sábado, 19 de setembro de 2020

Regime Populista de Direita: Antro de Oportunistas Incompetentes

Anne Applebaum, em seu livro vencedor do Pulitzer Prize, “Crepúsculo da Democracia” (Penguin Random House LLC, 2020), conta outra história vivenciada na atual Polônia.

Para entender os irmãos Kurski é fundamental entender de onde vieram: de Gdańsk, cidade portuária à beira do mar Báltico, onde guindastes de estaleiros assomam como cegonhas gigantescas. Os Kurski atingiram a maioridade no início dos anos 80, quando Gdańsk era o centro da atividade anticomunista na Polônia e um fim de mundo desgraçado, um lugar onde intriga e tédio se faziam medir em doses iguais.

Naquele momento e naquele local em particular, os irmãos Kurski se sobressaíam. O senador Bogdan Borusewicz, um dos mais importantes ativistas sindicais clandestinos da época. Ele disse a Anne Applebaum o colégio onde eles estudavam era conhecido por estar zrewoltowane – em revolta contra o regime comunista.

Jarosław representava sua classe no parlamento estudantil e fazia parte de um grupo de estudo da história e literatura conservadoras. Jacek, um pouquinho mais novo, era menos interessado no debate intelectual contra o comunismo e se assumia como ativista e radical.

Logo depois da lei marcial, os dois irmãos iam a passeatas, bradavam palavras de ordem, agitavam bandeiras. Ambos atuaram em um jornal estudantil ilegal e depois no Solidarność, a publicação oposicionista, também ilegal, do Solidariedade, o sindicato de Gdańsk.

Em outubro de 1989, Jarosław foi assessor de imprensa do líder do Solidariedade, Lech Wałęsa, que após a eleição do primeiro governo não comunista da Polônia se sentia desanimado e ignorado: em meio ao caos gerado pelas reformas econômicas revolucionárias e pela rápida mudança política, não lhe cabia nenhuma função evidente.

Em fins de 1990, Wałęsa acabou por se candidatar à Presidência e venceu – arrebatando gente com ressentimento das concessões a acompanharem os trâmites da desintegração do comunismo na Polônia. Houve a deliberação de ex-comunistas não serem encarcerados e nem punidos, por exemplo.

A experiência fez com Jarosław se dare conta de não gostar de política, em especial da política do ressentimento: “Eu entendi o que era de fato fazer política: promover intrigas terríveis, vasculhar sujeira, fazer campanhas difamatórias.”

Também foi assim seu primeiro encontro com Kaczyński, “um mestre daquilo”: – “Em seu pensamento político não tem nada desse negócio de acidente; se alguma coisa aconteceu, foi armação alheia. A palavra predileta dele é ‘conspiração’.”

Ao contrário de Jarosław, Jacek não falou com a Anne Applebaum. Um conhecido em comum lhe passou seu celular. Enviou uma mensagem e em seguida ligou umas duas vezes, deixando recados. Ligou de novo e alguém gargalhou quando anunciou seu nome. Aí repetiu o nome dela em voz alta e disse: “É claro, é claro…” – o diretor da televisão estatal retornaria minha ligação, pensei. Não foi o que ocorreu.

Jarosław acabou se demitindo e ingressando na Gazeta Wyborcza, jornal fundado à época das primeiras eleições parcialmente livres do país, em 1989. Na nova Polônia, tal como ele relatou, podia ajudar a construir alguma coisa, a montar uma imprensa livre, e isso lhe bastava.

Jacek se voltou para a direção oposta. “Você é um idiota”, disse ao irmão, ao saber ele desistir de trabalhar para Wałęsa. Embora ainda estivesse cursando o ensino médio, Jacek já estava interessado em uma carreira política própria e até aventou assumir o emprego do irmão, sob a justificativa de ninguém reparar.

Sempre fora – conforme disse o irmão – “fascinado” pelos irmãos Kaczyński, por suas tramoias, esquemas, conspirações. Embora estivesse na direita, não se sentia particularmente interessado pelas particularidades do conservadorismo polaco, pelos livros ou debates capazes de cativarem o irmão.

De acordo com uma amiga dos dois, Jacek não tem nenhuma filosofia política de verdade. “Se ele é conservador? Acho que não, pelo menos não na definição estrita de conservadorismo. É alguém que quer estar no topo.” E desde o final dos anos 80 foi ali onde almejou estar.

A história completa do feito por Jacek em seguida não caberia em um único artigo. Ele acabou por se voltar contra Wałęsa, talvez porque Wałęsa não lhe tenha dado o posto que julgava merecer. Casou-se e divorciou-se.

Processou o jornal do irmão várias vezes e o jornal o processou de volta. Foi coautor de um livro inflamado e realizou um filme conspiratório sobre as forças secretas alinhadas contra a direita polonesa. Integrou, em diversas ocasiões, distintos partidos ou facções, por vezes bem periféricos e por vezes mais centristas.

Tornou-se membro do Parlamento Europeu. Especializou-se na prática de campanha difamatória. É sabido ter contribuído para torpedear a campanha presidencial de Donald Tusk, mas este acabou por se tornar primeiro-ministro.

Em parte, espalhou o boato de um de seus avôs se alistara voluntariamente na Wehrmacht, o Exército nazista. Quando um pequeno grupo de jornalistas lhe perguntou sobre essa invenção, Jacek declarou aquilo obviamente não ser verídico, só “os camponeses ignorantes iam acreditar”. Borusewicz o caracteriza como um sujeito “sem escrúpulos”.

Jacek não conquistou a aclamação popular que julgava caber a um ativista adolescente do Solidariedade. E isso foi uma baita decepção.

Jarosław afirma o seguinte a respeito do irmão: “Durante a vida inteira ele acreditou que lhe cabia uma grande carreira, que ia ser primeiro-ministro, que estava predestinado a realizar algo grandioso. Contudo, quis o destino que fracassasse a cada vez… Chegou à conclusão de que era tudo uma grande injustiça.” Jarosław, por sua vez, teve uma trajetória de sucesso e se tornou uma figura do establishment.

Em 2015, Kaczyński arrancou Jacek da relativa obscuridade da política periférica e o nomeou diretor da televisão estatal. Desde sua chegada à Telewizja Polska, o Kurski mais novo transformou a emissora, demitindo jornalistas renomados e reorientando radicalmente suas diretrizes.

Embora a emissora seja financiada pelos contribuintes, os telejornais já nem procuram aparentar objetividade ou neutralidade. Em abril deste ano, por exemplo, a emissora fez uma publicidade de si mesma.

Também exibiu o trecho de uma entrevista coletiva em que o líder oposicionista Grzegorz Schetyna é perguntado sobre o que seu partido realizou durante os oito anos quando esteve no governo, de 2007 a 2015. Schetyna fez uma pausa e franziu o cenho; o vídeo dá ênfase à pausa dele e então termina – como se ele não tivesse nada a dizer.

Na verdade, Schetyna falou por vários minutos e relacionou uma série de realizações – massiva construção de estradas, investimentos rurais, avanços na política externa. Só aquele trecho do vídeo manipulado foi considerado um sucesso de tais proporções a ponto de ficar no topo do Twitter da Telewizja Polska por vários dias.

Sob o Lei e Justiça, a televisão estatal não apenas apresenta propaganda do regime como se compraz com fazê-lo. Não apenas altera e distorce informações como se regozija com o embuste.

Desprestigiado no decorrer de tantos anos, Jacek enfim se desforra. Está bem ali onde acha merece estar: no centro das atenções, o radical lança metafóricos coquetéis molotov na multidão. O regime antiliberal de partido único lhe convém à perfeição. E, se o comunismo não está mais disponível como um autêntico inimigo para que ele e seus colegas o combatam, é preciso encontrar novos inimigos.

Regime Populista de Direita: Antro de Oportunistas Incompetentes publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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