quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Efeito de Baixos Juros Reais

Após o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central deixar a possibilidade aberta para novas reduções de juros, os investidores correram para colocar nos preços o cenário de Selic abaixo de 5%. O resultado das apostas foi claro: de ponta a ponta, os juros futuros tiveram forte queima de prêmio de risco, principalmente, nos vencimentos de curto prazo mais sensíveis a expectativas de política monetária.

Com a queda das taxas de juros futuras, o mercado passou a projetar a Selic em cerca de 4,90% no fim deste ano. São 80% de chances de corte de 0,50 ponto percentual na próxima decisão do Copom, em outubro, contra 20% de queda de 0,25 ponto. O movimento se estendeu ainda para as precificações de 2020, que praticamente zeraram as chances de uma elevação do juro básico no primeiro semestre do ano que vem.

Além da queda da Selic e das taxas de mercado, o que chama a atenção é o nível do juro real, onde é descontada a inflação. Com a Selic em 5,50%, o Brasil está em 59o. no ranking das maiores taxas ao se considerar um universo de 162 países. Já o juro real projetado de 1,37% coloca o Brasil na 70a. posição, com taxa menor em relação a rivais emergentes como África do Sul, Índia, Rússia e México.

Com o juro real próximo de 1% e uma dívida bruta de 78,7% do PIB, além de uma moeda com uma das maiores volatilidades entre os emergentes, quem entra hoje em Brasil é apenas para comprar taticamente, i.é, comprar barato o país. O Brasil deixou de ser uma opção nos mercados de renda fixa em moeda local e está no bolo de outras economias emergentes, como Malásia e Indonésia, além de África do Sul, Índia, Rússia e México. Antes, o Brasil era o mais atraente entre esses países.

Os juros mais baixos não são a única força a empurrar o mercado financeiro para a maior tomada de riscos. O Banco Central já anunciou pretender fazer uma redução significativa dos depósitos compulsórios dos bancos. Alguns analistas calculam injetar R$ 200 bilhões na economia nos próximos dois anos. Esse montante seria quase metade dos compulsórios!

Paralelamente, promove uma agenda de desregulamentação financeira, reduzindo o crédito direcionado e ampliando o livre. Volta o risco de futura inadimplência dos mutuários do financiamento habitacional com a permissão para os bancos realizarem empréstimos com prestações corrigidas pela inflação. O BC tem planos, ainda, de aprofundar a liberalização cambial, caminhando para a conversibilidade da moeda. Os bancos, ao mesmo tempo, vêm sofrendo uma maior pressão competitiva das empresas de tecnologia financeira, as fintechs, com potencial de estimular a maior tomada de risco para manter os níveis de rentabilidade dos negócios.

São riscos no horizonte de médio e longo prazo, mas a realidade mais imediata é um mercado ainda pouco aquecido, sobretudo no crédito bancário. Ele tem potencial de causar estragos mais devastadores nas crises financeiras, devido ao seus níveis de alavancagem.

O indicador mais abrangente do grau de aquecimento do setor é o chamado hiato do crédito. Ele mostra se a expansão dos financiamentos da economia está ocorrendo acima ou abaixo de sua tendência de longo prazo. Hoje, o hiato do crédito é negativo em um pouco mais do que 4% do Produto Interno Bruto (PIB), pelos cálculos do BC. Em uma medida compilada pelo BIS (Banco de Compensações Internacionais, na sigla em inglês), está negativo em 1,5% do PIB.

Esse é um dos dados mais importantes, mas não o único, nas decisões de bancos centrais de exigir os bancos reforçarem seu “excesso de capital” nos ciclos de expansão de crédito para absorver eventuais perdas quando há reversão do ciclo de endividamento. Com hiatos negativos de até 2% do PIB, em geral os reguladores não exigem mais capital dos bancos.

A abertura dos dados do hiato do crédito, porém, mostra realidades diferentes para o mercado bancário (negativo em mais de 6% do PIB, no dado do BC) e do mercado de capitais. Este está positivo em cerca de 2% do PIB, o que significa um maior grau de aquecimento. As captações com papéis privados, como debêntures e títulos securitizados, cresceram 33% nos 12 meses até julho.

São vários os exemplos de desequilíbrios causados pelos juros baixos, como a crise da Nasdaq, na década de 1990, e a do subprime, em 2008. Mas há diferenças entre uma queda sustentada de juros, como a ocorrida no Brasil, e juros artificialmente baixos. Estes teriam levado a períodos de “exuberância irracional” nos EUA.

O Brasil, com a Grande Depressão, seguida de estagdesigualdade, estaria dando mais um passo na convergência para taxas de juros estruturais mais “normais” pelos padrões internacionais. Este leva a alocações de mais renda variável nas carteiras de ativos, em contraposição aos juros em patamares anormalmente altos com privilégio apenas de renda fixa. Isso significa um peso maior em instrumentos de mercados de capitais, contendo mais risco privado em vez de soberano, conexão mais direta com o setor real da economia e prazos mais longos.

No caso dos títulos privados, apesar da alta de 33% em 12 meses, o estoque dessas operações no mercado é relativamente pequeno, de pouco mais de 10% do PIB. Com uma base tão pequena, haveria espaço para crescer.

Juros estruturalmente mais baixos também levam, naturalmente, a uma elevação dos preços dos ativos reais sem necessariamente se configurar uma bolha de ativos. O preço de um ativo deve corresponder ao valor presente, descontado de seu fluxo esperado de renda. Assim, a queda da taxa de juros pela qual se calcula esse valor presente descontado naturalmente eleva o preço. Atualmente, porém, preços de ativos são monitorados de perto por órgãos reguladores, como imóveis. Eles ainda estão crescendo abaixo da taxa de inflação.

O risco de bolhas financeiras causadas por fluxos de capitais estrangeiros são limitados porque o Brasil é dessincronizado da economia mundial. Faz parte da estratégia de diversificação de carteira de investidores, na categoria de emergentes, e não uma opção mais forte de investimento. Os juros baixos dentro do país têm levado a um fluxo de saída de capitais estrangeiros do Brasil.

Ele reconhece que, potencialmente, a movimentação de capital doméstico poderia alimentar a inflação dos preços de alguns ativos – mas, nesse caso, o motor relevante não é apenas os juros baixos, mas também o grau de incerteza mais geral na economia.

Uma estudiosa de economia bancária diz a queda dos juros não levar a uma fragilidade das instituições financeiras. Ao contrário da sabedoria convencional, os bancos lucram mais quando os juros baixam, pois crescem os volumes emprestados.

A pressão competitiva das fintechs, por outro lado, tende a ser contrabalançada por duas forças. Primeiro, no Brasil o processo tem sido liderado pelo BC, ao contrário do que correu na Austrália e Reino Unido, o que significa que por aqui haverá uma calibragem mais cuidadosa entre objetivos de competição e estabilidade financeira.

Segundo: os bancos brasileiros detêm a expertise do crédito e investiram muito para medir os riscos, algo que ainda vai ser aprendido ao longo do tempo pelas fintechs. Há, ainda, uma tendência naturalmente mais conservadora das instituições privadas na tomada de riscos. Ah, é?! 🙂

Uma fonte potencial de estresse dos juros baixos é por meio da taxa de câmbio. As taxas nas mínimas históricas provocam um fluxo de saída de capitais, levando à desvalorização cambial.

Victor Rezende e Lucas Hirata (Valor, 24/09/2019) afirmam: a queda do juro real, alcançando suas mínimas históricas, deve estimular a busca por ativos mais rentáveis e o aumento da exposição ao risco no mercado. De acordo com analistas, o segmento de renda variável deve ser um dos mais favorecidos pelo movimento, enquanto o real brasileiro pode continuar sofrendo com os efeitos colaterais dos juros baixos.

O novo nível de juro real, abaixo do padrão histórico, já está gerando uma revolução na alocação de ativos financeiros no país. Nunca convivemos com juros baixos por muito tempo, então o investidor brasileiro nunca precisou fazer essa realocação de maneira estruturada.

As taxas reduzidas estimulam a procura por rendimento e os investidores devem migrar grande parte da poupança da renda fixa básica para ativos com potencial de retornos maiores, sejam eles fundos multimercados, imobiliários ou renda variável.

O juro real baixo pode ter um impacto grande no mercado financeiro, se vigorar por um bom tempo. A procura por rendimento deve levar os investidores a alocarem seus recursos em ativos mais arriscados ou de mais longo prazo, como ações.

Além disso, o cenário também se traduz em pressão para que os bancos reduzam a taxa de administração dos fundos. Há um incentivo ao crédito, pois os bancos vão procurar um uso mais rentável para o dinheiro. As taxas de empréstimos e crédito em geral devem cair. O funding para atividades de risco como “private equity” e “venture capital” deve se tornar mais abundante. Enfim, hipoteticamente, serão transformações benéficas para a economia real.

Por outro lado, os ativos de renda fixa no Brasil se tornam um pouco menos atrativos, mesmo ainda carregando algum prêmio em um mundo cada vez mais carente de juros. As taxas estão diminuindo em todo o mundo, mas estão recuando aqui de maneira mais rápida.

O real brasileiro acaba sofrendo os efeitos colaterais dos juros baixos. Isso porque as operações de “carry trade” se tornam menos atrativas e, consequentemente, trazem menos fluxo. Essa estratégia ocorre quando o investidor toma crédito barato em economias desenvolvidas e aplica os recursos em mercados com juros altos. Agora, entretanto, a atratividade deste tipo de operação no Brasil perde para outros mercados emergentes, como o México.

Assim, os ativos ligados a economia real, como a bolsa, são os maiores beneficiados. Juro mais baixo sugere melhora de ‘valuation’ e aumento de lucro das empresas.

Para os padrões brasileiros, uma taxa de juros real abaixo de 2% é algo historicamente baixo. A esse respeito, resta ver como o banco central reagirá à renovada fraqueza do real. O dólar chegou a ultrapassar R$ 4,18 novamente. No passado, o câmbio certamente teria sido um argumento para uma postura mais cautelosa por parte do BC, mas agora não é o caso e alguma depreciação adicional do real é bastante tolerável. Chegaremos à dolarização à Argentina?!

Há muita discussão sobre o papel atual dos bancos centrais. Diz respeito a como eles podem trabalhar com os governos para proporcionar um impulso mais poderoso às economias em uma provável recessão.

A Europa não liderá a iniciativa. O continente até poderia injetar algum estímulo. A Alemanha enfrenta a pior retração da indústria em uma década. Mas as barreiras para novas ideias, como o chamado “helicóptero de dinheiro” ou a Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês), segundo a qual a política monetária deve financiar mais gastos do governo, são maiores na Europa do que em qualquer outro lugar.

Grande parte do debate intelectual sobre essas formas mais extremas de financiamento de dívida ocorreu nos EUA, mas as políticas são realmente mais aplicáveis na Europa. Agora, parece um momento oportuno para a expansão fiscal europeia e até para políticas como as de helicóptero/MMT.

Por enquanto, mesmo uma dose convencional de gastos do governo parece ser uma medida extrema na Europa, com suas rígidas regras orçamentárias. Alguns países querem gastar mais, mas não podem, e outros podem, mas não querem.

A política monetária fez tudo o que podia. Quando cortou as taxas de juros para um nível ainda mais negativo e retomou as compras de títulos, o Conselho do BCE ficou dividido sobre algumas dessas medidas monetárias. Mas foi pelo menos unânime em relação a uma coisa: “A política fiscal deve se tornar o principal instrumento”.

O BCE deveria estar aberto a um novo pensamento econômico. Seu ex-presidentes citou a MMT e uma proposta para o helicóptero de dinheiro coescrita por seu orientador de tese de doutorado, o ex-vice-presidente do Federal Reserve Stanley Fischer. Quando se trata de política fiscal, a Europa não possui uma governança unificada. Não há uma autoridade com autorização para gastar e tributar em nome do continente.

Os orçamentos são administrados individualmente pelos países e devem permanecer dentro dos limites estabelecidos pela UE. Ela proíbe a impressão de euros para cobrir déficits. Essa é uma das razões pelas quais a MMT, que se concentra em países que têm suas moedas sob controle, não consegue atrair a mesma atenção conseguida nos EUA e no Japão. Defensores de incentivos fiscais depositam esperanças no know-how político de Christine Lagarde, prestes a assumir a presidência do BCE.

Efeito de Baixos Juros Reais publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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