quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Predisposição Autoritária

Anne Applebaum, em seu livro vencedor do Pulitzer Prize, “Crepúsculo da Democracia” (Penguin Random House LLC, 2020), narra: Karen Stenner, uma economista comportamental, começou a pesquisar traços de personalidade há duas décadas. Por sua pesquisa, cerca de um terço da população de qualquer país tem o chamado por ela de predisposição autoritária, uma expressão mais útil se comparada à personalidade, porque é menos rígida.

Uma predisposição autoritária favorece a homogeneidade e a ordem. Pode estar presente sem necessariamente se manifestar. Ao contrário, uma predisposição “libertária” privilegia a diversidade e a diferença, também pode estar presente silenciosamente.

A definição de autoritarismo de Stenner não é política e não é semelhante a conservadorismo. O autoritarismo apela, simplesmente, a pessoas incapazes de tolerar a complexidade: não há nada intrinsecamente “de esquerda” ou “de direita” neste instinto. É anti-pluralista. Suspeita de pessoas com ideias diferentes. É alérgico a debates acirrados.

Se os possuidores derivam sua política do marxismo ou do nacionalismo, isso é irrelevante. É um estado de espírito, não um conjunto de ideias.

Mas os teóricos muitas vezes deixam de lado outro elemento crucial no declínio da democracia e na construção da autocracia. A mera existência de pessoas admiradoras dos demagogos ou mais confortáveis ​​em ditaduras não explica totalmente por que os demagogos vencem.

O ditador quer governar, mas como ele atinge aquela parte do público com o mesmo sentimento totalitário? O político iliberal quer minar os tribunais para se dar mais poder, mas como ele persuade os eleitores a aceitar essas mudanças?

Na Roma antiga, César obrigou escultores a fazer várias versões de sua imagem. Nenhum autoritário contemporâneo pode ter sucesso sem o equivalente moderno: os escritores, intelectuais, panfletários, blogueiros, spin doctor [assessor de político ou marqueteiro hábil em tornar a imagem deste aceitável ou simpática à opinião pública], produtores de programas de televisão e criadores de memes podem vender sua imagem ao público.

Os autoritários precisam das pessoas capazes de promover o motim ou lançar o golpe. Mas eles também precisam de pessoas capazes de usar uma linguagem jurídica sofisticada, ou seja, pessoas com argumentos para violar a constituição ou distorcer a lei.

Eles precisam de pessoas capazes de dar voz às queixas, manipularem o descontentamento, canalizarem a raiva e o medo e imaginarem um futuro diferente. Eles precisam de membros da elite intelectual e culta. Esses cúmplices os ajudam a lançar uma guerra contra o resto da elite intelectual e culta, mesmo se isso incluir seus colegas de universidade, seus colegas profissionais e seus amigos.

Em seu livro de 1927, La trahison des clercs – livremente traduzido como “A Traição dos Intelectuais” – o ensaísta francês Julien Benda observou e descreveu as elites autoritárias de seu tempo muito antes de qualquer outra pessoa entendesse o quão importante elas foram. Antecipando Arendt, sua preocupação não eram “personalidades autoritárias” como tais, mas sim as pessoas em particular capazes de apoiarem o autoritarismo já tomando formas tanto de esquerda quanto de direita em toda a Europa.

Ele descreveu os ideólogos de extrema direita e extrema esquerda em busca de promover a “paixão de classe”, na forma do marxismo soviético, ou a “paixão nacionalista” na forma de fascismo. Acusou ambos de trair a tarefa central de o intelectual, a busca da verdade, a favor de causas políticas particulares.

Sarcasticamente, ele chamou esses intelectuais decaídos de clérigos ou “escrivães”, uma palavra cujos significados mais antigos a associam a “clero”. [Fernando Nogueira da Costa: uso a expressão casta dos sábios-intelectuais ou sacerdotes, inclusive a casta dos sabidos-pastores, todos pregadores de ideologia e/ou religião.]

Dez anos antes do Grande Terror de Stalin e seis anos antes de Hitler chegar ao poder, Benda já temia os escritores, jornalistas e ensaístas terem se transformado em empresários políticos e propagandistas de modo a incitar civilizações inteiras em atos de violência. E assim aconteceu.

Se isso acontecer, a queda da democracia liberal em nosso tempo não será como foi nas décadas de 1920 ou 1930. Mas ainda exigirá uma nova elite, uma nova geração de clérigos, para realizá-lo.

O colapso de uma ideia do Ocidente, ou daquilo às vezes é chamado de “ordem liberal ocidental”, precisará de pensadores, intelectuais, jornalistas, blogueiros, escritores e artistas para minar nossos valores atuais e, em seguida, imaginar o novo sistema para venha. Eles podem vir de lugares diferentes: na definição original, os clérigos incluíam ideólogos da direita e também da esquerda. Ambos ainda estão conosco, isto é, atuantes em nossa rede de informações.

Uma sensibilidade autoritária está inquestionavelmente presente em uma geração de agitadores de extrema esquerda do campus universitário. Eles buscam ditar como os professores podem ensinar e o que os alunos podem dizer.

Está presente nos instigadores de turbas do Twitter em busca de derrubar figuras públicas, bem como pessoas comuns, por violarem códigos de discurso não escritos. Esteve presente entre os ativistas trabalhistas britânicos. Primeiro negaram e depois subestimaram o anti-semitismo. Inapelavelmente, este preconceito racista se espalhou dentro do Partido Trabalhista também.

Mas embora o poder cultural da esquerda autoritária esteja crescendo, os únicos clérigos modernos com alcance de verdadeiro poder político nas democracias ocidentais – os únicos operando dentro de governos, participando de coalizões governantes, guiando partidos políticos importantes – são membros de movimentos chamados de “direita” por nós, acostumados assim a designar os contrários aos direitos de minoria.

São, é verdade, um tipo específico de direito. Ele pouco tem em comum com a maioria dos movimentos políticos assim descritos desde a Segunda Guerra Mundial.

Conservadores britânicos, republicanos americanos, anticomunistas do Leste Europeu, democratas-cristãos alemães e gaullistas franceses vêm de tradições diferentes, mas como um grupo eles eram, pelo menos até recentemente, dedicados não apenas à democracia representativa, mas à tolerância religiosa, independência dos judiciários, liberdade de imprensa e expressão, integração econômica, instituições internacionais, a aliança transatlântica e uma ideia política do “Ocidente” de democracia liberal.

Em contraste, a nova direita não quer conservar ou preservar o existente. Na Europa continental, a nova direita despreza a Democracia Cristã, por ter feito uso de sua base política na Igreja para fundar e criar a UE após o pesadelo da Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, a nova direita rompeu com o conservadorismo burkeano [originário do irlandês Edmond Burke (1729-1797)] pequeno e antiquado.

Ela suspeita de mudanças rápidas em todas as suas formas. Embora odeiem a frase “a nova direita é mais bolchevique do que burkeana”, são homens e mulheres com disposição para derrubar, contornar ou minar as instituições existentes, para destruir a tradição democrática liberal de tolerância com os direitos dos adversários.

Este livro é sobre esta nova geração de clérigos e a nova realidade sendo criada por eles, começando com algumas conhecidas por Anne Applebaum na Europa Oriental. Depois, passa para a história diferente, mas paralela da Grã-Bretanha, outro país onde a autora teve laços profundos. Termina com os Estados Unidos, onde nasceu, com algumas paradas em outros lugares.

As pessoas descritas variam de ideólogos nativistas a ensaístas políticos nobres.

  • Alguns deles escrevem livros sofisticados, outros lançam teorias de conspiração viral.
  • Alguns são genuinamente motivados pelos mesmos medos, a mesma raiva e o mesmo desejo profundo de unidade motivadora de seus leitores e seguidores.
  • Alguns foram radicalizados por encontros irados com a esquerda cultural, ou repelidos pela fraqueza do centro liberal.
  • Alguns são cínicos e instrumentais, adotando uma linguagem radical ou autoritária porque isso lhes trará poder ou fama.
  • Alguns são apocalípticos, convencidos de suas sociedades terem falhado e precisarem ser reconstruídas, pouco importando o resultado.
  • Alguns são profundamente religiosos.
  • Alguns gostam do caos, ou procuram promovê-lo, como um prelúdio para a imposição de um novo tipo de ordem.

Todos eles buscam redefinir suas nações, reescrever os contratos sociais e, às vezes, alterar as regras da democracia para que nunca percam o poder. Alexander Hamilton advertiu contra eles, Cícero lutou contra eles. Alguns deles costumavam ser amigos.

 

Predisposição Autoritária publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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