Anne Applebaum, em seu livro vencedor do Pulitzer Prize, “Crepúsculo da Democracia” (Penguin Random House LLC, 2020), conta: Mária Schmidt não estava na sua festa do fim-de-ano em 1999, mas ela a conhece há bastante tempo. Ela a convidou para a inauguração do Terror Háza – Museu Casa do Terror – em Budapeste em 2002, e desde então esteve mais ou menos em contato com ela. O museu que Schmidt dirige, um dos mais inovadores da porção oriental da Europa, explora a história do totalitarismo na Hungria.
Desde o dia de sua inauguração também tem recebido duras críticas. Muitos condenaram a primeira sala – em uma das paredes há um painel de televisores exibindo propaganda nazista; na parede oposta, outro, mostrando propaganda comunista.
Em 2002, ainda era um choque colocar os dois regimes lado a lado, embora agora talvez seja menos. Outros ressaltaram os crimes do fascismo não receberam o devido peso e espaço, se bem que, como os comunistas administraram a Hungria por muito mais tempo, o material sobre eles é mais farto.
Anne Applebaum julgou positivo mostrar húngaros comuns colaborando com os dois regimes – na sua concepção, isso podia ajudar o país a reconhecer sua responsabilidade pelas próprias condições políticas e evitar a tacanha armadilha nacionalista de sempre jogar a culpa em cima de gente de fora.
No entanto, é justamente nessa tacanha armadilha nacionalista onde a Hungria vem caindo. O acerto de contas tardio com seu passado comunista – ao erigir museus, ao realizar cultos em memória dos mortos, ao dar nome a malfeitores – não ajudou, ao contrário das suas expectativas, a sedimentar respeito pelo Estado de Direito, pelos limites da ação do Estado, pelo pluralismo.
Ao contrário, passados dezesseis anos da inauguração do Terror Háza, o partido da situação não respeita limites de espécie alguma. Tem ido bem mais além do que o Lei e Justiça ao politizar os meios de comunicação estatais e ao desmantelar a mídia privada, logrando esse último intento mediante coações e obstrução de acesso à publicidade. Vem constituindo uma nova elite empresarial leal ao primeiro-ministro Viktor Orbán.
Um empresário húngaro, preferindo não ser identificado, contou logo depois de Orbán assumir o governo pela primeira vez, cupinchas do regime exigiram ele lhes vendesse sua empresa a um preço baixo. Como ele se recusou, providenciaram “inspeções fiscais” e outras formas de perseguição, bem como uma campanha de intimidação. Isso o obrigou a contratar guarda-costas. Acabou vendendo seu patrimônio e deixando o país.
Assim como o governo polaco, o Estado húngaro fomenta uma Mentira de Médio Porte: produz ampla propaganda para jogar a culpa dos problemas sobre migrantes muçulmanos inexistentes, sobre a União Europeia, sobre George Soros.
Schmidt – historiadora, acadêmica e curadora de museus – está entre os principais articuladores daquela mentira. Em seu blog, ela publica com regularidade longas e furiosas invectivas contra Soros, contra a Universidade Centro-Europeia, em Budapeste, fundada com recursos dele, e contra “intelectuais de esquerda” – para ela, sobretudo democratas liberais, em um leque da centro-esquerda à centro-direita.
Ironias e paradoxos perpassam sua vida. Schmidt é uma beneficiária preferencial da transição supostamente conspurcada da Hungria: seu falecido marido fez fortuna no mercado imobiliário pós-comunista, graças à qual ela mora numa casa deslumbrante nas colinas de Buda. Ainda que tenha conduzido uma campanha midiática voltada a desqualificar a Universidade Centro-Europeia, foi por ela que seu filho se graduou.
Embora saiba muito bem o que sucedeu no país nos anos 40, ao assumir o comando da Figyelő, uma reputada revista húngara, seguiu passo a passo o roteiro do Partido Comunista: substituiu os jornalistas independentes por redatores confiavelmente pró-governo.
A revista ainda é “de propriedade privada”, mas salta aos olhos quem a sustenta. Certa edição destacava um ataque a ONGs húngaras – a capa as equiparava ao Estado Islâmico – trazia uma dúzia de páginas de anúncios pagos pelo governo – do Banco Nacional Húngaro, do Ministério das Finanças, da campanha estatal anti-Soros. É uma reinvenção da imprensa pró-governo do regime unipartidário, com o mesmo tom debochado e cínico empregado pelas publicações comunistas de outrora.
Schmidt concordou em falar com Anne Applebaum – depois de lhe tachar de “arrogante e ignorante” – sob a condição de ela escutar suas objeções a um artigo publicado no Washington Post.
Pegou um avião para Budapeste. Previsivelmente, sua expectativa – uma conversa interessante – se mostrou inviável. Embora seu inglês seja excelente, ela preferiu recorrer a um tradutor.
Chamou um rapaz um tanto assustado: a julgar pela transcrição deixou de fora consideráveis trechos ditos por ela. Mesmo ela lhe conhecendo fazia quase duas décadas, jogou um gravador em cima da mesa, o que interpretei como sinal de desconfiança.
Então passou a reproduzir os mesmos argumentos postados em seu blog. Como principal evidência de George Soros é “dono” do Partido Democrata norte-americano, citou um episódio do Saturday Night Live.
Como comprovação de os Estados Unidos seriam “uma ferrenha potência colonizadora fortemente ideologizada”, citou um pronunciamento de Barack Obama onde ele mencionava que uma fundação húngara se propusera a erigir uma estátua em homenagem a Bálint Hóman. Ele escreveu as leis antijudaicas da Hungria nas décadas de 30 e 40.
Reiterou sua opinião de a imigração representar grave ameaça à Hungria e se irritou quando Anne lhe perguntou, várias vezes, onde estariam os imigrantes. “Estão na Alemanha”, retrucou, ríspida, asseverando os alemães irem acabar obrigando a Hungria a receber de volta “aquela gente”.
Schmidt corporifica aquilo qualificado pelo escritor búlgaro Ivan Krastev recentemente como o anseio de muitos europeus centro-orientais de “se desvencilhar da dependência colonial já implícita no projeto de ocidentalização”, de se livrar do rebaixamento de terem sido imitadores, seguidores do Ocidente, em vez de fundadores.
Schmidt disse: a mídia ocidental, na qual Applebaum presumivelmente está incluída, “trata os que estão abaixo com a mesma superioridade com que tratava as colônias”. A opinião ocidental sobre o antissemitismo, a corrupção e o autoritarismo húngaros seria “colonialismo”.
Apesar de se devotar à singularidade da Hungria e ao fomento da “hungrianidade”, Schmidt tem tomado emprestado boa parte de sua ideologia em geral do Breitbart News, um site norte-americano de extrema direita – inclusive a descrição caricatural das universidades norte-americanas e as piadas debochadas sobre os “banheiros transexuais”. Até convidou Steve Bannon e Milo Yiannopoulos, então ligados ao site, a irem a Budapeste.
O americano Steve Bannon (1953) foi o principal estrategista da campanha de Donald Trump à Casa Branca e, depois, assessor do presidente nos primeiros meses do governo. Foi diretor-executivo do Breitbart News de 2012 até o início deste ano. O inglês Milo Yiannopoulos (1984) trabalhou no mesmo site como editor até 2017, quando se demitiu após ser acusado de fazer apologia da pedofilia.
Ao escutá-la, Applebaum se convencia de, em momento nenhum, suas opiniões “mudaram”. Ela jamais se voltou contra a democracia liberal, uma vez que jamais acreditou nela ou ao menos achou que ela fosse tão importante assim.
Para Schmidt, o antídoto do comunismo não é a democracia, mas uma visão de soberania nacional própria à corrente de oposição a Dreyfus. E caso a soberania nacional assumisse a forma de um regime cuja elite se definisse não conforme seu talento, mas conforme seu “patriotismo” – o que na prática significa boa vontade de se sujeitar aos ditames de Orbán –, para ela estaria tudo bem.
O ceticismo de Schmidt é extremo. O auxílio de Soros aos refugiados sírios não pode ser filantropia: deve provir de um profundo desejo de arrasar a Hungria. A política de Angela Merkel em relação aos refugiados tampouco pode decorrer de um desejo de ajudar as pessoas. “Acho que isso é puro papo furado”, ela afirmou.
“Eu diria que ela quer demonstrar que desta vez os alemães são os bonzinhos. E que podem passar um sermão sobre humanismo e moralidade em todo mundo. Para os alemães não importa o que vão dizer em seus sermões ao resto do mundo: eles simplesmente têm de passar um sermão e ponto.”
É evidente que a Mentira de Médio Porte está dando certo para Orbán – assim como funciona para Donald Trump –, por chamar a atenção do mundo para sua retórica e não para suas ações. As duas passamos a maior parte da desagradável conversa de duas horas discutindo sobre questões disparatadas.
George Soros seria mesmo o dono do Partido Democrata? Imigrantes inexistentes – que de todo modo não querem viver na Hungria – seriam uma ameaça para a nação?
Em nenhum momento discutiram a influência da Rússia no país. Agora, ela se vê bastante fortalecida. Não trataram de corrupção, nem das incontáveis maneiras (documentados pelo Financial Times e por outros órgãos) pelas quais pessoas próximas de Orbán têm se beneficiado de subsídios europeus e de mutretas legislativas (um partido governante que vem politizando o sistema judiciário e tolhendo os meios de comunicação é um partido que se vê em condições bem mais cômodas de roubar).
No fim das contas, Applebaum sequer vim a saber muito a respeito da própria Schmidt. Em Budapeste há quem a julgue motivada pela compulsão por riqueza e poder.
Zsuzsanna Szelényi, uma parlamentar antes filiada ao Fidesz, o partido de Orbán, mas agora independente, foi uma das várias pessoas com a opinião de, “na Hungria, ninguém consegue ficar rico sem ter alguma relação com o primeiro-ministro”.
Graças a Orbán, Schmidt supervisiona o museu e alguns institutos históricos, o que lhe confere a faculdade ímpar de moldar a memória dos húngaros, atividade muito capaz de a agradar. Talvez ela de fato julgue a Hungria estar diante de uma grave ameaça existencial sob a forma de George Soros e de alguns sírios invisíveis. Ou talvez ela apenas ser tão cínica acerca de seu próprio posicionamento quanto acerca de seus adversários e tudo se trate de uma manobra complexa.
O que aconteceu depois da entrevista já dá uma pista. Sem a permissão de Applebaum, ela publicou em seu blog uma transcrição da conversa – bastante editada e apresentada como uma entrevista dela com a autora. A transcrição também figurou, em inglês, no site oficial do governo húngaro. A “entrevista”, é claro, não foi favorável à autora. Não passou de uma atuação para comprovar Schmidt ser leal ao regime e estar disposta a defendê-lo. O que é fato.
Oportunismo Carreirista: Atitude Comum de Ressentidos publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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