Lu Aiko Otta (Valor, 02/06/2020) informa: o primeiro item da agenda de retomada econômica do governo no Congresso é a votação do marco regulatório do saneamento, em análise no Senado. A expectativa é ser colocado em votação por volta de 15 de junho. No entanto, esse calendário ainda depende de articulações políticas, que se tornam mais difíceis no ambiente conflagrado entre o Executivo e os demais Poderes.
“O marco do saneamento tem especial importância porque se conecta com o pós- pandemia, mas também com o período durante a pandemia”, disse o secretário de Desenvolvimento de Infraestrutura do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord. O marco não só faz parte das medidas para destravar investimentos privados, como também tem impacto na saúde pública e no combate à doença. “É duplamente importante.”
A relação do saneamento com o combate à pandemia pode ser o elemento faltante para destravar a votação. No entanto, ressaltou, a decisão é eminentemente política.
Um gráfico elaborado pela Secretaria de Política Econômica (SPE) confrontou a cobertura de esgoto tratado e as mortes por covid-19 nas capitais. Mostra: nas cidades onde há menos de 40% de tratamento, houve 14,45 mortes por 100 mil habitantes, em média. Naquelas com 40% a 70%, o índice foi menor: 12,75. E nas cidades com mais de 70%, a média de mortes foi 3,62. O Valor reproduziu o gráfico utilizando dados do dia 28 de maio, com conclusão semelhante.
A proposta em análise no Senado ataca três dos principais problemas da regulação que explicam a baixa cobertura, principalmente da rede de esgoto.
O primeiro é regulatório: como o poder concedente é o município, há uma multiplicidade de regras. A proposta coloca a Agência Nacional de Águas (Ana) em um papel de coordenação, editando normas de referência.
O segundo problema é de eficiência. As empresas estatais atualmente têm “contratos de programa” renovados sucessivamente, sem licitação. O marco em análise no Senado estabelece metas para as empresas de saneamento. Não importa se são públicas ou privadas: elas precisarão atingir os objetivos, ou terão seu contrato terminado.
Hoje, apenas 3% das cidades têm serviços privados de água e esgoto. Em 70% deles, as empresas são estaduais e em outros 27%, municipais.
O terceiro problema é de escala. Para garantir rentabilidade, as empresas de saneamento precisam de um grande número de usuários, por isso se concentram nas grandes cidades. A proposta cria blocos de municípios de tamanhos variados, para viabilizar o atendimento também para as pequenas cidades.
Segundo dados entregues pelo Ministério da Economia ao Congresso, hoje 33 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada. Apenas 50 milhões têm acesso a água tratada e esgoto coletado e tratado.
Para que as metas de universalização de serviços previstos na nova lei sejam atingidas, serão necessários investimentos de R$ 700 bilhões até 2033, informou Mac Cord. Eles seriam capazes de gerar 700 mil empregos.
“Há capital interessado na aprovação do marco legal para investimento imediato”, afirmou o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), José Carlos Martins. Em reunião com investidores estrangeiros, o executivo disse não ter ouvido queixas quanto à instabilidade política no Brasil, mas sim quanto à insegurança jurídica. E esse ponto é atacado pelo novo marco.
Apesar da pandemia, as condições favoráveis aos investimentos estão colocadas e o capital existe. Exemplo é a captação de US$ 3,25 bilhões no mercado internacional feita recentemente pela Petrobras, por meio de uma subsidiária. A demanda foi cinco vezes maior do que a oferta.
A queda dos juros no mercado internacional, a desvalorização do real, o baixo nível de cobertura das redes de saneamento são fatores que tornam o Brasil atraente para investimentos.
Há disposição de alguns governos estaduais em vender suas empresas de saneamento. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), já declarou muitas vezes que pretende privatizar a Sabesp. No BNDES, estão em preparação as vendas das empresas de Roraima, Acre, Rio de Janeiro e Alagoas. Estão em início os estudos para a privatização em Minas Gerais.
Taís Hirata (Valor, 01/06/2020) informa: a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) acaba de entrar para a carteira de privatizações do BNDES. Precisará investir entre R$ 22 bilhões e R$ 25 bilhões para universalizar o acesso a água e esgoto nos mais de 600 municípios onde atua.
Para a empresa cumprir essa meta até 2033 – prazo definido pelo novo marco legal do saneamento básico -, será preciso buscar novos investimentos privados.
A nova legislação busca ampliar a participação de empresas privadas no setor de saneamento básico. Ela já foi aprovada pela Câmara, mas ainda aguarda votação do Senado. Mesmo sem a aprovação, porém, a companhia vem se preparando para cumprir os requisitos que passarão a ser exigidos.
Neste ano, a companhia mineira deverá investir R$ 850 milhões em sua operação. Nos próximos anos, o montante deverá subir para R$ 1,25 bilhão. Esse é o volume possível de fazer no cenário atual. É um aumento em relação aos anos passados, mas não o suficiente para dar velocidade ao ritmo de investimentos.
A possível privatização da Copasa passará a ser estudada pelo BNDES, que na semana passada recebeu autorização para contratar as consultorias que farão os estudos. O governo estadual vem defendendo uma venda completa da empresa, mas a análise do banco poderá apontar outros formatos, como concessões ou Parcerias Público Privadas. Hoje, a Copasa já é uma empresa mista, com ações negociadas na Bolsa. O Estado, porém, ainda detém o controle, com 50,04% das ações.
A perspectiva de venda da Copasa animou o mercado. Porém, analistas veem uma série de entraves políticos para a privatização se concretizar: o principal deles é a necessidade de alterar a Constituição do Estado. Ela hoje exige a realização de um referendo popular para autorizar a vendas de estatais.
As possíveis modelagens serão uma decisão do Estado. O trabalho hoje é, independentemente da desestatização, tornar a Copasa mais eficiente, para que competir no futuro mercado com o novo marco legal.
O executivo antes de assumir a presidência da empresa era diretor de uma das maiores operadoras privadas do setor, a Águas do Brasil. Entrou na Copasa com a missão de reestruturar a companhia, reduzir gastos e melhorar a operação.
Desde então, foram cortados cargos de gerência, as diretorias de operação foram fundidas em uma só e foi montada uma divisão para cuidar da regularização e renovação dos contratos com os municípios. Um dos próximos passos da gestão, diz ele, é o lançamento de um Plano de Demissão Voluntária (PDV), que deverá ficar pronto no início de 2021.
A Copasa está em transformação. Ainda não está pronta, mas seu objetivo é, no futuro, disputar bons contratos, em licitações em qualquer região do Brasil, não apenas em Minas Gerais.
A atuação para além do Estado é um planejamento que independe do resultado da desestatização. Obviamente há desafios em relação ao volume de investimentos.
Assim como outras companhias do setor, a Copasa tem sido afetada pela atual crise. Ela elevou os índices de inadimplência. Por conta da pandemia, a empresa deixou de fazer o corte dos serviços daqueles que não pagem a conta, postergou o pagamento de tarifas de famílias de baixa renda e tem renegociado dívidas pendentes dos clientes.
Ao fim de abril, a inadimplência atingiu um patamar de cerca de 20%, mas ao longo de maio a companhia já tem visto uma queda dessa taxa.
A Copasa tem situação de caixa confortável para fazer frente aos investimentos previstos no atual plano. Há uma perspectiva de fazer uma nova captação de recursos, por meio de debêntures, mas a empresa vai aguardar melhores condições de mercado.
Jerson Kelman é autor do livro “Desafios do Regulador”. Foi presidente da ANA e diretor-geral da ANEEL. Publicou (Valor, 27/05/2020) sobre a regulação do saneamento.
“Ninguém sabe quanto tempo a corona-crise durará e muito menos como a economia pós-pandemia se comportará. Uma recuperação rápida, se ocorrer, será provavelmente puxada pelo investimento em infraestrutura, que tem o mérito de criar empregos e eliminar os gargalos limitadores de nossa produtividade.
Haverá oportunidades no setor de saneamento, onde muito ainda precisa ser feito para prover água tratada aos 35 milhões de brasileiros sem-serviço (como pedir que lavem as mãos?) e coleta/tratamento de esgoto a 100 milhões que vivem em ambientes insalubres.
Nos países ricos, esses investimentos foram feitos décadas atrás, frequentemente com a participação de recursos fiscais. No Brasil de hoje, com o Tesouro exaurido, essa alternativa não existe.
Antes da crise, administradores de bilhões de dólares de fundos de pensão zanzavam pelo mundo em busca de negócios para remunerar o capital ao longo de muitos anos, aceitando taxas relativamente modestas, porém sem previsíveis sobressaltos. Investimentos de preferência sustentáveis, tanto social quanto ambientalmente, como é o caso do setor de saneamento.
É razoável supor que no pós-crise esses potenciais investidores estarão de volta. Porém, se aqui permanecer o atual ambiente de insegurança jurídica e regulatória, é provável que passem ao largo e procurem portos mais seguros para ancorar o dinheiro dos pensionistas. E o Brasil continuará sendo o país do futuro.
Atualmente, a regulação do saneamento é pulverizada e quase sempre de qualidade inferior à do setor elétrico, onde a regulação é centralizada na ANEEL. Como o serviço de energia elétrica é de responsabilidade federal, são relativamente poucas as ações na Justiça iniciadas por autoridades locais – prefeitos, governadores ou promotores de Justiça.
Nesse sentido, há significativa vantagem das concessionárias de eletricidade sobre as de saneamento, que são frequentemente enredadas em conflitos com a administração pública local, causando abalos nos respectivos equilíbrios econômico-financeiros.
O mais comum é o prefeito, a Câmara de Vereadores ou o promotor de Justiça demandar serviço de melhor qualidade – o que é perfeitamente legítimo -, mas não concordar com a inclusão no cálculo tarifário do investimento necessário para materializar benfeitorias sem previsão contratual.
Conflitos têm origem no desconhecimento de as tarifas serem calculadas para remunerar a infraestrutura existente e não a que deveria existir. Há também frequentes pressões para a concessionária injustificadamente diminuir as tarifas ou assumir responsabilidades estranhas a seu mandato. E cada município pode ter suas próprias regras. Uma Babel!
A boa notícia é esses problemas estarem na iminência de serem mitigados, dentro do possível alcançar sem desrespeitar as balizas constitucionais. Basta que seja aprovado o novo marco legal para o setor, o PL 4162/2019, em discussão final no Senado.
O PL tem muitas qualidades. A começar por finalmente esclarecer, depois de mais de duas décadas da promulgação da Constituição: o município não detém o direito de decidir sozinho sobre o saneamento quando compartilhar alguma instalação necessária para a prestação do serviço com municípios vizinhos. Tipicamente, é o caso de regiões metropolitanas e do semiárido nordestino, onde uma adutora frequentemente abastece diversas cidades.
Mesmo quando o serviço for de interesse local, e portanto de responsabilidade exclusiva do município, o PL incentiva a formação de blocos de prestação de serviço para tomar partido do efeito escala e propiciar uma regulação mais profissional e homogênea.
O PL atribui à Agência Nacional de Águas (ANA) a responsabilidade de elaborar diretrizes para a regulação do saneamento. Trata-se da mesma medida, proposta 20 anos atrás pela administração FHC para melhorar o ambiente regulatório, lamentavelmente engavetada pelo Congresso.
Se finalmente for aprovada, a ANA passará a exercer uma atividade que poderia se chamar de “regulação indireta”. Não terá a mesma eficácia da “regulação direta”, como a praticada pela ANEEL. Mas é o que dá para fazer sem alterar a Constituição.
Caberá à ANA emitir normas gerais e verificar o cumprimento por parte das agências reguladoras locais que farão a maior parte da regulação, inclusive o cálculo de tarifas, a fiscalização do cumprimento das metas contratuais e de qualidade do serviço.
Simplificadamente, pratica-se hoje no Brasil dois tipos de regulação econômica:
- a contratual e
- a discricionária.
A contratual é predominante utilizada quando o grosso do investimento ocorre ao início da concessão, como é o caso da construção e operação de uma estação de tratamento, de água ou de esgoto. Para fazer um paralelo com o setor elétrico, no caso de construção e operação de uma linha de transmissão.
Como há competição pela concessão, presume-se que o vencedor tenha se comprometido com um nível tarifário capaz de assegurar o equilíbrio econômico-financeiro, pelo menos na partida. As atualizações tarifárias previstas em contrato são relativamente simples. Consideram, por exemplo, a correção monetária dos insumos e a atualização do custo de capital de terceiros.
Uma concessão plena de água e esgoto pressupõe investimentos ao longo de décadas e dependem da evolução demográfica, urbana e tecnológica. Como é impossível prever contratualmente o que vai acontecer em prazos tão largos, o mais indicado é adotar o segundo tipo de regulação, o discricionário. Nesse caso, confia-se numa agência reguladora para manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão por meio de revisões tarifárias periódicas. Como essas revisões são feitas sem que haja uma licitação para balizar o nível tarifário justo, a agência emula a inexistente competição.
Sintomaticamente, a maior parte dos contratos de saneamento das empresas privadas adota o primeiro tipo de regulação, apesar do segundo parecer mais indicado. Isso ocorre devido à desconfiança com relação à capacidade da agência reguladora local de se manter tecnicamente capaz e independente do poder local ao longo de décadas.
O PL atribui à ANA a tarefa de mitigar essa desconfiança. Para isso efetivamente ocorrer, há muito trabalho pela frente. Para começar, os senadores devem comparecer às sabatinas para reprovar os candidatos à diretoria da ANA, indicados por arranjos políticos de ocasião. Em geral, não têm conhecimento técnico e econômico para exercer tão elevadas responsabilidades.”
Saída pelo (Tratamento do) Esgoto publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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