quinta-feira, 10 de outubro de 2019

O que os economistas ainda têm de aprender

Mark Cliffe (Valor, 10/09/2019) escreveu o artigo reproduzido abaixo.

“A macroeconomia foi uma das vítimas da crise financeira mundial de 2008. Os modelos macroeconômicos convencionais não previram a calamidade nem a explicaram de forma coerente, com o que foram incapazes de mostrar como os danos deveriam ser reparados. Apesar disso, grande parte da profissão continua em estado de negação, ansiando pela volta ao “normal” e tratando a crise, na prática, como se tivesse sido apenas uma interrupção inconveniente.

Isso precisa mudar. Embora a recuperação econômica tenha criado raízes, suas fragilidades estruturais sinalizam que a macroeconomia ainda precisa urgentemente de uma reformulação. A recuperação dos últimos anos levou muitas pessoas a uma falsa sensação de segurança, porque foi resultado de políticas monetárias incomuns que transcenderam a mentalidade predominante de “equilíbrio geral”.

Além disso, os modelos econômicos pré-crise têm suado bastante para conseguir lidar com a desestabilização desencadeada pelas tecnologias digitais emergentes. A economia digital é caracterizada pelo aumento nos retornos de escala, graças aos quais as gigantes da tecnologia conseguem rapidamente se aproveitar dos chamados “efeitos de rede” para dominar um conjunto cada vez maior de mercados. Isso tem virado de ponta-cabeça modelos de negócios vigentes e transformado os comportamentos de formas que deixam macroeconomistas e autoridades econômicas lutando – muitas vezes sem sucesso – para acompanhar o ritmo.

Consequentemente, a crença generalizada de que a atividade econômica vai seguir um ciclo regular em torno a uma tendência estável de crescimento não é muito útil além do curtíssimo prazo. Em vez disso, as interrupções econômicas que estamos vivendo colocam em evidência um fato óbvio, mas que os modelos prevalecentes desconsideram: o futuro é, essencialmente, incerto e nem todos os riscos são quantificáveis.

Precisamente por esse motivo, deveríamos rejeitar a noção surgida na esteira da crise de que o mundo vai entrar em um “novo normal”. Diante das mudanças estruturais em andamento nas finanças, tecnologia, sociedade e política, é muito mais proveitoso pensar em termos de um “Novo Anormal”, no qual as economias se caracterizam pela instabilidade estrutural, seja latente ou vigente.

A segunda lição da crise é balanços patrimoniais serem, sim, importantes. A financeirização da economia mundial deixa as economias nacionais vulneráveis a grandes correções no preço dos ativos, variações que podem tornar as dívidas impagáveis. Modelos macroeconômicos cujo foco são os fluxos de renda e de gastos ignoram o papel crucial desempenhado por “efeitos riqueza” como esse. O problema é agravado porque esses modelos são incapazes de prever preços de ativos, já que estes refletem a crença dos investidores quanto aos retornos e riscos futuros. Em outras palavras, os preços de ativos são difíceis de prever porque são, eles próprios, previsões.

Além disso, a regulamentação financeira desde a crise não resolveu necessariamente o problema dos balanços patrimoniais. Sem dúvida, os bancos ficaram, individualmente, mais resistentes como resultado da obrigação de reforçar substancialmente seu capital e seus colchões de liquidez. Mas anos de afrouxamento monetário sem precedentes e as compras de ativos em grande escala por bancos centrais encorajaram uma maior assunção de risco por todo o sistema financeiro e econômico; e fizeram isso de formas que são difíceis de acompanhar ou prever.

Some-se a isso a determinação das autoridades econômicas de limitar a exposição dos contribuintes quando as instituições financeiras quebram, o que fez com que os riscos fossem transferidos aos investidores por meio de instrumentos como os bônus “de socorro financeiro”. Os impactos sistêmicos dessas mudanças reguladoras não ficarão claros até o surgimento da próxima recessão.

Há também um reconhecimento cada vez maior de as contas financeiras não serem o único tipo de balanço importante. À medida que as mudanças climáticas e a degradação ambiental ganham mais importância na agenda política, macroeconomistas começam a dar importância a outras formas menos voláteis de capital para o crescimento sustentável e o bem-estar. Em particular, precisam compreender melhor a interação do capital produzido, seja tangível ou intangível; do capital humano, incluindo a capacitação e conhecimento; e do capital natural, que inclui recursos renováveis e não renováveis e o ambiente que permite a vida.

Por fim, os macroeconomistas precisam admitir a distribuição ser importante. Tentar fazer modelos de comportamentos econômicos dos consumidores com base em um “agente representativo” único omite diferenças cruciais nas experiências e comportamento das pessoas em diferentes faixas de renda e de riqueza.

O fato de que os ricos se beneficiam de forma desproporcional da globalização e das novas tecnologias, para não falar dos esforços bem-sucedidos dos bancos centrais para valorizar os preços das ações e bônus depois de 2009, possivelmente tem sido um freio para o crescimento. Sobre o que não há dúvida é que o aumento na desigualdade reduziu de forma drástica o apoio aos políticos tradicionais em favor de populistas e nacionalistas, o que por sua vez corroeu o consenso prévio das abordagens econômicas de probidade fiscal sustentável, de política monetária independente, de livre comércio e de fluxo liberal de capital e trabalho.

A reação mundial contra o status quo político e econômico também atingiu grandes empresas. Na esteira imediata da crise, eram as instituições financeiras as que estavam na linha de fogo. Desde então, a raiva popular transformou-se em ceticismo generalizado em relação ao comportamento das empresas, sendo que as gigantes tecnológicas ficaram particularmente sob os holofotes por supostos abusos de poderes monopolistas e de dados dos usuários.

Seria demasiado simplista ver essas tensões como resultado do ressentimento em relação à faixa do 1% das pessoas mais ricas. Há divisões substanciais dentro dos 99% restantes, entre vencedores e perdedores da globalização. Além disso, as divisões entre países têm se intensificado diante dos populistas e nacionalistas que culpam os estrangeiros por problemas domésticos econômicos e sociais.

Isso tem contribuído para um questionamento mais amplo da globalização e do comércio, dos investimentos e das regras tributárias internacionais. Mudanças nos arranjos da governança mundial podem sacudir modelos de negócios, transformar o arcabouço institucional e trazer novos matizes de incertezas à perspectiva econômica.

A macroeconomia ainda precisa compreender as lições mais importantes dos últimos dez anos. E, na ausência de um novo consenso sobre como administrar as incertezas, o mundo encontra-se desconfortavelmente vulnerável a choques econômicos, políticos e sociais. Infelizmente, pode ser preciso outra crise para obrigar os economistas a abandonarem seus hábitos antiquados.”

O que os economistas ainda têm de aprender publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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