segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Crepúsculo da Democracia

Partes do livro vencedor do Pulitzer Prize de autoria da Anne Applebaum, “Crepúsculo da Democracia” (Twilight of Democracy – The Seductive Lure of Authoritarianism. Penguin Random House LLC, 2020) foram publicadas originalmente nas seguintes publicações. “Um Aviso da Europa: O Pior Ainda Está por Vir” (outubro de 2018) e “As Pessoas Responsáveis Veem uma Oportunidade” (23 de março de 2020) foram publicadas pela primeira vez no The Atlantic. “Quer construir um movimento de extrema direita?” foi publicado, inicialmente, no The Washington Post (2 de maio de 2019). No Brasil, foi publicada na Edição 146 (novembro de 2018) na revista piauí o artigo “Carta da Polônia: O pior está por vir”.

Anne Applebaum é ótima contadora de histórias políticas. Sua narrativa é pessoal. Compartilho abaixo trechos do  primeiro capítulo.

Em 31 de dezembro de 1999 demos uma festa. Um milênio se encerrava e um novo tinha início: era preciso comemorar, de preferência em algum local exótico. Nossa festa cumpria esse requisito. Seria realizada em Chobielin, no noroeste da Polônia, em um solar onde meu marido e os pais dele haviam comprado fazia uns dez anos, quando a propriedade era uma ruína cheia de mofo.

Tínhamos reformado a casa aos poucos. Não estava pronta de todo em 1999, mas o telhado era novo. Também tinha um vasto salão recém-pintado e sem nenhuma mobília – perfeito para uma festa.

Os convidados eram variados. Havia amigos jornalistas de Londres e de Berlim, uns poucos diplomatas baseados em Varsóvia, dois amigos vindos de Nova York, mas os poloneses constituíam a maior parte: amigos nossos e colegas do meu marido, que à época era vice-ministro das Relações Exteriores do governo polonês. Também compareceram alguns jovens jornalistas poloneses – nenhum deles particularmente conhecido à época –, junto com uns poucos funcionários públicos e um ou dois integrantes do governo.

Dava para mais ou menos agrupar a maioria daquelas pessoas na categoria geral daquilo chamado pelos poloneses de “direita”: os conservadores, os anticomunistas. Porém, naquele momento da história também era possível qualificar a maioria deles como liberais – liberais pró-livre mercado ou liberais clássicos –, ou quem sabe como thatcheristas.

Mesmo aqueles com uma posição pouco clara em matéria de economia certamente acreditavam em democracia, no Estado de Direito e numa Polônia que era país-membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e estava em vias de ingressar na União Europeia, parte integrante da Europa moderna. Nos anos 90, era isso o que significava estar “à direita”.

Como costuma acontecer com as festas, os preparativos foram um tanto quanto improvisados. Na Polônia rural dos anos 90, não havia como encomendar comes e bebes – minha sogra e eu preparamos travessas de beterrabas assadas e carne ensopada com legumes. Tampouco havia hotéis – os cento e tantos convidados se hospedaram em fazendas das redondezas ou em casas de amigos na cidadezinha mais perto.

Fiz uma lista de quem ia ficar onde, mas ainda assim umas duas pessoas acabaram dormindo em um sofá do porão. O som – CDs de músicas gravadas em época anterior ao Spotify – gerou a única cizânia cultural séria da noite: a trilha sonora da época de faculdade dos americanos não era a mesma dos polacos, de maneira ter sido difícil fazer todo mundo dançar ao mesmo tempo.

A certa altura fui para o andar de cima: soube Boris Ieltsin ter renunciado e escrevi uma coluna sucinta para um jornal britânico. Desci e tomei mais uma taça de vinho. Lá pelas três da madrugada, uma convidada polonesa eufórica tirou uma pequena pistola da bolsa e disparou tiros de balas de festim.

Foi uma festa desse tipo. Varou a madrugada e continuou no brunch da tarde seguinte, impregnada do otimismo daquela época. Tínhamos reconstruído nossa casa. Nossos amigos estavam reconstruindo o país.

Tenho uma recordação particularmente nítida de um passeio na neve – talvez tenha sido no dia anterior à festa, talvez no dia seguinte – com uma turma bilíngue: todo mundo conversando ao mesmo tempo, o inglês e o polonês se mesclando e ecoando pelo bosque de bétulas.

Naquele momento, com a Polônia na iminência de se integrar ao Ocidente, tinha-se a impressão de que torcíamos todos pelo mesmo time. Concordávamos sobre a democracia, o caminho para a prosperidade, o rumo que as coisas estavam tomando.

Aquele momento passou. Decorridas quase duas décadas, cheguei a mudar de calçada para evitar algumas das pessoas que celebravam o ano 2000. Por sua vez, elas não só se recusavam a entrar na minha casa como tinham vergonha de admitir que um dia a frequentaram.

Na verdade, cerca de metade dos convidados nunca mais falaria com a outra metade. Os estremecimentos são políticos, não pessoais. Hoje a Polônia é uma das sociedades mais polarizadas da Europa – uma grave cisão divide não só o que costumava ser a direita polonesa, mas também a tradicional direita húngara, a direita italiana e ainda, com certas diferenças, a direita britânica e a direita norte-americana.

Alguns dos convidados da véspera de Ano-Novo, assim como meu marido e eu, continuaram a apoiar a centro-direita pró-europeia, pró-estado de direito, pró-mercado, permanecendo em partidos políticos, em certa medida, aliados com os democratas-cristãos europeus, os partidos liberais da Alemanha e da Holanda e o Partido Republicano de John McCain.

Outros tantos passaram a se considerar de centro-esquerda. Outros ainda acabaram por tomar um rumo diferente, apoiando um partido ultranacionalista chamado Lei e Justiça. Este se afastara de modo impressionante das posições que tomava quando dirigiu o governo pela primeira vez por um breve período, de 2005 a 2007, e quando ocupou a Presidência de 2005 a 2010. Na Polônia não se trata da mesma coisa, pois o país é uma república parlamentarista.

Desde então o Lei e Justiça passou a adotar um novo conjunto de ideias, não apenas xenofóbicas e bastante arredias quanto ao resto da Europa, mas também francamente autoritárias. Depois de o partido ter conquistado uma ligeira maioria parlamentar em 2015, seus dirigentes violaram a Constituição ao nomear novos juízes para a corte constitucional.

Mais tarde, seguiu um roteiro igualmente inconstitucional para tentar cooptar a Suprema Corte polonesa. Assumiu o controle da emissora de televisão pública, a Telewizja Polska, demitindo apresentadores prestigiados e passando a fazer propaganda descarada – eivada de mentiras facilmente refutáveis – à custa dos contribuintes.

O governo granjeou notoriedade internacional ao aprovar uma lei cerceando o debate público sobre o Holocausto. A lei foi alterada depois da pressão dos Estados Unidos, mas gozou de amplo apoio da base ideológica do Lei e Justiça – jornalistas, escritores e intelectuais, incluídos aí alguns de meus convidados, para os quais forças antipolonesas buscam culpar a Polônia por Auschwitz.

Posições dessa ordem me impedem de falar sobre o que quer que seja com alguns dos presentes à festa. Por exemplo, não tive uma única conversa com uma mulher que outrora era uma das minhas amigas mais íntimas, madrinha de um dos meus filhos – vou chamá-la de Marta –, desde um telefonema histérico em abril de 2010, alguns dias depois que um avião que transportava o então presidente caiu perto de Smolensk, na Rússia.

Nos anos seguintes, Marta se aproximou de Jarosław Kaczyński, líder do Lei e Justiça e irmão gêmeo do falecido presidente. Regularmente ela o recebe para almoços em seu apartamento e discute quem ele deve nomear para seu gabinete. Há pouco tempo procurei encontrá-la em Varsóvia, mas ela se recusou; enviou-me uma mensagem assim: “Sobre o que conversaríamos?” – e não se manifestou mais.

Outra convidada – aquela que atirou no ar com a pistola – acabou por se separar do marido, um britânico. Soube agora passar os dias na internet, provocadora em tempo integral, promovendo fanaticamente uma série de Teorias Conspiratórias, muitas delas de um antissemitismo virulento.

Dispara tuítes sobre a responsabilidade dos judeus pelo Holocausto, e certa vez postou a imagem de uma pintura medieval inglesa que retratava um menino supostamente crucificado por judeus, com o seguinte comentário: “E ficaram surpresos por terem sido escorraçados…” Segue e engrandece os expoentes da “direita alternativa” (alt-right) norte-americana, cuja linguagem reproduz.

Este é um grupo não organizado de pessoas de extrema direita nos Estados Unidos. Eles militam a favor da supremacia da raça branca e do antissemitismo e contra a integração dos imigrantes, entre outras bandeiras.

Soube ambas estarem estremecidas com os filhos, devido a suas posições políticas. Mas isso também é típico: essa linha divisória percorre tanto famílias como amigos. Temos um vizinho perto de Chobielin cujos pais escutam a Radio Maryja, uma emissora pró-governo. Repetem seus mantras, encampam seus inimigos. “Perdi minha mãe”, ouvi de meu vizinho: “Ela vive em outro mundo.”

Para ser transparente quanto a meus interesses e inclinações, devo esclarecer: sou alvo de parte desse pensamento conspiratório. Meu marido foi ministro da Defesa por um ano e meio, em um governo de coalizão encabeçado pelo Lei e Justiça durante sua primeira e breve experiência de poder.

Posteriormente, rompeu com o partido e durante sete anos foi ministro das Relações Exteriores em outro governo de coalizão, este encabeçado pelo partido de centro-direita Plataforma Cívica. Nas eleições de 2015, ele não se candidatou.

Como jornalista e mulher dele, nascida nos Estados Unidos, não passei despercebida à imprensa, mas depois de o Lei e Justiça ter vencido as eleições daquele ano figurei em matérias de capa de duas revistas pró-regime, wSieci e Do Rzeczy (ex-amigos nossos trabalhavam em ambas), como “coordenadora judia clandestina da imprensa internacional e articuladora secreta da cobertura jornalística negativa da Polônia”.

Matérias similares foram veiculadas no noticiário noturno da Telewizja Polska. Por fim pararam de escrever a meu respeito: a cobertura jornalística negativa da Polônia pela imprensa internacional ficou generalizada demais para uma só pessoa, mesmo judia, a coordenasse na íntegra – embora de vez em quando o assunto ressurja nas mídias sociais, como seria de se esperar.

Crepúsculo da Democracia publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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