quinta-feira, 4 de junho de 2020

Liberalismo Clássico

Para o liberalismo clássico, ou liberalismo em sua forma histórica original, segundo José Guilherme Merquior, no livro O Liberalismo: Antigo e Moderno, escrito em 1989, o tema protestante da inviolabilidade da consciência foi uma contribuição poderosa e seminal para o credo liberal. Mas, na história das instituições liberais, o vínculo entre consciência e liberdade era tão reto e direto?

As seitas protestantes sustentavam a liberdade de consciência diante da intransigência católica, mas recaíam muitas vezes na intolerância e na repressão. Havia um furor protestante contra a heresia. A perseguição entrou em prática em ambos os campos: a Reforma e a Contra-Reforma.

Compreensivelmente, o pensamento político de vanguarda respeitou por um tempo a liberdade religiosa, embora temesse tanto o fanatismo como temia o poder estatal.

A tolerância religiosa tornou-se a pedra angular do sistema protoliberal, advogada pelo puritano de formação, John Locke. Declarou a perseguição ser contrária à caridade e, portanto, não cristã. Sublinhou o cuidado da alma cristã requer “persuasão interna” e, assim, livre consenso, ao invés de coerção.

A tolerância se tornou o objeto de justificações seculares. A luta pelos direitos religiosos alimentou a ideia de direitos individuais gerais, uma das próprias fontes do liberalismo.

A principal força na legitimação conceitual da moderna ideia de direitos foi a modernização da Teoria de Direito Natural. Sua contenção básica é existir uma lei mais alta, “uma razão reta (recta ratio) segundo a natureza”, como disse Cícero.

Essa razão tão imutável, aplicada ao comando e proibição, é “direito” porque permite às pessoas diferenciar o bem do mal, consultando nada mais além de suas cabeças e seus corações, seu senso moral interno. Reconhecia um parentesco entre tal Direito Natural e o direito das gentes, na realidade, um direito consuetudinário da humanidade.

O conceito de Direito sofreu modificações ainda mais profundas durante a transição da Antiguidade para a Idade Média. A noção de Direito denota uma reivindicação caracterizada, muitas vezes relativa a coisas (como o Direito de Propriedade), e tem um forte lado subjetivo. O conceito romano de ius, em contraposição, era bem objetivo.

A abordagem puramente individualista foi o cerne do contratualismo. A autoridade legítima passou a ser encarada como coisa fundada em pactos voluntários feitos pelos súditos do Estado. As obrigações decorrem de promessas, isto é, de opções claras praticadas pela vontade individual.

Thomas Hobbes (1588-1679) foi autor de Leviatã (1651), onde explanou os seus pontos de vista sobre a natureza humana e sobre a necessidade de um governo e de uma sociedade fortes. No estado natural, embora alguns homens possam ser mais fortes ou mais inteligentes, nenhum se ergue tão acima dos demais de forma a estar isento do medo de outro homem lhe fazer mal.

Por isso, cada um sente ter direito a tudo. Mas como todas as coisas são escassas, existe uma constante “guerra de todos contra todos”. No entanto, os homens têm interesse próprio de acabar com a guerra e, por isso, formam sociedades através de um Contrato Social.

De acordo com Hobbes, tal sociedade necessita de uma autoridade à qual todos os membros devem render o suficiente da sua liberdade natural, de forma a autoridade assegurar a paz interna e a defesa comum. Este soberano, quer seja um monarca ou uma assembleia (caso composta por representantes de todos seria uma democracia), deveria ser o Leviatã, uma autoridade inquestionável.

Rejeitando a ideia de ordem natural com predestinação divina, Hobbes partiu do indivíduo e viu a sociedade como uma coleção de indivíduos. Essa forma racionalista e individualista de modernizar o Direito Natural tornou o jusnaturalismo, “a força intelectual capaz de finalmente dissolver a visão medieval da natureza dos grupos humanos”.

O pensamento protoliberal era uma mistura do contratualismo de Locke e do constitucionalismo de Montesquieu.

Montesquieu (1689-1755) defendia a divisão do poder em três, para contrabalançar cada qual:

  1. Poder Executivo: responsável pela administração do território e concentrado nas mãos do monarca, presidente ou primeiro-ministro;
  2. Poder Legislativo: responsável pela elaboração das leis e representado pelas câmaras de congressistas ou parlamentares;
  3. Poder Judiciário: órgão responsável pela fiscalização do cumprimento das leis e exercido por juízes e magistrados.

Era a favor da Monarquia Parlamentar.

Outra importante teoria de Montesquieu trata das relações das formas de Governo e seus princípios. Seriam as seguintes:

  1. aristocracia – princípio: moderação;
  2. monarquia – princípio: honra;
  3. despotismo – princípio: terror.

Montesquieu atribuiu mais algumas subclassificações a estas formas de governo:

Formas Puras:

  1. monarquia: governo de um só;
  2. aristocracia: governo de vários;
  3. democracia: governo do povo – princípio: virtude.

Formas Impuras:

  1. tirania: corrupção da monarquia;
  2. oligarquia: corrupção da aristocracia;
  3. demagogia: corrupção da democracia.

John Locke (1632-1704), o primeiro pensador liberal de grande influência, teorizou um Contrato Social, onde estabeleceu um governo legal em termos individualistas, como o fizera Hobbes, embora o Leviatã (1651) propusesse a Monarquia Absolutista, enquanto Locke defendia um governo limitado. O ponto crucial dessa diferença consiste na reelaboração frutífera por parte de Locke da noção de consenso como base para a legitimidade.

A ideia de consenso como origem da autoridade legítima implica em vontade politicamente expressa. Contudo, ele pode variar em torno de dois eixos.

  1. o consenso pode ser concebido tanto em uma base individual como corporativa;
  2. o consenso em relação a um governo pode ser dado seja de uma vez por todas, seja periódica e condicionalmente.

Nesse último caso, pode ser retirado (ou não), segundo a opinião dos cidadãos quanto à qualidade do desempenho governamental.

No caso da maioria dos primeiros pensadores do consenso, este era um ato corporativo da comunidade, efetuado no passado. A originalidade de Hobbes e Locke consistia em sublinhá-lo a partir do indivíduo.

A inovação por parte de Locke consistiu em tornar o consenso, mesmo tácito, uma escolha periódica e condicional. Sua obra inaugurou “a política de confiança”. Locke encarou os governantes como curadores da cidadania e imaginou um direito à resistência e mesmo à revolução. Dessa maneira, o consenso tornou-se a base do controle do governo.

Entronizando o Direito de Resistência, Locke ampliou o princípio individualista de vontade e consenso. Este, em lugar de tradição, é a principal característica da legitimidade em política liberal.

O contratualismo de Locke representou a apoteose do Direito Natural no sentimento individualista moderno. Hobbes, antes dele, e Rousseau, depois, imaginaram Contratos Sociais pelos quais os indivíduos alienariam por inteiro seu poder em favor do rei ou da assembleia.

Para Merquior, o dos Direitos é o primeiro e mais importante dos três componentes do liberalismo clássico. Quanto ao segundo componente, constitucionalismo, uma Constituição, escrita ou não, consiste nas normas regentes de um governo. É o governo da lei. Sustenta a exclusão tanto do exercício do poder arbitrário quanto do exercício arbitrário do poder legal.

Merquior situa a liberdade moderna na nova religiosidade do misticismo do século XVII e na sociedade civil da Europa pós-revolucionária e dos Estados Unidos. Contudo, quanto mais fundo pesquisava as raízes dos Direitos e do Constitucionalismo, mais achou decisivos desvios conceituais terem sido realizados naquele prolongado e ainda sombrio laboratório da cultura ocidental: a Idade Média.

No pensamento político moderno, assim como na cultura política moderna, não se tratou apenas de combinar a ideia de direitos e consenso, ambas já presentes nos juristas e filósofos medievais. Tal combinação tinha uma dimensão adicional, distintamente pós-medieval: uma visão da sociedade individualista, não holística e não hierárquica. Em última instância, isso traz o Contrato Social dos primeiros pensadores modernos para perto do nosso próprio universo liberal democrático.

Os liberais clássicos foram basicamente fiéis à promessa democrática e ao potencial libertário da ideia liberal. Conduziram sua inventiva institucional, sua imaginação conceitual e sua força analítica em um estado de espírito leigo.

Mesmo quando os seus teóricos, como Constant e Tocqueville, atribuíram grande importância à religião, seu modo de teorizar já não era ditado por preocupações teológicas. Pelo menos nisso, o espírito leigo do Iluminismo impôs-se muito coerentemente.

O liberalismo clássico não ocupou todo o palco do pensamento liberal. Por volta de meados do século XIX, emergiram várias correntes liberais capazes de se diferenciarem, consideravelmente, das posições e dos modos de discurso dos liberais clássicos.

As novas correntes eram também bastante distintas dos desenvolvimentos tardios conhecidos como “novo liberalismo” e caracterizados por seu conteúdo “social”. Tais correntes, algumas das quais eram contemporâneas do último estágio do liberalismo clássico, podem ser reunidas sob um único rótulo: liberalismo conservador.

Liberalismo Clássico publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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