domingo, 20 de setembro de 2020

Grande Mentira e Mentira do Tamanho Médio: Teoria da Conspiração

Anne Applebaum, em seu livro vencedor do Pulitzer Prize, “Crepúsculo da Democracia” (Penguin Random House LLC, 2020), afirma: os escritores europeus do século XX estavam obcecados com a ideia da Grande Mentira, as vastas construções ideológicas apresentadas como o comunismo e o fascismo.

Os cartazes exigindo fidelidade ao Partido ou ao Líder, os Camisas Marrom e Camisas Negras marchando em formação, os desfiles iluminados por tochas, a polícia do terror, todas essas demonstrações forçadas de apoio às Grandes Mentiras eram tão absurdas e desumanas a ponto de exigirem violência prolongada para impor e a ameaça de violência para manter. Eles exigiam educação forçada, controle total de toda a cultura, a politização do jornalismo, esportes, literatura e artes.

Em contraste, os movimentos políticos de polarização da Europa do século XXI exigem muito menos de seus seguidores. Eles não defendem uma ideologia desenvolvida e, portanto, não exigem violência ou polícia do terror. Eles querem seus clérigos serem capazes de os defenderem, mas não os obrigam a proclamar “preto ser branco”, “guerra ser paz” e “as fazendas estatais alcançaram 1.000% de sua produção planejada”.

A maioria deles não usa propaganda em conflito com a realidade cotidiana. No entanto, todos eles dependem, se não de uma Grande Mentira, então de o que o historiador Timothy Snyder certa vez disse a Anne Applebaum: deveria ser chamada de Mentira do Tamanho Médio.

Em outras palavras, todos eles incentivam seus seguidores a se envolver, pelo menos parte do tempo, com uma realidade alternativa. Às vezes, essa realidade alternativa se desenvolveu organicamente; mais frequentemente, foi cuidadosamente formulada, com a ajuda de técnicas modernas de marketing, segmentação de público e campanhas de mídia social.

É claro os americanos estarem familiarizados com as maneiras como uma mentira pode aumentar a polarização e inflamar a xenofobia. Muito antes de se candidatar à presidência, Donald Trump entrou na política americana promovendo o birtherism, a falsa premissa de o presidente Barack Obama não ter nascido na América – uma Teoria da Conspiração cujo poder foi seriamente subestimado na época.

Mas, em pelo menos dois países europeus, Polônia e Hungria, agora temos exemplos do acontecido quando uma mentira de tamanho médio – uma Teoria da Conspiração – é propagada primeiro por um partido político como a plataforma central de sua campanha eleitoral. Depois, é adotada por um partido no poder, com toda a força de um aparato estatal moderno e centralizado por trás dele.

Na Hungria, a mentira não é original: é a crença, agora promovida pelo governo russo e muitos outros, nos poderes sobre-humanos de George Soros, o bilionário judeu húngaro. Ele supostamente está conspirando para destruir a Hungria por meio da importação deliberada de migrantes.

Esta teoria, como muitas teorias de conspiração bem-sucedidas, é construída sobre um grão de verdade: Soros sugeriu certa vez a rica Europa fazer um gesto humanitário e admitir mais sírios, a fim de ajudar as nações mais pobres do Oriente Médio a lidar com a crise de refugiados.

Mas a propaganda na Hungria – e em uma miríade de extrema direita europeia e americana, de supremacia branca e sites “identitários” – vai muito além disso. Sugere Soros ser o principal instigador de uma conspiração judaica deliberada para substituir europeus cristãos brancos – e húngaros em particular – por muçulmanos de pele morena.

Esses movimentos não percebem os migrantes apenas como um fardo econômico ou mesmo uma ameaça terrorista, mas sim como um desafio existencial para a própria Nação. Em várias ocasiões, o governo húngaro colocou o rosto de Soros em cartazes, no chão dos trens do metrô e em folhetos, na esperança de assustar os húngaros e fazê-los apoiar o governo.

Na Polônia, a mentira é pelo menos sui generis. É a Teoria da Conspiração de Smolensk. Ela obceca velhos amigos e tantos outros aparvalhados: a crença de uma trama nefasta ter derrubado o avião do presidente em abril de 2010. A história tem força especial na Polônia porque o acidente teve ecos históricos assustadores.

O presidente da Polônia, Lech Kaczyński, a primeira-dama e outras 94 pessoas, inclusive integrantes da alta cúpula do governo, morreram no dia 10 de abril de 2010 quando o avião presidencial caiu próximo da pista de pouso da cidade russa de Smolensk. O partido Lei e Justiça insinuou o presidente ter sido vítima de um atentado.

O presidente morto, Lech Kaczyński, estava a caminho de um evento comemorativo dos massacres de Katyń, uma série de assassinatos em massa ocorridos em 1940, quando Stalin massacrou mais de 21 mil oficiais poloneses – um ataque deliberado ao então classificado como a elite do país. Dezenas de altos militares e políticos também estavam a bordo, muitos deles amigos de Anne Applebaum. Seu marido conhecia quase todo mundo no avião, inclusive os comissários de bordo.

Uma grande onda de emoção seguiu o acidente. Uma espécie de histeria, algo como a loucura similar à qual se apossou dos Estados Unidos após o 11 de setembro, engolfou a Nação. Os locutores de televisão usavam gravatas pretas de luto; amigos se reuniram em seu apartamento em Varsóvia para falar sobre a história se repetindo naquela floresta escura e úmida da Rússia.

Sua própria lembrança dos dias seguintes é confusa e caótica. Lembra-se de ter ido comprar um terno preto para usar nos serviços fúnebres. Lembra-se de uma das viúvas, tão frágil a ponto de mal conseguir ficar de pé, chorando no funeral do marido. Meu próprio marido, tendo recusado um convite para viajar com o presidente naquela viagem, ia ao aeroporto todas as noites para ficar em posição de sentido, enquanto os caixões eram trazidos para casa.

No início, a tragédia parecia unificar as pessoas. Afinal, políticos de todos os principais partidos estavam no avião. Os funerais aconteceram em todo o país. Até Vladimir Putin, então primeiro-ministro russo, pareceu comovido.

Ele foi a Smolensk para se encontrar com Tusk, então primeiro-ministro polonês, na noite do acidente. No dia seguinte, um dos canais de televisão mais assistidos da Rússia transmitiu Katyń, um filme polonês emocional e muito anti-soviético, dirigido por Andrzej Wajda, o maior diretor da Polônia. Nada parecido foi mostrado tão amplamente na Rússia, antes ou depois.

Mas o acidente não uniu as pessoas. Nem a investigação de sua causa.

Equipes de especialistas poloneses estiveram no terreno nesse mesmo dia. Eles fizeram o possível para identificar os corpos. Eles examinaram os destroços. Logo quando a caixa preta foi encontrada, eles começaram a transcrever a fita da cabine.

A verdade, conforme começou a surgir, não era reconfortante para o partido Law and Justice ou para seu líder, o irmão gêmeo do presidente morto. O avião decolou tarde. O presidente provavelmente estava com pressa de desembarcar, porque queria usar a viagem para lançar sua campanha de reeleição. Ele pode ter ficado acordado até tarde e bebendo na noite anterior.

Conforme os pilotos se aproximavam, eles descobriram haver neblina espessa em Smolensk. Lá não tinha um aeroporto de verdade, apenas uma pista de pouso na floresta. Eles consideraram desviar o avião, o que significaria uma viagem de várias horas até a cerimônia.

Depois de o presidente dar um breve telefonema ao seu irmão, seus conselheiros aparentemente pressionaram os pilotos a pousar. Alguns dos conselheiros, contra o protocolo, entraram e saíram da cabine durante o voo.

Também contra o protocolo, o chefe da Força Aérea veio e sentou-se ao lado dos pilotos. “Você vai conseguir, seja ousado”, disse ele. Segundos depois, o avião colidiu com as copas de algumas bétulas, rolou e atingiu o solo.

Inicialmente, Jarosław Kaczyński parece ter acreditado a queda ter sido um acidente. “A culpa é sua e dos tablóides”, disse ele ao marido de Anne Applebaum. Ele teve a terrível tarefa de informá-lo sobre o acidente.

Com isso, ele quis dizer a culpa ser do governo porque, intimidado pelo jornalismo de tablóide, ele se recusou a comprar novos aviões. Mas, com o desenrolar da investigação, as descobertas não foram do seu agrado. Não havia nada de errado com o avião.

Talvez, como tantas pessoas contadoras de estórias com Teorias da Conspiração para dar sentido racional a tragédias aleatórias, Kaczyński simplesmente não pudesse aceitar seu amado irmão ter morrido inutilmente. Talvez ele não pudesse aceitar o fato ainda mais difícil de as evidências sugerirem o presidente e sua equipe, talvez até inspirados por aquele telefonema, pressionaram os pilotos a pousar, dando início à cadeia de eventos provocadores do acidente. Talvez ele se sentisse culpado – a viagem foi ideia dele – ou com remorso. Ou talvez, como Donald Trump, ele viu como uma Teoria da Conspiração poderia ajudá-lo a alcançar o poder.

Assim como Trump usou o birterismo para levantar suspeitas sobre o presidente democrata mesmo antes de ser candidato, Kaczyński usou a tragédia de Smolensk para galvanizar seus seguidores, para alcançar novos apoiadores da extrema direita, para convencê-los a não confiar no governo ou a mídia.

Às vezes, ele insinua o governo russo ter derrubado o avião. Em outras ocasiões, ele culpou o antigo partido no poder, agora o maior partido da oposição, pela morte de seu irmão: “Você o destruiu, você o assassinou, você é uma escória!” ele gritou uma vez no parlamento.

Nenhuma de suas acusações é verdadeira e, em algum nível, ele parece saber disso. Talvez para se distanciar um pouco das mentiras contadas, ele deu a tarefa de promover a Teoria da Conspiração a um de seus camaradas mais antigos e estranhos. Antoni Macierewicz é um membro da geração de Kaczyński, um anticomunista de longa data, embora com algumas conexões russas estranhas e hábitos estranhos.

Seu comportamento secreto e obsessões pessoais – ele disse achar os Protocolos dos Sábios de Sião um documento plausível – até levaram o Partido da Lei e da Justiça a fazer uma promessa eleitoral em 2015: Macierewicz definitivamente não seria o ministro da defesa.

Mas logo quando o partido ganhou, Kaczyński quebrou sua promessa e nomeou Macierewicz precisamente para esse cargo. Imediatamente, Macierewicz começou a institucionalizar a mentira de Smolensk.

Ele criou uma nova comissão de investigação composta por excêntricos, entre eles um etnomusicólogo, um piloto aposentado, um psicólogo, um economista russo e outras pessoas sem experiência em acidentes aéreos. O relatório oficial anterior foi removido de um site do governo.

A polícia entrou nas casas dos especialistas em aviação com testemunhos durante a investigação original, interrogou-os e confiscou seus computadores. Quando Macierewicz foi a Washington, D.C., para se encontrar com seus colegas americanos no Pentágono, a primeira coisa feita foi perguntar se a inteligência dos EUA tinha alguma informação secreta sobre Smolensk. A reação foi de preocupação generalizada com o estado mental do ministro.

Quando, algumas semanas após a eleição, as instituições europeias e grupos de direitos humanos começaram a responder às ações do governo de Lei e Justiça, eles se concentraram em minar os tribunais e os meios de comunicação públicos. Eles não se concentraram na institucionalização da Teoria da Conspiração de Smolensk. Ela era, francamente, muito estranho para estranhos entenderem. Mesmo assim, a decisão de colocar uma fantasia no centro da política governamental realmente inspirou muito do processo em seguida.

Embora a comissão Macierewicz nunca tenha produzido uma explicação alternativa confiável para o acidente, a mentira de Smolensk lançou a base moral para outras mentiras. Aqueles com aceitação dessa Teoria da Conspiração elaborada podiam aceitar qualquer coisa.

Eles poderiam aceitar a promessa quebrada de não colocar Macierewicz no governo. Eles poderiam aceitar, mesmo Law and Justice sendo, supostamente, um partido “patriótico” e anti-russo, as decisões de Macierewicz de demitir muitos dos mais altos comandantes militares do país, cancelar contratos de armas, promover pessoas com ligações russas e invadir instalações da OTAN em Varsóvia no meio da noite.

A mentira também deu aos soldados rasos da extrema direita uma base ideológica para tolerar outras ofensas. Quaisquer erros cometidos pelo partido, quaisquer leis fossem violadas, pelo menos a “verdade” sobre Smolensk seria finalmente dita.

A Teoria da Conspiração de Smolensk também serviu a outro propósito: para uma geração mais jovem sem memória do comunismo e para uma sociedade onde os ex-comunistas haviam praticamente desaparecido da política, ela ofereceu um novo motivo para desconfiar dos políticos, empresários e intelectuais insurgentes das lutas da década de 1990 e agora liderando o país. Mais precisamente, ofereceu um meio de definir uma elite nova e melhor.

Não houve necessidade de competição, nem de exames, nem de um currículo repleto de realizações. Qualquer pessoa capaz de dizer acreditar na mentira de Smolensk é, por definição, um verdadeiro patriota – e, portanto, qualificado para um cargo público. E a Polônia não é, obviamente, o único país onde funciona este mecanismo simples.

O apelo emocional de uma Teoria da Conspiração está em sua simplicidade. Explica fenômenos complexos, dá conta do acaso e dos acidentes, oferece ao crente a sensação satisfatória de ter acesso especial e privilegiado à verdade. Para aqueles guardiões do Estado de Partido Único, a repetição dessas Teorias da Conspiração também traz outra recompensa: Poder.

Grande Mentira e Mentira do Tamanho Médio: Teoria da Conspiração publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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