ainda projetava crescimento nos salários. Estamos esperando até agora.

Greenspan, por sua vez, previa inflação de dois dígitos. Passados 11 anos da mais fraca recuperação econômica na história dos EUA, a inflação americana continua teimosamente abaixo da meta do Fed, de 2% ao ano. Em fevereiro, o atual presidente do Fed, Jay Powell, dizia que era um “tanto enigmático” o fato de o crescimento dos salários ainda não ter decolado.

Por que os economistas continuam tão errados? Uma resposta é: não são todos. David Blanchflower fazia parte do comitê de política monetária do Banco da Inglaterra durante a crise de 2008. Ele diz as evidências de um iminente colapso estarem à vista de todos muito antes de ele acontecer.

Blanchflower, cujo livro Not Working: Where Have All the Good Jobs Gone? (Não está funcionando: aonde foram parar todos os bons empregos?) é uma crítica cortante à sua profissão, foi sistematicamente derrotado por 8 a 1 nas votações do comitê responsável por determinar as taxas de juros de referência do Reino Unido. Diferentemente de seus colegas, que estavam usando modelos baseados na economia dos anos 70, Blanchflower saía às ruas e conversava com as pessoas. Ele chama isso de “a economia da caminhada”.

Seus colegas, por outro lado, confiavam em “modelos teóricos em grande medida não comprovados que se resumiam a pouco mais do que jogos mentais matemáticos”. Paul Romer, ex-economista-chefe do Banco Mundial, chama isso de “mathiness” (mistura das palavras “matemática” e “loucura”, em inglês): brincar com análises de regressão dos dados para dar uma falsa ideia de precisão. Também seria possível chamar isso de “alquimia”.

Lucas, membro da chamada Escola de Chicago, onde se abrigava a alta nobreza da “mathiness”, ganhou um prêmio Nobel por sua Teoria das Expectativas Racionais. Nela, ele defendia o mercado estar sempre certo!

A ascensão e queda da Escola de Chicago é narrada por Binyamin Appelbaum em seu admirável livro The Economist’s Hour (A Hora dos Economistas). Como mostra ele, até o fim dos anos 60, os economistas eram tratados como pouco mais do que estatísticos secundários. Foi quando a Escola de Chicago, liderada pelo vencedor do Nobel Milton Friedman, passou a dominar o cenário.

A Era de Glamour dos Economistas havia chegado, propelindo-os ao centro do poder e às telas de nossas TVs. Eles se inspiravam em Friedrich Hayek, cujo livro “O Caminho da Servidão” (1944) argumenta praticamente qualquer papel do governo na economia criar um caminho inescapável à autocracia.

Essa “hora dos economistas” incluía muitas escolas sobrepostas. Alguns, como Friedman, eram monetaristas, acreditando que a inflação era unicamente uma função da base monetária – controle-a e você subjuga os preços. Outros, como Arthur Laffer, se baseavam no lado da oferta, argumentando que cortes nos impostos sempre se pagam graças ao aumento de receita das empresas. Todos acreditavam: os mercados “sabiam” o melhor caminho a ser seguido. Como brincou Greenspan certa vez: “Ainda estou para ver uma regulamentação construtiva.”

Appelbaum argumenta: o apogeu deles acabou em 13 de outubro de 2008, quando os executivos-chefes dos maiores bancos dos EUA tiveram que comparecer ao Departamento do Tesouro americano para uma reunião emergencial. Ele certamente está correto. A mãe de todos os pacotes de ajuda econômica a Wall

Street estilhaçou a reputação conquistada pela Ciência Econômica nos 40 anos anteriores. Ainda assim, a arrogância dos economistas persiste. Talvez seja como um daqueles indicadores antecedentes, aos quais a realidade demora a se ajustar.

Um dos motivos para os salários não terem se recuperado no Reino Unido e nos EUA é o fato de muitos economistas ainda estarem usando modelos antigos. Os salários semanais reais dos trabalhadores não gerenciais nos EUA estão 9% menores agora do que em 1972. No Reino Unido, o salário por hora está 5,7% menor do que antes da grande recessão de 2008.

Os modelos tradicionais – mais notadamente o NAIRU, sigla em inglês para taxa de desemprego não acelerador da inflação – dizem aos economistas as taxas de desemprego de 3,5%, atual nível nos EUA, estarem bem abaixo do ponto quando começam a fomentar exigências de aumentos salariais. Basta esperar mais um trimestre, dizem, e as evidências desses aumentos vão aparecer.

Isso, porém, negligencia a importância da baixa taxa de participação da força de trabalho, referente a aqueles desistentes de completamente buscar emprego e excluídos do indicador de desemprego. Nos EUA, 1 em cada 12 homens na idade economicamente mais ativa (25-54 anos) é ex-criminoso, o que basicamente o exclui do mercado de trabalho. Caminhar um pouco mais pelas ruas poderia ajudar as autoridades monetárias a compreender que a taxa de desemprego não captura mais a realidade.

“As autoridades monetárias no início de 2019 parecem estar tão fora de sintonia com o que está acontecendo fora das grandes cidades como estavam quando a grande recessão se aproximava”, escreveu Blanchflower.

Outro modelo antigo, que foi colocado em prática pela última vez por Herbert Hoover depois do crash de Wall Street em 1929, sustenta: uma economia deve ser punida por seus excessos. A contração fiscal de Hoover transformou o colapso do mercado acionário na Grande Depressão.

George Osborne foi ministro das Finanças do Reino Unido entre 2010 e 2016, e o movimento Tea Party dos populistas do Partido Republicano nos EUA com o controle do Congresso americano nesse mesmo ano reviveram esse antigo ditado. Os efeitos depressivos da “austeridade expansionista” de Osborne ajudaram a abrir caminho para o voto a favor da saída do Reino Unido da União Europeia no plebiscito do Brexit em 2016. A disputa fiscal em Washington ajudou a criar a vitória de Donald Trump na eleição presidencial naquele mesmo ano.

Ainda assim, a arrogância persiste. Um dos assessores de Trump é Arthur Laffer, cuja esposa é conhecida por sair para longas corridas “porque é a única forma de continuar casada com um lunático”. O corte de impostos de US$ 1,6 trilhão promovido por Trump foi o remédio errado para uma economia que sofre de baixo investimento. O corte tributário nunca se pagou, como previa Laffer, nem elevou a taxa de crescimento dos EUA. Com as taxas de juros tão baixas, este seria o momento ideal para modernizar a infraestrutura dos EUA. Como Blanchflower brinca, o fato de os EUA não o estarem fazendo é o equivalente a deixar de pegar uma nota de US$ 1 trilhão na calçada.

Então, para onde vamos a partir de agora? Em seu influente livro Global Inequality: A New Approach for the Age of Globalization (Desigualdade Mundial), de 2016, Branko Milanovic – acadêmico de origem sérvia que trabalha em Nova York – mostrou: estamos vivendo em uma era de convergência mundial. Como mostra seu agora famoso “gráfico do elefante”, as economias de baixa renda do mundo vêm rapidamente recuperando o terreno perdido em relação ao Ocidente rico. O corpo do elefante mostra o crescimento da renda da maior parte da população mundial. A parte da tromba em declínio mostra a maltratada classe média dos países ocidentais. E, por fim, a ponta bem erguida da trompa mostra os ganhos desmedidos do grupo de 1% mais rico do Ocidente. Quase todos, incluindo os mais pobres do mundo, se beneficiam da convergência mundial. Isso inclui as elites globalizadas da China, dos EUA e de todos os lugares, cuja situação nunca esteve tão boa.

A grande exceção são os trabalhadores braçais da área de produção em países ocidentais, que provavelmente continuarão sentindo o aperto por mais algumas décadas. O apoio à globalização tende a ser alto no Oriente e baixo no Ocidente. No Vietnã, 91% das pessoas consultadas dizem ser admiradoras da globalização. Na França, apenas 37%.

Em seu livro mais recente, “Capitalism, Alone” (capitalismo, sozinho), Milanovic explica por que o capitalismo não tem mais concorrentes. A economia da China agora é 80% pertencente ao setor privado, em comparação aos 50% no fim dos anos 90 e ao 0% antes do início das reformas em 1978.

A nova competição global, argumenta Milanovic, é entre tipos diferentes de capitalismo, que ele divide em dois: o “capitalismo meritocrático liberal” do Ocidente contra o “capitalismo político” da China.

Cada um é assolado por seus próprios problemas. O modelo da China não é democrático e precisa gerar altas taxas de crescimento para manter sua legitimidade. Por sua vez, na maior parte do Ocidente, a meritocracia vem deixando a desejar. Pela primeira vez, o 0,1% no topo da pirâmide nos EUA agora tem a mesma quantia de riqueza que os 90% mais abaixo (22% e 22,8% da riqueza nacional, respectivamente). Nos anos 80, a faixa de 90% da parte interior da pirâmide detinha cerca de 35% da riqueza dos EUA.

Parte disso pode ser atribuído ao fato de que hoje os ricos que trabalham também vivem dos investimentos de seu capital, que de forma constante vem rendendo mais do que a economia não financeira. A maioria dos donos do capital também trabalha para viver. Eles são mais difíceis de tributar do que aqueles que vivem apenas da renda econômica, uma vez que “suas altas rendas são vistas como sendo mais merecidas”. Como resultado, o Ocidente – e particularmente os EUA – está se tornando mais oligárquico. Podemos agradecer à Escola de Chicago por isso.

A desigualdade na China é ainda pior do que nos EUA – e continua crescendo. Uma explicação para a atual agitação em Hong Kong é que a cidade-Estado é basicamente governada por elites plutocráticas indicadas pela China. A maioria das pessoas, entretanto, não tem nem como arcar com uma moradia básica. A corrupção também cresce na China e em outras partes do mundo em desenvolvimento. Quanto mais o resto do mundo está amarrado à economia global, mais oportunidades de corrupção surgem.

A conta de erros e omissões no comércio mundial feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que se refere a anomalias nos números, dobrou desde 2008, para cerca de US$ 200 bilhões. Uma das maneiras mais fáceis de esconder dinheiro

de suborno é contabilizar as exportações abaixo do valor real e as importações, acima. Ao murchar o que se ganha com as exportações e inflar o que se paga pelas importações, você pode fazer seus ganhos irregulares sumirem do radar. Advogados e firmas imobiliárias aos montes, especialmente em Londres e Nova York, se encarregam do resto. Eles também proporcionam o que Milanovic chama de “lavagem moral”, ao facilitar as generosas doações cleptocráticas a galerias de arte e à Ivy League – universidades de mais renome dos EUA.

Quanto mais de perto se olha, maior a impressão de que os dois tipos de capitalismo de Milanovic estão se fundindo. No Ocidente, argumenta-se que a meritocracia parece cada vez mais oca, enquanto a promessa de crescimento eterno da China certamente precisa chegar ao fim. O que se sabe com certeza é que há uma crescente desigualdade entre os países e dentro deles. Nenhum sistema, seja liberal ou iliberal, é capaz de tolerar indefinidamente uma plutocracia.

“Enquanto os capitalistas usavam seu excesso de renda para investir, em vez de consumir, o contrato social se mantinha”, escreve Milanovic. Seu livro deixa poucas dúvidas de que o contrato social não está mais se mantendo. Esteja você vivendo em Pequim ou Nova York, a hora de renegociar tal contrato se aproxima.

Da crise à Desigualdade: economistas ortodoxos erraram feio publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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