domingo, 6 de setembro de 2020

Era do Narcisismo de Massa

Giuliano da Empoli, em seu livro “Os Engenheiros do Caos” (tradução Arnaldo Bloch. 1ª. ed. São Paulo: Vestígio, 2019), avalia: na Era do Narcisismo de Massa, a democracia representativa está em risco de se ver mais ou menos em situação de rejeição preconceituosa por ser fruto de ações coletivas e não do individualismo predominante.

De fato, seu princípio fundamental, a intermediação, contrasta de modo radical com o espírito do tempo e com as novas tecnologias. Elas tornam possível a desintermediação em todos os domínios.

Assim, seus tempos – forçosamente longos por se basearem na exigência de elaborar e firmar compromissos –, suscitam a indignação de consumidores habituados a ver suas exigências satisfeitas em um clique.

Até mesmo nos detalhes, a democracia representativa aparece como uma máquina concebida para ferir o ego dos viciados em selfies. Como assim, voto secreto?! As novas convenções possibilitam, ou ao menos pretendem, que cada um se fotografe em toda e qualquer ocasião, do show de rock ao enterro. Mas se você tentar fazê-lo na cabine de voto, tudo é anulado? Não é o tratamento aos quais fomos acostumados pela Amazon e pelas redes sociais!

Os novos movimentos populares e nacionalistas nascem também dessa insatisfação. Não é por acaso que eles põem, no centro de seu programa, a ideia de submeter a democracia representativa ao mesmo destino ao qual foi condenado o gato preto.

Antes dos programas, é preciso ver a superação da democracia representativa já estar disponível na oferta de participação proposta pelos novos movimentos populistas a seus afiliados. Esse aspecto de manifestação festiva por massa de desconhecidos com coisas em comum, nas ruas, escapa quase sempre aos observadores. No entanto, é fundamental para entender a força de atração desses movimentos.

Se a vontade de participar vem quase sempre da raiva acumulada, a experiência da participação no 5 Estrelas, na revolução trumpista ou no turbilhão dos Coletes Amarelos é uma experiência muito gratificante – e frequentemente alegre.

As imagens dos Coletes Amarelos, feitas a volta ao mundo, são aquelas da violência nos Champs-Elysées e dos saques às lojas parisienses. Mas, nas redes sociais, foram vistas também muitas cenas festivas, com manifestantes dançando nas rotatórias ao ritmo de melodias folclóricas e se divertindo fazendo troça uns dos outros.

Para quem vive em condições de real isolamento, aderir ao carnaval populista significa fazer parte de uma comunidade. Em certo sentido, mudar de vida, mesmo se os objetivos políticos da iniciativa não são atingidos.

Na retórica dos 5 Estrelas, como nos comícios de Trump, encontra-se um tipo de lição de desenvolvimento pessoal. Ele pretende liberar as energias do indivíduo, por muito tempo reprimidas, recalcadas e ressentidas pela gente de direita, submetida à inteligência da esquerda sem nunca ter estudado para a superar. O rancor e o ódio desabrocharam. Ficaram sem a vergonha de serem conservadores, reacionários e idiotas, inconscientes do malfeito a si e aos outros, porque perceberam haver muitos outros tão idiotas quanto eles.

A chave do sucesso de Trump é a ideia segundo a qual as velhas regras de decência foram feitas para os perdedores. Eles não têm o coração, a coragem e a ‘trumpitude’ para serem, simplesmente, eles mesmos com toda sua ignorância, religiosidade e conservadorismo. É uma mensagem libertadora, potente, perfeitamente em linha com a Era do Narcisismo de Massa. [Fernando Nogueira da Costa: perderam a vergonha de vestir uma camisa amarela da CBF corrupta e… sair por aí!]

Para além da dimensão física, no terreno virtual a adesão aos movimentos nacional-populistas encontra sua realização mais completa. Lá, os algoritmos desenvolvidos e instaurados pelos engenheiros do caos dão a cada indivíduo a impressão de estar no coração de um levante histórico. Enfim, o idiota pensa ser ator de uma história a qual ele achava estar condenado a suportar passivamente como figurante.

Take back control!” – “retome o controle” –, o slogan do Brexit é o argumento principal de todos os movimentos nacional-populistas, baseia-se em um instinto primitivo do ser humano.

Interrogando os sobreviventes dos campos de concentração, Bruno Bettelheim descobriu que aqueles que sobreviveram eram sobretudo aqueles capazes de conseguirem estabelecer uma zona de controle, mesmo imaginária, sobre sua vida cotidiana nos campos.

Esse desejo de controle é tão forte a ponto de ele nos acompanhar mesmo quando pretendemos nos abandonar à nossa própria sorte. O sujeito jogador de dados, por exemplo, quer lançá-los ele próprio. Nos casos em que o resultado é oculto, ele está pronto a apostar somas muito mais elevadas no escuro em vez de depois de lançar.

A mesma coisa vale para os outros jogos. Quem compra um bilhete de loteria quer escolher os números. Quem decide uma disputa no lançamento de moedas para o alto prefere lançar ele próprio. É toda a importância do controle, um instinto de tal forma ancorado no homem. Ele não o abandona jamais, mesmo quando ele aposta na roleta.

Em essência, a democracia não é nada mais do que isso. Um sistema capaz de permitir aos membros de uma comunidade exercer um controle sobre seu próprio destino, não se sentir à mercê dos eventos ou de uma força superior qualquer. Assegurar a dignidade de indivíduos autônomos, responsáveis por suas escolhas e as consequências delas.

Eis por que não se pode fechar os olhos para o fato de, um pouco em todos os lugares, os eleitores demonstrarem o sentimento de ter perdido o controle de seu destino por causa de forças ameaçadoras de seu bem-estar, sem as classes dirigentes mexerem um dedo para ajudá-los.

Os engenheiros do caos entenderam esse mal-estar poderia se transformar em um formidável recurso político e utilizaram sua magia, mais ou menos negra, para multiplicá-lo e dirigi-lo para seus próprios fins.

Em termos de programa, a resposta dos nacional-populistas trazem à perda de controle é antiga: o fechamento. Fechar as fronteiras, abolir os tratados de livre-comércio, proteger aqueles que se encontram no interior através da construção de um muro, metafórico ou real, face ao mundo exterior.

Mas, como Giuliano da Empoli tentou mostrar até aqui, em termos de formas e de instrumentos, os engenheiros do caos conseguiram um corpo de vantagem. Para retomar a frase de Woody Allen: na Era do Narcisismo Tecnológico, “os maus sem dúvida compreenderam algo que os bons ignoram”.

A raiva contemporânea pode ser explorada graças às novas tecnologias. É como se nos encontrássemos em uma plataforma petrolífera onde há todas essas reservas de energia escondidas, acumuladas durante anos nas profundezas submarinas. Tudo o que temos de fazer é descobrir onde elas estão, escavar e abrir a válvula para liberar a pressão.

Para obter esse resultado, os engenheiros do caos algumas vezes se valeram de meios ilegais. A campanha do Brexit está sendo hoje investigada por uso de dados recolhidos pela empresa AggregateIQ. Esses dados permitiram ser enviado mais de um bilhão de mensagens personalizadas aos eleitores britânicos durante a campanha.

Esses tipos de abusos correm o risco de se multiplicar cada vez mais, quando os engenheiros do caos chegam ao poder.

Era do Narcisismo de Massa publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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