segunda-feira, 1 de junho de 2020

Antinomia no Pensamento entre o Psicológico e o Sociológico

Norbert Elias, no segundo tópico do livro “A Sociedade dos Indivíduos” (1939), afirma: o que nos falta são modelos conceituais e uma visão global mediante os quais possamos tornar compreensível, no pensamento, aquilo vivenciado por nós diariamente na realidade.

Necessitamos compreender de qual modo um grande número de indivíduos compõe entre si algo maior e diferente de uma coleção de indivíduos isolados: como eles formam uma “sociedade” e como sucede a essa sociedade poder modificar-se de maneiras específicas. Ela tem uma história a seguir um curso não pretendido ou planejado por qualquer dos indivíduos componentes dela.

A junção de muitos elementos individuais forma uma unidade, cuja estrutura não pode ser inferida de seus componentes isolados. Não se pode compreender a estrutura inteira pela contemplação isolada de cada um dos componentes.

Tampouco se pode compreendê-la pensando na sociedade como uma unidade somatória, uma acumulação de indivíduos. Por certo não nos leva muito longe fazer uma análise estatística das características de cada indivíduo e depois calcular a média delas.

A teoria da Gestalt ensinou-nos: o todo é diferente da soma de suas partes. Ele incorpora leis de um tipo especial, as quais não podem ser elucidadas pelo exame de seus elementos isolados.

A combinação das relações de unidades de menor magnitude dá origem a uma unidade de potência maior. Ela não pode ser compreendida quando suas partes são consideradas como estivessem em isolamento, independentemente de suas relações.

Esse modelo poderia facilitar nosso raciocínio sobre a relação entre indivíduo e sociedade, mas nossa autoimagem lhe opõe resistência. Ela refuta os indivíduos, talhados e encaixados para compor uma sociedade, não passarem de um meio e a sociedade ser o fim. Seremos nós, como seres humanos individuais, senão um meio capaz de viver e amar, trabalhar e morrer, em prol do todo social?

Uma das grandes controvérsias de nossa época desenrola-se entre os liberais individualistas e os liberais coletivistas:

  1. para os individualistas, a sociedade, em suas diferentes manifestações — a divisão do trabalho, a organização do Estado, etc. —, é apenas um “meio”, consistindo o “fim” no bem-estar dos indivíduos;
  2. para os coletivistas, o bem-estar dos indivíduos é menos “importante” face à manutenção da unidade social da qual o indivíduo faz parte, constituindo esta união local, nacional ou internacional, o “fim” propriamente dito da vida individual.

Na vida social de hoje, somos incessantemente confrontados pela questão de se (e como) é possível criar uma ordem social capaz de:

  1. permitir uma melhor harmonização entre as necessidades e inclinações pessoais dos indivíduos, e,
  2. atender às exigências feitas a cada indivíduo pelo trabalho cooperativo de muitos para manutenção e eficiência do todo social.

Não há dúvida disso — o desenvolvimento da sociedade de maneira não apenas alguns, mas a totalidade de seus membros ter a oportunidade de alcançar essa harmonia — ser nosso objetivo de criação. Isto ocorreria caso nossos desejos tivessem poder suficiente sobre a realidade.

As duas coisas só são possíveis juntas:

  1. só pode haver uma vida comunitária mais livre de perturbações e tensões se todos os indivíduos dentro dela gozarem de satisfação suficiente; e
  2. só pode haver uma existência individual mais satisfatória se a estrutura social pertinente for mais livre de tensão, perturbação e conflito.

A dificuldade está, nas ordens sociais vivenciadas, uma das duas coisas costuma leva a pior. Entre as necessidades e inclinações pessoais e as exigências da vida social, parece haver, nas sociedades conhecidas, um conflito considerável, um abismo quase intransponível para a maioria das pessoas implicadas.

Aí, nessas discrepâncias da nossa história de vida, se devem buscar as razões das discrepâncias correspondentes em nosso pensamento. Há uma clara ligação entre indivíduo e sociedade em nossas estruturas de pensamento. As contradições entre necessidades individuais e exigências sociais são permanentes em nossa vida.

Os projetos planejados e oferecidos a nós para pôr termo a essas dificuldades parecem, ante um exame rigoroso, apenas voltados para solucionar uma coisa à custa da outra. Este racha social não se supera com a eliminação do outro, pensado como adversário mortífero.

A gravidade dos conflitos a respeito da relação entre indivíduo e sociedade, nos dias atuais, restringe nosso pensamento a certos limites. Qualquer ideia referente a essa disputa é infalivelmente interpretada como uma tomada de posição a favor de um lado ou do outro, como:

  1. uma apresentação do indivíduo como “fim” e da sociedade como “meio”, ou
  2. uma visão da sociedade como o mais “essencial”, o “objetivo mais alto”, e do indivíduo como o “menos importante”, o “meio”.

A tentativa de ver o que está por trás dessa antítese, ou de transcendê-la na esfera do pensamento analítico, parece não fazer sentido para os participantes da disputa. Tudo o que não serve para justificar a sociedade ou o indivíduo como o “mais importante”, o “objetivo mais alto”, parece irrelevante, sequer vale a pena pensar.

Para Elias (1939), uma compreensão melhor da relação entre indivíduo e sociedade só pode ser atingida pelo rompimento dessa alternativa “ou isto/ou aquilo”, desarticulando a antítese cristalizada.

Removendo as camadas de dissimulação, véu de valorações e afetos capaz de encobrir o núcleo da antítese, podemos começar a resolvê-la. Considerados em um nível mais profundo, em si, tanto os indivíduos quanto a sociedade, conjuntamente formada por eles, são igualmente desprovidos de objetivo em si. Nenhum dos dois existe sem o outro.

Antes de mais nada, na verdade, eles simplesmente existem — o indivíduo na companhia de outros, a sociedade como uma sociedade de indivíduos — de um modo tão desprovido de objetivo realizável de modo independente do sistema quanto as estrelas. Elas, juntas, formam um sistema solar. Por sua vez, os sistemas solares são formadores da Via-Láctea.

Essa existência não-finalista dos indivíduos em sociedade é o material onde as pessoas entremeiam as imagens variáveis de seus objetivos. As pessoas estabelecem para si diferentes objetivos, de um caso para outro, logo, não há outros objetivos senão os estabelecidos por elas.

Há dois “gritos de guerra” dos grupos em confronto a bradarem um ao outro:

  1. “a sociedade é o objetivo final e o indivíduo é apenas um meio”;
  2. “o indivíduo é o objetivo final e a união dos indivíduos em uma sociedade é apenas um meio para seu bem-estar”.

Ambos os lemas expressam alguma crença pela qual os dois grupos (dis)torcem para acontecer.

Temos de deixar os lemas para trás e superarmos a necessidade de proclamar diante de todos o que deveria ser a relação entre indivíduo e sociedade, caso nossa vontade prevalecesse. Só então começaremos a nos dar conta da questão mais fundamental de saber: o que realmente é, em todo o mundo, a relação entre indivíduo e sociedade.

Como é possível a existência simultânea de muitas pessoas, sua vida em comum, seus atos recíprocos, a totalidade de suas relações mútuas dar origem a algo não planejado por nenhum dos indivíduos, considerado isoladamente?

Trata-se de algo do qual ele faz parte, querendo ou não, uma estrutura de indivíduos interdependentes, uma sociedade.

Se compreendêssemos melhor o existente, as leis básicas desse substrato de nossos objetivos, a estrutura das unidades maiores configuradas juntas, estaríamos em condições de fundamentar a terapia dos males de nossa vida em comum em um diagnóstico seguro. Enquanto isso não acontece, receitamos uma terapia sem antes termos formulado um diagnóstico claro, independente de nossos desejos e interesses.

Não há dúvida: cada ser humano é criado por outros existentes antes dele. Sem dúvida, ele cresce e vive como parte de uma associação de pessoas, de um todo social. Mas isso não significa nem o indivíduo ser menos importante em relação à sociedade, nem ele ser um “meio” e a sociedade, o “fim”.

A relação entre a parte e o todo pode ser vinculada à relação entre os meios e o fim, mas não lhe é idêntica. Inúmeras vezes, uma forma de relação não tem a mínima ligação com a outra.

A afirmação dos coletivistas – “o indivíduo é parte de um todo maior, formado junto com outros” –, na verdade, não passa de uma observação muito banal e evidente. Inúmeras declarações a propósito da relação entre indivíduo e sociedade reduzem-se à ideia inversa. “Na realidade”, pensam e sentem os expoentes desse ponto de vista liberal individualista, “não existe sociedade; na realidade, existem apenas indivíduos.”

No sentido exato da expressão, os individualistas não conseguem enxergar a floresta por causa de ver apenas árvores. E os coletivistas, vice-versa, são obsessivos pela floresta sem perceber cada árvore. Talvez encontrem algum auxílio para ampliar seu raciocínio na alusão à relação entre a parte e o todo.

A afirmação liberal individualista de os indivíduos serem mais “reais” em relação à sociedade nada mais faz além de expressar o fato de as pessoas defensoras dessa visão acreditarem os indivíduos serem mais importantes, e a associação formada por eles, a sociedade, ser menos importante.

Os neoliberais dizerem “na realidade, não existe sociedade, apenas uma porção de indivíduos”, diz aproximadamente tanto quanto a afirmação de, na “realidade”, não existem casas, mas, em última análise, apenas uma porção de tijolos ou um monte de pedras.

Antinomia no Pensamento entre o Psicológico e o Sociológico publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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