sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Quebra das Cadeias Produtivas Globais: “Desglobalização” do Comércio Externo?

Assis Moreira (Valor, 18/08/2020) informa: restrições impostas no comércio internacional na esteira da covid-19 devem resultar em um aumento substancial dos custos das transações de exportações e importações, aponta a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Estudo da entidade conclui: custos de transporte e viagens representam 15% das transações com produtos agrícolas, 31% com produtos manufaturados e 19% com produtos ligados a serviços.

Desde o início da pandemia, transportes marítimo e terrestre continuaram funcionais, apesar de atrasos. Já o transporte de carga aérea encolheu 24,6% em março.

A OMC constata: governos fizeram o possível para manter o comércio fluindo, mas restrições de viagens podem afetar severamente o comércio regional.

Estimativas sugerem as barreiras comerciais e diferenças regulatórias representarem ao menos 10% dos custos das transações no comércio internacional.

Incertezas têm outro “efeito maligno” sobre custos, na forma de contração de financiamento (trade finance). Alguns países em desenvolvimento veem suas fontes de crédito secar por causa da alta aversão a risco entre os bancos.

A participação da China nas exportações mundiais foi prejudicada por sua disputa comercial com os EUA. Junto com a pandemia, demandas de governança corporativa e a ascensão da inteligência artificial, a disputa está levando multinacionais a reduzirem sua dependência da potência asiática.

No ano passado, as exportações chinesas de 1.200 produtos responderam por 22% das exportações mundiais, 3 pontos percentuais abaixo do ano anterior, segundo estudo do escritório de advocacia Baker McKenzie e da consultoria econômica Silk Road. No item bens de consumo, a participação do país no mercado mundial caiu 4 pontos, para 42%.

Isso ocorre no momento em que Washington visa a China com novas medidas abrangentes destinadas a livrar os EUA da dependência das cadeias de fornecimento baseadas na China e a conter ambições de Pequim de se tornar uma potência tecnológica mundial.

Os EUA ampliaram as restrições ao fornecimento de semicondutores para a Huawei, visando cortar praticamente toda a remessa de chips ao grupo chinês.

Anne Petterd, chefe de práticas comerciais internacionais do Baker McKenzie para a Ásia-Pacífico, disse que, na esteira dos transtornos causados pela pandemia, as empresas procuraram diversificar geograficamente suas cadeias de fornecimento, construir mais camadas de segurança e supervisioná-las de forma mais estrita. “Antes era o setor de bens de consumo que costumava ter de fazer essas mudanças rápidas. Agora vemos uma gama sem precedentes de setores que começaram a fazer isso”.

Empresas de hardware, um dos setores em que a produção é mais concentrada na China, transferiram a fabricação de alguns produtos para outros países nos últimos três anos, à medida que seus clientes nos EUA começaram a levantar temores sobre segurança e alguns componentes passaram a ser alvo de tarifas dos EUA.

A Quanta Computer, por exemplo, maior fabricante mundial de notebooks e grande fornecedora de hardware de computação na nuvem para empresas como Google, Amazon e Facebook, transferiu a produção de servidores da China para Taiwan e para os EUA.

Como reflexo disso, dados reunidos pela Silk Road mostram que no ano passado a participação da China nas exportações mundiais de computadores e tablets caiu 4 pontos percentuais, para 45%. No setor de celulares, onde a China é ainda mais dominante, sua participação caiu 3 pontos, para 54%.

Liu Young-way, presidente da Foxconn, maior fornecedora da Apple e maior fabricante terceirizada de eletrônicos do mundo, com uma força de trabalho de até 1 milhão de funcionários na China, disse na semana passada que acredita que a cadeia de fornecimento global de tecnologia se dividirá em duas: “Teremos uma para a China e seus associados e outro para os EUA e seus amigos.”

Embora a Foxconn tenha reforçado sua capacidade de produção no Vietnã e na Índia, ela informou que deve elevar só marginalmente a proporção de produtos fabricados fora da China nas suas vendas globais, dos atuais 20% para 30%.

Mas os autores do estudo dizem a pandemia e os transtornos causados nas cadeias de fornecimento mundiais centradas na China devem acelera mudanças.

Até agora vimos uma mudança na montagem final do produto, com muitos componentes ainda vindos da China. A cadeia de fornecimento, da forma como foi construída na China nos últimos 20 anos, será refeita, mas isso demanda tempo.

Gideon Rachman (Financial Times 18/08/2020) avalia: quando uma situação familiar e confortável muda dramaticamente, o instinto humano é acreditar que as coisas logo voltarão ao normal. A ideia de que a vida pode ter mudado permanentemente é inquietante demais para ser encarada. Estamos vendo essa mentalidade com a covid-19. Isso ocorre também na resposta das empresas à espiral de deterioração nas relações entre os EUA e a China.

Após 40 anos de crescente integração econômica, é difícil imaginar um corte real nos vínculos. Muitos executivos creem que os políticos nos dois países vão resolver suas diferenças quando perceberem as reais implicações do “desconexão” das duas maiores economias globais. A esperança é que um acordo comercial estabilize as coisas, ainda que após as eleições presidenciais americanas.

Mas isso é ser complacente demais. A desconexão ainda tem um longo caminho a percorrer. Mas já está se espalhando para além dos setores de tecnologia e finanças. No devido momento, afetará todos os demais. E todas as multinacionais serão afetadas, quando tiverem de enfrentar rupturas nas cadeias de fornecimento e mudanças nas leis americanas e chinesas.

Esse processo está ocorrendo devido a uma mudança fundamental no modo como EUA e China veem suas relações. Nas últimas quatro décadas, a lógica empresarial prevaleceu sobre a rivalidade estratégica. Mas estamos num mundo novo onde a rivalidade política supera os incentivos econômicos – mesmo para um presidente americano que se orgulha de ser um negociador.

Quando Donald Trump foi informado de que seu decreto que obriga as empresas americanas a cortarem seus laços com o WeChat, um aplicativo de mensagens chinês – iria prejudicar as vendas americanas na China, sua resposta foi “não importa”.

Isso não é só uma insensatez trumpiana. Há um consenso bipartidário em Washington de que é preciso endurecer com a China, mesmo que isso prejudique os lucros. Uma lei que obriga empresas chinesas a deixarem as bolsas americanas, se não abrirem sua contabilidade às autoridades reguladoras dos EUA, foi aprovada por unanimidade no Senado em maio.

Também em Pequim, o imperativo político de afirmação da soberania está agora acima do incentivo comercial de evitar confrontos com os EUA – o maior mercado da China. Desde que o presidente Xi Jinping assumiu, em 2012, a China construiu bases militares no Mar do Sul da China, pôs fim à autonomia da Hong Kong e aprisionou milhões de muçulmanos uigures em Xinjiang. As ameaças militares a Taiwan estão mais explícitas.

Os dois lados culpam um ao outro pelo início das hostilidades. Os chineses apontam para a adoção unilateral de tarifas por Trump. Os EUA respondem que Google e Facebook foram bloqueados na China mais de uma década antes de os EUA adotarem uma ação séria contra empresas de tecnologia chinesas como Huawei e ByteDance.

Independentemente de quem atirou primeiro, os dois lados estão agora presos numa lógica retaliatória. Se os EUA adotarem mais medidas contra WeChat e Huawei, Pequim provavelmente reagirá barrando ainda mais as empresas de tecnologia americanas na China. Com o aumento da tensão política, marcas de consumo americanas ficarão mais vulneráveis a boicotes do público nacionalista chinês. Isso é ruim para marcas americanas bem conhecidas como Starbucks e NBA (liga de basquete).

A desconexão é também motivado por novas avaliações de risco. A vulnerabilidade de empresas chinesas, como ZTE e Huawei, aos embargos dos EUA intensificou o esforço da China de se tornar autossuficiente em tecnologias importantes. Empresas americanas também estão se protegendo. A Apple, que fez o seu negócio em torno da fabricação na China, também está fabricando seu modelo mais recente do iPhone na Índia.

O campo emergente do conflito é o setor financeiro. Na última década, os EUA impuseram sanções financeiras contra países como Irã e Venezuela, com efeitos devastadores. Agora, começam a usar esse instrumento contra a China.

Autoridades de Hong Kong e Xinjiang foram alvos de sanções, que as alijam do sistema financeiro dos EUA. Dada a centralidade do dólar no comércio global, bancos internacionais temem violar essas sanções. O risco é administrável, enquanto estiver confinado a uns poucos indivíduos. Mas o que acontecerá se e quando as sanções financeiras forem aplicadas a grandes companhias chinesas.

Bancos dos EUA, que ganham muito dinheiro com a abertura de capital de empresas chinesas na Bolsa de Nova York, acham que mesmo que novas emissões de ações chinesas sejam proibidas nos EUA, eles poderão fazer a abertura do capital dessas empresas em Hong Kong. Mas isso dependeria da indulgência imprevisível dos governos americano e chinês.

Outras países e suas empresas não conseguirão ficar de fora dessa disputa. A decisão britânica de permitir a Huawei na sua rede 5G, desafiando a oposição dos EUA, mostrou-se insustentável. O HSBC, que tem sede no Reino Unido e obtém 80% de seus lucros na Ásia, foi arrastado para a disputa ao fornecer evidências para o processo nos EUA contra Meng Wanzhou, diretora financeira da Huawei.

Grandes empresas vão tentar ficar neutras na emergente Guerra Fria entre EUA e China. Mas isso poderá ser impossível. Os últimos 40 anos foram edificados em torno da globalização e da integração entre EUA e China. Mas esse mundo está sumindo rapidamente.

Quebra das Cadeias Produtivas Globais: “Desglobalização” do Comércio Externo? publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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