Simon Kuper (Financial Times 27/09/2019) anuncia: em ‘Capital e Ideologia’, Piketty ataca as justificativas de desigualdade. Reproduzo abaixo sua resenha.
“O novo livro de Thomas Piketty, “Capital e Ideologia”, será lançado em inglês no mês de março de 2020. Mas tive uma prévia dele ao entrar em minha livraria parisiense favorita e comprar a edição francesa por € 25. Minha conclusão: o tomo de 1.200 páginas poderá se tornar ainda mais politicamente influente do que a visão de 2013 do economista francês sobre a desigualdade em “O Capital no Século 21”.
Com uma pequena ajuda do livro, a desigualdade ganhou mais peso na agenda da esquerda, especialmente nos particularmente desiguais Estados Unidos e Reino Unido. Agora, a senadora democrata Elizabeth Warren tem a oportunidade de se tornar a presidente americana mais distribucionista desde Franklin D. Roosevelt, com um líder trabalhista elegível pós-Jeremy Corbyn podendo conseguir o mesmo no Reino Unido.
Piketty argumenta por que este pode ser o momento para uma virada em direção à igualdade e discorre sobre quais políticas poderiam fazer isso acontecer.
Sua premissa é: a desigualdade é uma escolha política. É algo pelo qual as sociedades optam, e não um resultado inevitável da tecnologia e da globalização. Enquanto Karl Marx via a história como uma luta de classes, Piketty a vê como uma batalha de ideologias.
Todas as sociedades desiguais, diz ele, criam uma ideologia para justificar a desigualdade. Isso permite aos ricos dormir tranquilos em suas casas, enquanto os sem-teto congelam do lado de fora.
Em sua história excessivamente ambiciosa da desigualdade, indo da Índia antiga aos EUA de hoje, Piketty relata as justificativas repetidas ao longo do tempo:
- “os ricos merecem sua riqueza”;
- “ela vai se multiplicar”;
- “eles devolvem por meio da filantropia”;
- “propriedade é liberdade”;
- “os pobres são indignos”;
- “uma vez que se começa a redistribuir a riqueza, não sei sabe onde parar e haverá o caos” (esse era um argumento favorito depois da Revolução Francesa);
- “O comunismo fracassou”;
- “o dinheiro irá para os negros” (um argumento explicativo de por que a desigualdade continua sendo maior em países racialmente divididos, como Brasil, África do Sul e EUA).
Outra justificativa comum, que ele não menciona, é “impostos altos são punitivos” – como se o principal problema fosse a suposta psicologia por trás da redistribuição, em vez de seus efeitos reais.
Todas essas justificativas contribuem para o que Piketty chama de “sacralização da propriedade”. Mas hoje, escreve ele, os “‘proprietaristas’ e a narrativa meritocrática” estão ficando fragilizados. Há um entendimento crescente de que a chamada meritocracia foi capturada pelos ricos, que colocam seus filhos nas melhores universidades, compram partidos políticos e escondem seu dinheiro da tributação.
Além disso, observa Piketty, os ricos são preponderantemente homens e seu estilo de vida tende a ser particularmente prejudicial ao meio ambiente. Donald Trump – um herdeiro machista que nega as mudanças climáticas e foi eleito presidente sem divulgar as suas declarações de renda – personifica esse problema.
Na verdade, o apoio à redistribuição vem crescendo ainda mais rapidamente que o admitido por Piketty, especialmente nos EUA. Hoje, duas vezes mais americanos sentem mais desconfiança do que admiração por bilionários, segundo pesquisa HuffPost/YouGov. Os “millennials” são especialmente desconfiados do sucesso.
Mais adultos americanos com menos de 30 anos afirmam acreditar mais no “socialismo” do que no “capitalismo”, segundo o instituto Gallup. Essa geração possui muito poucas propriedades para sacralizá-las. Os partidos de centro-direita do Ocidente vêm adotando o populismo porque seu discurso de impostos baixos e Estado pequeno não estava mais convencendo. O populismo de direita fala ao espírito antielitista e antimeritocrático de hoje.
Entretanto, isso deliberadamente muda o foco do debate da propriedade para o que Piketty chama de “a fronteira” (e outros chamam de limites). Isso deixa um vazio no mercado político para ideias redistribucionistas. Estamos agora num momento crítico muito parecido com o de 1900, quando a desigualdade extrema ajudou a lançar os partidos socialistas e comunistas.
Piketty fornece uma nova agenda redistribucionista. Ele pede “justiça educacional”- basicamente gastar a mesma quantia por cada pessoa em educação. Ele defende dar aos trabalhadores mais poder de decisão sobre como as empresas são administradas, como acontece na Alemanha e na Suécia. Mas a sua principal proposta é a taxação sobre a riqueza.
Longe de abolir a propriedade, ele quer distribuí-la para a metade mais pobre, que mesmo nos países ricos nunca teve muita coisa. Para fazer isso, afirma, é preciso redefinir a propriedade privada como “temporária” e limitada: você pode gozar dela enquanto estiver vivo, em quantidades moderadas.
Piketty propõe uma taxação de 90% sobre as fortunas dos bilionários. Com esses recursos, um país como a França poderia conceder a cada cidadão um fundo fiduciário de cerca de €120 mil euros à idade de 25 anos. Impostos muito altos, observa ele, não impediram o crescimento acelerado no período de 1950 a 1980.
Elizabeth Warren (assessorada por economistas que trabalham com Piketty) está propondo impostos anuais de 2% sobre as fortunas de famílias com mais de US$ 50 milhões, e 3% sobre os bilionários. Ela estima que isso afetaria 75 mil famílias e renderia receitas de US$ 2,75 trilhões em dez anos. Pesquisas sugerem que a maioria dos americanos gosta da ideia.
Paradoxalmente, os EUA plutocráticos podem ser o terreno ideal para um imposto sobre as fortunas. Mark Stabile, economista do Instituto Europeu de Administração de Empresas (Insead), observa que os americanos ricos possuem hoje tanta riqueza que mesmo que Warren capture apenas uma pequena parcela, isso pode contribuir com muito.
Em segundo lugar, argumenta Stabile, os americanos são taxados mesmo no exterior, de modo que transferir a riqueza para fora do país não os resguardaria (e Warren imporia pesadas taxas a todos que quisessem desistir da cidadania).
Por último, graças aos SwissLeaks e aos Panama Papers, aprendemos muita coisa sobre como os riscos escondem seu dinheiro. Defensores da desigualdade surgirão com as justificativas usuais. Mas agora os redistribucionistas têm a sua melhor chance.
Capital e Ideologia publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário