Anne Applebaum, em seu livro vencedor do Pulitzer Prize, “Crepúsculo da Democracia” (Penguin Random House LLC, 2020), conta outra história vivenciada na atual Polônia.
Para entender os irmãos Kurski é fundamental entender de onde vieram: de Gdańsk, cidade portuária à beira do mar Báltico, onde guindastes de estaleiros assomam como cegonhas gigantescas. Os Kurski atingiram a maioridade no início dos anos 80, quando Gdańsk era o centro da atividade anticomunista na Polônia e um fim de mundo desgraçado, um lugar onde intriga e tédio se faziam medir em doses iguais.
Naquele momento e naquele local em particular, os irmãos Kurski se sobressaíam. O senador Bogdan Borusewicz, um dos mais importantes ativistas sindicais clandestinos da época. Ele disse a Anne Applebaum o colégio onde eles estudavam era conhecido por estar zrewoltowane – em revolta contra o regime comunista.
Jarosław representava sua classe no parlamento estudantil e fazia parte de um grupo de estudo da história e literatura conservadoras. Jacek, um pouquinho mais novo, era menos interessado no debate intelectual contra o comunismo e se assumia como ativista e radical.
Logo depois da lei marcial, os dois irmãos iam a passeatas, bradavam palavras de ordem, agitavam bandeiras. Ambos atuaram em um jornal estudantil ilegal e depois no Solidarność, a publicação oposicionista, também ilegal, do Solidariedade, o sindicato de Gdańsk.
Em outubro de 1989, Jarosław foi assessor de imprensa do líder do Solidariedade, Lech Wałęsa, que após a eleição do primeiro governo não comunista da Polônia se sentia desanimado e ignorado: em meio ao caos gerado pelas reformas econômicas revolucionárias e pela rápida mudança política, não lhe cabia nenhuma função evidente.
Em fins de 1990, Wałęsa acabou por se candidatar à Presidência e venceu – arrebatando gente com ressentimento das concessões a acompanharem os trâmites da desintegração do comunismo na Polônia. Houve a deliberação de ex-comunistas não serem encarcerados e nem punidos, por exemplo.
A experiência fez com Jarosław se dare conta de não gostar de política, em especial da política do ressentimento: “Eu entendi o que era de fato fazer política: promover intrigas terríveis, vasculhar sujeira, fazer campanhas difamatórias.”
Também foi assim seu primeiro encontro com Kaczyński, “um mestre daquilo”: – “Em seu pensamento político não tem nada desse negócio de acidente; se alguma coisa aconteceu, foi armação alheia. A palavra predileta dele é ‘conspiração’.”
Ao contrário de Jarosław, Jacek não falou com a Anne Applebaum. Um conhecido em comum lhe passou seu celular. Enviou uma mensagem e em seguida ligou umas duas vezes, deixando recados. Ligou de novo e alguém gargalhou quando anunciou seu nome. Aí repetiu o nome dela em voz alta e disse: “É claro, é claro…” – o diretor da televisão estatal retornaria minha ligação, pensei. Não foi o que ocorreu.
Jarosław acabou se demitindo e ingressando na Gazeta Wyborcza, jornal fundado à época das primeiras eleições parcialmente livres do país, em 1989. Na nova Polônia, tal como ele relatou, podia ajudar a construir alguma coisa, a montar uma imprensa livre, e isso lhe bastava.
Jacek se voltou para a direção oposta. “Você é um idiota”, disse ao irmão, ao saber ele desistir de trabalhar para Wałęsa. Embora ainda estivesse cursando o ensino médio, Jacek já estava interessado em uma carreira política própria e até aventou assumir o emprego do irmão, sob a justificativa de ninguém reparar.
Sempre fora – conforme disse o irmão – “fascinado” pelos irmãos Kaczyński, por suas tramoias, esquemas, conspirações. Embora estivesse na direita, não se sentia particularmente interessado pelas particularidades do conservadorismo polaco, pelos livros ou debates capazes de cativarem o irmão.
De acordo com uma amiga dos dois, Jacek não tem nenhuma filosofia política de verdade. “Se ele é conservador? Acho que não, pelo menos não na definição estrita de conservadorismo. É alguém que quer estar no topo.” E desde o final dos anos 80 foi ali onde almejou estar.
A história completa do feito por Jacek em seguida não caberia em um único artigo. Ele acabou por se voltar contra Wałęsa, talvez porque Wałęsa não lhe tenha dado o posto que julgava merecer. Casou-se e divorciou-se.
Processou o jornal do irmão várias vezes e o jornal o processou de volta. Foi coautor de um livro inflamado e realizou um filme conspiratório sobre as forças secretas alinhadas contra a direita polonesa. Integrou, em diversas ocasiões, distintos partidos ou facções, por vezes bem periféricos e por vezes mais centristas.
Tornou-se membro do Parlamento Europeu. Especializou-se na prática de campanha difamatória. É sabido ter contribuído para torpedear a campanha presidencial de Donald Tusk, mas este acabou por se tornar primeiro-ministro.
Em parte, espalhou o boato de um de seus avôs se alistara voluntariamente na Wehrmacht, o Exército nazista. Quando um pequeno grupo de jornalistas lhe perguntou sobre essa invenção, Jacek declarou aquilo obviamente não ser verídico, só “os camponeses ignorantes iam acreditar”. Borusewicz o caracteriza como um sujeito “sem escrúpulos”.
Jacek não conquistou a aclamação popular que julgava caber a um ativista adolescente do Solidariedade. E isso foi uma baita decepção.
Jarosław afirma o seguinte a respeito do irmão: “Durante a vida inteira ele acreditou que lhe cabia uma grande carreira, que ia ser primeiro-ministro, que estava predestinado a realizar algo grandioso. Contudo, quis o destino que fracassasse a cada vez… Chegou à conclusão de que era tudo uma grande injustiça.” Jarosław, por sua vez, teve uma trajetória de sucesso e se tornou uma figura do establishment.
Em 2015, Kaczyński arrancou Jacek da relativa obscuridade da política periférica e o nomeou diretor da televisão estatal. Desde sua chegada à Telewizja Polska, o Kurski mais novo transformou a emissora, demitindo jornalistas renomados e reorientando radicalmente suas diretrizes.
Embora a emissora seja financiada pelos contribuintes, os telejornais já nem procuram aparentar objetividade ou neutralidade. Em abril deste ano, por exemplo, a emissora fez uma publicidade de si mesma.
Também exibiu o trecho de uma entrevista coletiva em que o líder oposicionista Grzegorz Schetyna é perguntado sobre o que seu partido realizou durante os oito anos quando esteve no governo, de 2007 a 2015. Schetyna fez uma pausa e franziu o cenho; o vídeo dá ênfase à pausa dele e então termina – como se ele não tivesse nada a dizer.
Na verdade, Schetyna falou por vários minutos e relacionou uma série de realizações – massiva construção de estradas, investimentos rurais, avanços na política externa. Só aquele trecho do vídeo manipulado foi considerado um sucesso de tais proporções a ponto de ficar no topo do Twitter da Telewizja Polska por vários dias.
Sob o Lei e Justiça, a televisão estatal não apenas apresenta propaganda do regime como se compraz com fazê-lo. Não apenas altera e distorce informações como se regozija com o embuste.
Desprestigiado no decorrer de tantos anos, Jacek enfim se desforra. Está bem ali onde acha merece estar: no centro das atenções, o radical lança metafóricos coquetéis molotov na multidão. O regime antiliberal de partido único lhe convém à perfeição. E, se o comunismo não está mais disponível como um autêntico inimigo para que ele e seus colegas o combatam, é preciso encontrar novos inimigos.
Regime Populista de Direita: Antro de Oportunistas Incompetentes publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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