terça-feira, 22 de setembro de 2020

Autoimagem de Idiota: Sem Percepção do Mal Feito a Si e aos Outros

Anne Applebaum, em seu livro vencedor do Pulitzer Prize, “Crepúsculo da Democracia” (Penguin Random House LLC, 2020), conta: não faz muito tempo, jantando em um restaurante de frutos do mar junto a uma praça horrorosa de Atenas, Applebaum descreveu sua festa de Ano-Novo para um cientista político grego. Ele riu dela. Ou melhor, riu junto com ela: não pretendia ser grosseiro.

O que Anne chamava de polarização não era nenhuma novidade. “O momento liberal pós-1989 foi uma exceção”, disse Stathis Kalyvas. Polarização é algo normal. Applebaum acrescentaria: ceticismo quanto à democracia liberal também é normal. E o apelo do autoritarismo é eterno.

Dentre outras coisas, Kalyvas é autor de vários livros importantes sobre guerras civis, inclusive a Guerra Civil da Grécia dos anos 40, um dos muitos momentos da história europeia quando segmentos políticos radicalmente divergentes pegaram em armas e passaram a se matar uns aos outros. Na Grécia, “guerra civil” e “ordem civil” são, no mais das vezes, termos relativos.

Na ocasião daquele jantar, alguns intelectuais gregos passavam por um momento centrista. Uma porção de gente de Atenas lhe contou, de repente, era de bom-tom ser “liberal”, com o que se queria dizer nem comunista nem autoritário, nem de extrema esquerda, como o Syriza, o partido da situação, nem de extrema direita, como seu parceiro de coalizão nacionalista, o partido Gregos Independentes. Jovens avançados se qualificavam como “neoliberais”, assimilando um termo considerado pouquíssimos anos antes uma heresia.

Após as eleições legislativas gregas, em janeiro de 2015, o Syriza, tendo obtido 149 cadeiras das 300 do Parlamento, duas a menos necessárias para obter a maioria, anunciou a coligação com o partido Gregos Independentes. A coligação perdurava.

Nem os centristas mais otimistas estavam convencidos de aquela mudança perdurar. “Sobrevivemos aos populistas de esquerda”, disseram-me várias pessoas, melancolicamente, “e agora estamos nos preparando para os populistas de direita”.

Fazia tempo se armando uma discussão feia em torno do nome e do estatuto da Macedônia, a ex-república iugoslava vizinha da Grécia. Logo depois, o governo grego expulsou alguns diplomatas russos por buscarem fomentar histeria anti-Macedônia no norte do país. Diante da estabilidade alcançada por uma Nação, sempre tem alguém, na pátria ou no estrangeiro, com motivos para subvertê-la.

Quem avisa amigo é. Os norte-americanos, com sua pujante trajetória fundadora, sua singular reverência pela Constituição, seu relativo isolamento geográfico e seus dois séculos de êxito econômico, há tempos se persuadiram de a democracia liberal, uma vez conquistada, não pode ser alterada.

A história americana é contada como um caso de progresso, sempre e cada vez mais adiante. A Guerra Civil representou um nó no meio desse vetor, um obstáculo a ser superado.

Na Grécia a história não se afigura de modo linear, mas circular. Tem-se democracia liberal seguida de oligarquia. Então vem democracia liberal de novo. Em seguida, tem-se subversão estrangeira, tentativa de golpe comunista, guerra civil e ditadura. E assim por diante, desde os tempos da república ateniense.

A história também se afigura de modo circular em outros cantos da Europa. A divisão que tem despedaçado a Polônia guarda uma semelhança impressionante com a divisão que cindiu a França na esteira do caso Dreyfus.

O linguajar empregado pela direita radical europeia – o chamado à “revolução” contra as “elites”, as fantasias de violência “purificante” e de um conflito cultural apocalíptico – é sinistramente semelhante ao linguajar outrora empregado pela esquerda radical europeia. A presença de intelectuais descontentes – gente para quem as regras não são justas e as pessoas erradas são influentes – nem é exclusivamente europeia.

O escritor venezuelano Moisés Naím visitou Varsóvia poucos meses depois de o Lei e Justiça chegou ao poder. Pediu à Applebaum descrever os novos dirigentes polacos: Pessoalmente, como eram? Enumerei alguns adjetivos: “raivosos”, “vingativos”, “rancorosos”. “Parecem”, ele disse, “ser iguaizinhos aos chavistas.”

Na verdade, a discussão sobre quem deve governar nunca termina, sobretudo em uma era quando se rejeitou a aristocracia e deixou-se de supor a liderança ser herdada do berço ou a classe dominante ser endossada por Deus. Alguns de nós, na Europa e na América do Norte, temos optado pela ideia de variadas formas de competição democrática e econômica sejam a alternativa mais correta ao poder legado ou imposto.

Contudo, não deveríamos nos assombrar – eu não deveria me assombrar – quando os princípios da meritocracia e da competitividade são contestados. Afinal de contas, regimes democráticos e livres mercados podem gerar resultados insatisfatórios, especialmente quando mal regulados, ou se ninguém confia nos reguladores, ou ainda quando agentes ingressam na disputa a partir de pontos de partida muito distintos. Mais cedo ou mais tarde os perdedores contestarão o mérito da competição em si.

Mais precisamente, mesmo quando incentivam o talento e geram mobilidade ascendente, os princípios da competitividade não necessariamente resolvem questões mais profundas sobre identidade nacional ou atendem o desejo humano de integração a uma comunidade moral.

O regime autoritário ou mesmo o semi-autoritário – o regime de partido único, antiliberal – propiciam essa esperança: de a Nação ser conduzida pelas melhores pessoas, quem tem mérito e merece mandar, os quadros do partido, quem acredita na Mentira de Médio Porte. Para tanto, pode ser preciso subjugar a democracia, corromper a atividade empresarial ou arrasar o sistema judiciário. Mas nada disso é impossível para quem julga estar entre os merecedores de mandar.

Autoimagem de Idiota: Sem Percepção do Mal Feito a Si e aos Outros publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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