William Davies editou o livro intitulado “Ficções científicas econômicas” (Economic Science Fictions. University of London; Goldsmiths Press; 2018). Entre outros autores, conta com a colaboração do notável economista Ha-Joon Chang. Buscarei tempo livre para traduzir seu capítulo e postá-lo neste blog. Por ora, apresento abaixo o Prefácio do livro escrito por Davies em uma tradução livre feita por mim.
“O realismo capitalista coloca o capitalismo como um sistema livre das ilusões sentimentais e das mitologias reconfortantes capazes de produzirem a coesão das sociedades passadas. O capitalismo trabalha do modo como as pessoas realmente são. Ele não busca refazer a humanidade em alguma imagem (idealizada), mas encoraja e libera aqueles ‘instintos’ de competição, autopreservação e empreendimento. Os instintos primários sempre ressurgem, independentemente das tentativas feitas para reprimi-los ou contê-los via educação familiar, escolar ou profissional.
O paradoxo bem conhecido do neoliberalismo, no entanto, era o de exigir um projeto político deliberativo, processado por meio da maquinaria do Estado, para reafirmar essa imagem do humano. Philip Mirowski argumentou o neoliberalismo ter a possibilidade de ser definido por uma atitude dupla (e um tanto duplicada) em relação ao Estado:
- no nível exotérico [doutrina passível de ser ministrado ao grande público e não somente a um grupo seleto de alunos] da polêmica populista, o Estado deve ser desprezado;
- no nível esotérico [ensino destinado a discípulos particularmente qualificados, completa e aprofunda a doutrina] da estratégia real, o Estado deve ser ocupado e instrumentalizado.
O escopo e a ambição do programa neoliberal de restaurar o que nunca poderia ser eliminado foram resumidos pela infame observação de Margaret Thatcher de o método ser econômico, mas o objetivo ser a mudança da alma – isto é o slogan do stalinismo de mercado!
A metafísica libidinal subjacente ao neoliberalismo pode ser chamada de “libertarianismo cósmico” [libertário: se guia por doutrinas fundamentadas na liberdade absoluta ou é preconizador desta + asnice: falto de inteligência ou qualidade, caráter e condição de burro]. Além e abaixo das estruturas econômicas, sociais e políticas capazes de restringir a empresa estaria um potencial fervilhante, cujo neoliberal espera ser lançado.
Diante disso, o objetivo da política, de acordo com a doutrina exotérica do neoliberalismo, é essencialmente negativo: consiste no desmantelamento daquelas estruturas capazes de manterem as energias empreendedoras trancadas. Na verdade, é claro, e como a observação de Thatcher indicou, o neoliberalismo era um projeto construtivo: o sujeito econômico competitivo era o produto de um vasto projeto de engenharia ideológica e libidinal.
Como Jeremy Gilbert, com base na obra de Michel Foucault, observou, o neoliberalismo foi de fato caracterizado por um pânico de supervisão. Sua retórica de liberar o potencial individual ofusca sua supressão e medo de ação coletiva. A coletividade é sempre estúpida e perigosa para seus adeptos. O mercado só pode funcionar efetivamente se for uma massa decorticada [retirada a casca ou descascada] de indivíduos. Somente então poderá dar origem a propriedades emergentes.
Longe de ser um sistema livre de ficções, o capitalismo deve ser visto como o sistema liberador de ficções para governar o social. O campo social capitalista é chocado pelo chamado por J.G. Ballard de ‘ficção de todo tipo’. Ballard estava pensando nos produtos banais, mas potentes, de publicidade, relações públicas e marca, sem os quais o capitalismo tardio não poderia funcionar.
Mas, claramente, aquilo capaz de estruturar a realidade social – a chamada “economia” – é em si um tecido de ficções. Deve-se enfatizar aqui as ficções não serem, necessariamente, falsidades ou enganos – longe disso.
Ficções econômicas e sociais sempre escapam do empirismo, pois nunca são dadas na experiência. São o que as estruturas experimentam.
Mas o fracasso do empirismo em entender essas ficções indica apenas suas próprias limitações. A experiência só é possível com base em uma rede de virtualidades imateriais – regimes simbólicos, proposições ideológicas, entidades econômicas.
Devemos resistir a qualquer tentação ao idealismo aqui: essas ficções não são inventadas na mente de indivíduos já existentes. Pelo contrário, o sujeito individual é algo como um efeito especial gerado por esses sistemas ficcionais transpessoais.
Podemos chamar essas ficções de virtualidades efetivas. Sob o capitalismo, essas virtualidades escapam a qualquer pretensão de controle humano. Falhas causadas por instrumentos financeiros misteriosos, negociação automatizada de alta velocidade…
O que é o próprio Capital, senão uma enorme virtualidade efetiva, um buraco negro inexoravelmente em expansão capaz de crescer sugando energias sociais, físicas e libidinais em si mesmo?
Aparentemente, o capitalismo não foi enfraquecido pelo crash de 2008. Enquanto o populismo de direita foi um efeito terrivelmente bem-sucedido, o anti-capitalismo não provou ser um mobilizador suficiente.
Provocativamente, podemos supor o surgimento do movimento anticapitalista possa ser correlacionado com a ascensão do realismo capitalista. Quando o socialismo realmente existente desapareceu – e a socialdemocracia em breve se juntará à lista dos desaparecidos –, a esquerda radical rapidamente deixou de ser associada a um projeto político positivo. Em vez disso, foi definida apenas por sua oposição ao capital.
Enquanto as líderes de torcida de O Capital cantam sem parar, os anticapitalistas ainda não foram capazes de articular uma alternativa coerente. A produção de novas ficções científicas econômicas torna-se, portanto, um imperativo político urgente.
As ficções científicas econômicas do Capital não podem ser simplesmente opostas. Elas precisam ser combatidas por ficções científicas econômicas possíveis de exercer pressão sobre a atual monopolização das realidades do capital.
O desenvolvimento de ficções científicas econômicas constituiria uma forma de ação indireta sem a qual a luta hegemônica não pode esperar ter sucesso. É fácil se assustar com a aparente escala desse desafio – criar um plano totalmente funcional para uma sociedade pós-capitalista, ou o capitalismo governará para sempre!
Mas não devemos ser forçados ao silêncio por essa falsa oposição. Não é necessária uma visão total única, mas uma multiplicidade de perspectivas alternativas, cada uma potencialmente abrindo uma brecha para outro mundo.
A liminar para produzir ficções implica um espírito aberto e experimental, um certo afrouxamento das pesadas responsabilidades associadas à geração de determinados programas políticos. No entanto, as ficções podem ser motores para o desenvolvimento de políticas futuras.
Elas podem ser máquinas para projetar o futuro. Por exemplo, ficções um novo sistema de habitação, saúde ou transporte podem parecer inevitáveis, mas também implicam imaginar qual seria o tipo de sociedade com poder de abrigar e facilitar esses desenvolvimentos socioeconômicos.
As ficções podem contrariar o realismo capitalista, tornando possíveis alternativas ao capitalismo. Não é apenas isso: ficções também são simulações nas quais podemos ter uma noção de como seria viver em uma sociedade pós-capitalista.
A tarefa é produzir ficções de modo elas poderem ser convertidas em virtualidades efetivas. São sonhos (reais), alternativas (possíveis) e utopia (necessária) não apenas capazes de antecipar o futuro, mas já com poder de começar a trazê-lo à realidade presente.”
Ficções Científicas Econômicas: Um Manifesto publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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