domingo, 8 de novembro de 2020

Retrocesso dos Estados Unidos com o Plutopopulismo (2017-2020)

A derrota de Trump não acabará com a ameaça de um retrocesso dos Estados Unidos. Seu partido voltará a fazer tudo o que puder para frustrar um governo democrata. A estratégia do “plutopopulismo” persistirá, com a ajuda do Supremo Tribunal.

Martin Wolf é editor e principal analista de economia do Financial Times. Publicou artigo (Valor, 28/10/2020) sobre a queda do prestígio dos EUA no mundo, exceto por parte de subalternos ideológicos à extrema-direita norte-americana.

Esta eleição nos Estados Unidos é a mais importante desde 1932, quando Franklin Delano Roosevelt se tornou presidente em meio às profundezas da Depressão. Com uma boa dose de tentativas e erros, FDR salvou a democracia, tanto em casa quanto no exterior. A reeleição de Donald Trump iria desfazer uma grande parte desse legado, quando não inteiramente. Uma derrota, por sua vez, não iria acabar com o perigo. Para que acabe, a política americana precisa passar por uma transformação.

Esta eleição é tão importante porque os EUA desempenham um papel único no mundo. Há muito, o país é o modelo supremo de uma democracia liberal bem- sucedida, líder das nações que compartilham esses valores e peça essencial na solução de qualquer grande problema mundial.

A reeleição de Trump significaria a rejeição desses três papéis pela população americana. Nenhum outro país ou grupo de países é capaz de assumir seu lugar. O mundo seria transformado – e não seria, de modo algum, para melhor.

Durante transmissão de rádio em 29 de dezembro de 1940, FDR referiu-se a seu país como “o arsenal da democracia”. Foi um comentário preciso em suas implicações, em vista do fornecimento de equipamento militar na Segunda Guerra Mundial. Os recursos americanos foram vitais para assegurar a vitória. Os EUA, porém, ofereceram muito mais do que apenas força. Provaram ser possível que uma grande potência também fosse uma democracia governada pela lei. Foi a república mais forte desde Roma e mostrou um modelo do que tal potência poderia ser nos tempos atuais. Seu exemplo de liberdade individual e espírito democrático moldou as aspirações de bilhões.

Como resultado da vitória na guerra, os EUA também se tornaram líderes das democracias do mundo, incluindo seus ex-adversários, Alemanha e Japão. Um momento crucial, já no governo de Harry Truman, que havia sido vice-presidente de FDR, foi o Plano Marshall, em 1948, idealizado para restaurar uma Europa prostrada física e moralmente. Os EUA puderam fazer isso porque eram muito ricos. No longo prazo, no entanto, apenas seu poder teria sido insuficiente. Seus aliados também tiveram confiança nos EUA, nem todas as vezes ou em todos os aspectos, mas empage2image3297963552

grau suficiente. Eles confiaram nos EUA porque apreciaram seus valores básicos e acreditaram que o respeito permanente do país aos princípios da democracia liberal tornava esse compromisso crível.

Apenas alguns dias depois de seu comprometimento de fazer dos EUA o arsenal da democracia, FDR fez uma promessa ainda mais notável para a posteridade. Em seu Discurso sobre o Estado da União, em 6 de janeiro de 1941, ele comprometeu os EUA a promover quatro liberdades: liberdade de expressão, liberdade de credo, liberdade de viver sem penúria, liberdade de viver sem medo.

Não foram promessas vazias. Nos 50 anos seguintes, o mundo viveu uma grande disseminação da democracia e de redução da pobreza. Nem uma nem outra teriam ocorrido sem as instituições criadas pelos EUA, sem o hábito de cooperação que promoveu e sem a prosperidade que disseminou.

É desnecessário dizer que os EUA também cometeram crimes e estupidezes, mais notavelmente as guerras contra o Vietnã e o Iraque. O grande projeto americano, porém, funcionou. No cômputo geral, também funcionou domesticamente, mais notavelmente com o claro progresso dos direitos civis.

Os EUA de Trump rejeitam tudo isso. Ele é um homem de apetites, não de ideais. Como a jornalista Masha Gessen nos conta em “Surviving Autocracy” (sobrevivendo à autocracia, em inglês), o objetivo de Trump é fazer o que ele tem vontade, sem ser limitado pela lei, pelo Congresso ou por seja o que for. Ele quer ser um autocrata. Se ele vencer de novo, pode atingir esse objetivo em grande medida, como alerta o comentarista David Frum. Trump também dirige um governo corrupto, maldoso e incompetente, mente com mais facilidade do que respira e até faz campanha contra a ideia de que poderia perder em uma eleição livre e justa. Em todos esses aspectos, ele saqueia todas as normas de uma democracia decente, diariamente.

No exterior, Trump admira autocratas, é indiferente às promessas anteriores dos EUA, rejeita o multilateralismo e abandona compromissos (como o Acordo de Paris sobre o clima). Os EUA de Trump são a antítese do país governado por FDR, Harry Truman e seus sucessores.

O desejo por algo tão diferente não surpreende. A satisfação com a democracia está em declínio no mundo, especialmente entre os jovens. Os dados da expectativa de vida e da percepção de corrupção nos Estados Unidos também mostram claros sinais de relativo fracasso.

Portanto, a raiva que cobre a política dos EUA é compreensível, e o método de Trump é exacerbá-la. Para os doadores que financiam o Partido Republicano, isso também é perfeitamente aceitável, em troca de impostos mais baixos e de menos regulamentação. Trump é o produto de do acordo faustiano deles com a base do partido.

Se Trump mantiver a Presidência, seja de forma legítima ou fraudulenta, o mundo tirará suas próprias conclusões quanto ao papel futuro dos EUA. A credibilidade do país como democracia competente e bem-sucedida ficará estilhaçada, sua confiabilidade como líder de uma aliança de democracias estará acabada e sua disposição a participar de esforços para enfrentar desafios mundiais comuns, como as mudanças climáticas ou uma pandemia, será inexistente.

O mundo, de fato, mudou, mas uma liderança competente e construtiva por parte de um EUA democrático é mais necessária do que nunca, tendo em vista o poder de uma China cada vez mais autocrática, o sucesso de autocratas carismáticos em outros países e os grandes desafios mundiais de nossa era. Trump não tem condições de liderar um EUA como esse.

Sua derrota, contudo, não acabará com a ameaça de um retrocesso dos Estados Unidos. Seu partido voltará a fazer tudo o que puder para frustrar um governo democrata. A estratégia do “plutopopulismo” (o casamento da riqueza solipsista com a ira da classe média branca) persistirá, com a ajuda do Supremo Tribunal. Não importa o que acontecer na eleição, o papel dos EUA continuará em dúvida.

Retrocesso dos Estados Unidos com o Plutopopulismo (2017-2020) publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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