Conheci Liszt Vieira ao participar de seu comitê eleitoral em 1982. Foi a primeira campanha realizada por militantes do PT, quando a sociedade civil reorganizada impunha sua hegemonia cultural em favor da democracia sobre a sociedade política. Esta era dominada pelo regime ditatorial da casta dos militares aliada à casta dos mercadores desde o golpe de 1964. Os movimentos sociais de base, inclusive o estudantil, já tinham conseguido fraturar essa aliança, na eleição de 1974, ao apoiar candidatos progressistas do MDB de oposição autêntica à ditadura.
Essa eleição 1974 ficou marcada na história política da esquerda brasileira como uma guinada. Ocorreu depois do abandono da tática de luta armada em favor da estratégia democrática. De imediato, a expressiva vitória do MDB e a perda de espaço da ARENA no Senado assustou o Regime Militar.
Nos anos seguintes, a linha-dura do general Sílvio Frota, então ministro do Exército, insistiu no endurecimento, questionando a autoridade do general Geisel, nomeado presidente. Durante esse governo, ainda se lançou a Lei Falcão e o Pacote de Abril de 1977 com o objetivo de desfavorecer a oposição nas próximas eleições, mantendo a ditadura por mais onze anos. A casta dos militares acabou derrotada, politicamente, assim como a casta dos sábios intelectuais e estudantes tinham sido derrotados pelo aparelho repressor do Estado policial.
Depois de 35 anos, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, no atual governo do capitão, eleito acidentalmente, é relacionado à descendência do Frota. Muitos o consideram a eminência parda do capitão, de quem é conselheiro político. Porém, ele rejeita ser um Golbery do Couto e Silva, general muito influente para a abertura lenta e gradual durante a ditadura militar.
“O mundo gira, a Lusitana roda”. Para quem não sabe, a Lusitana era uma transportadora. Aquele slogan transmitia a ideia de mudança. Tornou-se um lugar-comum para os cariocas comentarem qualquer evolução. Essa ideia é contraposta à popular “quem fica parado é poste”. Ou à irônica “só relógio parado acerta duas vezes”.
Liszt Vieira passou por profunda mudança pessoal ao longo de sua notável vida. Formado em Direito e estudante de Ciências Sociais. Depois da edição do AI-5, em dezembro de 1968, assim como diversos outros militantes ativos do Movimento Estudantil (ME), instigados por amizade – “política se faz junto a companheiros amigos” –, tornou-se integrante da Vanguarda Popular Revolucionaria (VPR). Participou ativamente no sequestro do cônsul japonês Nobuo Okushi, em fevereiro de 1970, para libertar companheiros sob prisão e tortura dos militares.
Foi também preso e torturado. Obteve sua liberdade, em julho de 1970, na negociação pela vida do embaixador alemão. Este havia sido sequestrado no Rio de Janeiro. Foi banido para a Argélia. Depois se mudou para Cuba, Chile, Argentina e França, onde concluiu o mestrado em Ciências Sociais na Universidade de Paris.
De volta ao Brasil, após a Lei da Anistia pactuar perdão mútuo para torturadores e torturados, foi eleito deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT-RJ) em 1982. Na década de 1990, foi coordenador do Fórum Global da ECO-92, do Fórum Brasileiro e do Fórum Internacional de ONGs. Foi nomeado presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, cargo ocupado de 2003 a 2013.
Desde 2004, é professor de Sociologia da PUC-RJ. É doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
Participou de debates sobre a criação do Partido Verde e esteve entre os fundadores da Rede Sustentabilidade. Deixou o partido por conta de sua personalização política, exclusivamente, em torno da figura da Marina Silva. O culto à personalidade ainda é um problema a ser superado pela esquerda.
O caráter revolucionário de um sujeito histórico não se define a priori, mas sim a posteriori: sujeito revolucionário é quem fez a revolução. Mas a lição da história política universal revela não ser possível a mudança do modo de vida através de uma súbita “revolução”, reduzida à tomada do poder do Estado. O socialismo utópico, isto é, aquele imaginado e desejado como contraponto crítico à realidade do capitalismo realmente existente, nunca foi o socialismo realmente existente na URSS, em Cuba, na China e onde mais se instalou essa autodenominação pela vanguarda vitoriosa.
O dilema da vanguarda é: a história se faz sem indivíduos, mas sim por classe social, ou somente com algumas pessoas? Muitos participantes da “geração 68”, nascida durante o baby-boom do pós-guerra, e caracterizada como rebelde pela revolução em costumes – e não tanto pela luta armada –, teve de enfrentar o dilema do vanguardismo. Era um problema insolúvel. Considerava, ao mesmo tempo, a marcha da História ser objetivamente inelutável e logicamente previsível – porque sem essa justificativa a luta revolucionária se descambaria para o voluntarismo –, mas ser preciso “ajudar” essa História a marchar. Com isto, a consciência e a vontade, dispensáveis em virtude das leis de movimento da História, voltam a ser necessárias, para essas leis se cumprirem.
O alter ego age como alguém muito próximo, em quem se deposita total confiança, um substituto perfeito. Em Psicologia, uma pessoa dotada de alter ego leva uma vida dupla. Na literatura, alter ego é um personagem usado intencionalmente pelo autor para apresentar suas próprias ideias. No caso das Memórias da Resistência de Liszt Vieira, ele busca através de personagens com seus codinomes fazer (e propiciar ao leitor) uma reflexão sobre a realidade. “Esta parece ficção, e a ficção, realidade, formando o que poderia ser chamado de autoficção histórica”.
Cita Bergson: “o presente nada mais é que o passado se projetando no futuro”. Parece ser, como intitulava nosso amigo Herbert Daniel, apenas “uma passagem para o próximo sonho”. Mas, hoje, o passado é encarado como uma previsão feita a partir do presente.
O analista levanta sua hipótese, formulada no presente, e busca a confirmação ao elaborar uma narrativa sobre o passado. Se pesquisa dados, o critério de seleção tende a ser parcial ao escolher apenas os confirmatórios da hipótese apriorística. Uma reprodução verdadeira ou totalizante do passado exigiria a impossível reversão do tempo. Seria como “desfritar um ovo”…
A vida segue sem linha de causação. Não há uma única progressão infinita de causas-e-efeitos capaz de ser descoberta e racionalizada pela mente humana. Não é possível, sem “máquina-do-tempo”, descobrir a história do futuro.
Restam as memórias. São lições do passado capazes de trazerem experiências vivenciadas. Podem ser úteis – ou não utilizáveis – para iluminar ações presentes. Por exemplo, “o que você quer não é fazer justiça, é buscar vingança”: vivemos a vingança dos ressentidos? A vingança dos militares no ostracismo desde o fim da Guerra Fria?
“Nunca vi um preso ser reabilitado. A prisão não reabilita ninguém, não prepara ninguém para reinserção social. A prisão é também uma forma de vingança. Uma punição contra os excluídos e marginalizados que se rebelaram contra sua exclusão”.
Lula, por exemplo, não sempre lutou apenas pela inclusão social dos trabalhadores informais no mercado de consumo? Lutamos pelo direito de não existir um cidadão de segunda categoria sem direitos civis, políticos, sociais, econômicos e de livre arbítrio sobre seu corpo, como defendem os movimentos feministas, antirracistas e contra a homofobia. A esquerda democrática, em luta processual, abarca os diversos movimentos pela igualdade social, inclusive o direito de pobres consumirem à vontade.
Não se deve acabar com a própria vida por conta de um plano de vingança. Não se deve confundir isso com justiça. Para a conciliação política (e pessoal consigo mesmo), é necessário sublimar ou separar-se daquilo impuro como o dedo-duro covarde e o torturador desumano. Eles sofrem, por si só, a tortura mental do isolamento social ou não reconhecimento de si como uma pessoa digna de viver em fraternidade.
Na Psicologia, sublimação designa um mecanismo de defesa do “eu”. Determinados impulsos inconscientes integrados na personalidade culminam em atitudes com valor social positivo.
A casta dos sábios estudantes e intelectuais era pequena. Os resistentes adotaram a luta armada. Eram jovens. A ditadura havia roubado tudo: a liberdade, os amigos, a convivência com a família. “Não esquecemos, não perdoamos”. A anistia não é amnésia.
A geração sufocada resultou em um vazio de lideranças? A geração combatente contra a ditadura sacrificou o presente pelo futuro? Suas utopias eram inviáveis ou críticas àquela realidade vivenciada?
Os diversos caminhos e táticas de violência para chegar ao Socialismo fracassaram não como uma derrota para o Capitalismo, mas sim como uma imposição da luta democrática por uma vida alternativa exigir um processo contínuo de lutas pacíficas, tanto no nível individual, quanto no social. Assim, transformaremos as relações entre homens e mulheres, não discriminaremos etnias culturais, conquistaremos o livre-arbítrio sobre o próprio corpo e a autogestão, priorizaremos a Comunidade face ao Estado e ao Mercado… A luta continua!
A Busca: Memórias da Resistência de Liszt Vieira em 2ª Edição publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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