terça-feira, 15 de setembro de 2020

Divisão e Polarização Ideológica da Nação

Anne Applebaum, em seu livro vencedor do Pulitzer Prize, “Crepúsculo da Democracia” (Penguin Random House LLC, 2020), inicia sua análise depois de contar sua desagradável estória de inter-relacionamento pessoal na Polônia dividida e polarizada ideologicamente.

Em um célebre diário mantido de 1935 a 1944, o escritor romeno Mihail Sebastian relatou uma mudança ainda mais extrema em seu país. Assim como ela, Sebastian era judeu e a maioria de seus amigos era de direita.

No diário ele anotou como, um por um, eles foram atraídos pela ideologia fascista, tal um bando de mariposas em direção à luz. Relatou a convicção e a arrogância das quais se imbuíam ao deixar de se identificarem como europeus – admiravam Proust, viajavam para Paris – e passarem a se qualificar como romenos de sangue e solo.

Reparou eles descambarem para o pensamento conspiratório ou se tornavam irrefletidamente rudes. Gente conhecida por ele fazia anos o insultava abertamente e depois se portava como se nada tivesse acontecido. “Será possível”, ele se perguntava em 1937, “manter amizade com pessoas que compartilham uma série de ideias e percepções incompatíveis com as minhas – tão incompatíveis que se calam de vergonha e constrangimento assim que entro no recinto?”

Não estamos em 1937. Entretanto, hoje vem ocorrendo transfiguração semelhante na Europa onde habito e na Polônia, um país cuja cidadania obtive. Vem ocorrendo sem a desculpa de uma crise econômica como aquela sofrida pela Europa nos anos 30.

A economia polonesa tem sido a mais consistentemente bem-sucedida da Europa ao longo do último quarto de século. Mesmo depois do colapso financeiro global de 2008, o país não passou por nenhuma recessão. A onda de refugiados, embora tenha atingido outros países europeus, não se fez sentir por lá. Na Polônia, não existem campos de migrantes nem há terrorismo islâmico ou terrorismo de qualquer gênero.

E o mais importante: muito embora as pessoas descritas por Anne Applebaum, os ideólogos ultranacionalistas, talvez não sejam todas tão bem-sucedidas quanto gostariam, não são gente pobre nem do meio rural, nem são, de modo algum, vítimas da transição política, tampouco constituem uma subclasse empobrecida. Ao contrário, são instruídas, falam diversas línguas e viajam para fora – assim como os amigos de Sebastian nos anos 30.

O que terá causado essa transfiguração? Alguns de nossos amigos teriam sempre sido autoritários enrustidos? Ou será que a turma com a qual brindamos os primeiros minutos do novo milênio teria mudado ao longo das duas décadas subsequentes?

A resposta de Anne Applebaum é complicada, pois crê a explicação ser universal. Dadas as devidas circunstâncias, qualquer sociedade pode se voltar contra a democracia. Aliás, a julgar pela história, todas as sociedades acabarão por fazê-lo.

Antes de prosseguir, um parêntesis e um lembrete: tudo isso já aconteceu antes. Profundas mudanças políticas – eventos de uma hora para outra capazes de separarem famílias e amigos, atravessam classes sociais e reconfiguram alianças de maneira impressionante – não acontecem todo dia na Europa, mas tampouco são desconhecidas.

Nos anos recentes pouca atenção foi dedicada a uma polêmica francesa do final do século XIX. Ela prefigurou muitos dos debates do século XX e apresenta algumas inequívocas reverberações no presente.

O caso Dreyfus foi desencadeado em 1894, quando se descobriu um traidor no Exército francês: alguém estava passando informações para a Alemanha. Esta havia derrotado a França fazia um quarto de século e ocupara a Alsácia-Lorena.

O serviço de informações militar francês conduziu investigações e alegou ter encontrado o culpado. O capitão Alfred Dreyfus era alsaciano, falava com sotaque alemão e era judeu – portanto, no entendimento de alguns, não era um francês de verdade.

Como se verificaria, era também inocente. Porém, investigadores do Exército francês apresentaram evidências forjadas e deram falso testemunho. Em consequência, Dreyfus foi julgado por uma corte marcial, considerado culpado e sentenciado a confinamento solitário na ilha do Diabo, ao largo da costa da Guiana Francesa.

A polêmica dividiu a sociedade francesa em duas linhas ora bem conhecidas. Os que sustentavam a culpa de Dreyfus compunham a direita alternativa – ou o partido Lei e Justiça, ou a Frente Nacional Britânica – da época. Promoviam uma teoria conspiratória.

Contavam com manchetes espalhafatosas na imprensa marrom direitista da França – a versão do século XIX de uma provocação de extrema direita nas mídias sociais. Seus líderes mentiam para preservar a honra do Exército. Os adeptos se aferravam à convicção na culpa de Dreyfus – e à incondicional lealdade à nação –, mesmo depois de a impostura ter sido revelada.

Dreyfus não era um espião. Para demonstrar o indemonstrável, seus opositores precisavam desacreditar a evidência, a lei e até o pensamento racional. A própria ciência seria inconfiável, fosse por ser moderna e universal, fosse por conflitar com o culto emocional à ancestralidade e à pátria. “Em todo estudo científico”, escreveu um deles, há algo “precário” e “contingente”.

Já os partidários de Dreyfus argumentavam: certos princípios seriam superiores à honra nacional e, sim, importava se ele era ou não culpado. Acima de tudo, argumentavam o Estado francês ter a obrigação de tratar todos os cidadãos de forma equânime, qualquer fosse sua religião.

Também eram patriotas, mas de um gênero diverso. Concebiam a Nação não como um clã étnico, mas como a corporificação de um conjunto de ideais: justiça, honestidade, neutralidade dos órgãos judiciais. Era uma visão mais cerebral, mais abstrata e mais difícil de assimilar, mas não desprovida de certo apelo.

Essas duas visões da nação racharam a França ao meio. Os ânimos se acirraram. Arrebentavam bate-bocas nas salas de jantar de Paris. Familiares deixaram de falar uns com os outros, às vezes por mais de uma geração.

A divisão continuou a se fazer sentir na política do século XX, nas divergentes ideologias da França de Vichy e da Resistência. Persiste até hoje, no conflito entre o nacionalismo da “França para os franceses” de Marine Le Pen e a visão mais aberta de Emmanuel Macron de uma França representante de um conjunto de valores abstratos: justiça, honestidade e neutralidade dos órgãos judiciais, bem como globalização e integração.

Do meu ponto de vista, o caso Dreyfus é mais interessante porque foi suscitado por uma única causa célebre. Bastou um caso judicial – um julgamento contestado – para lançar um país inteiro em um debate furioso, gerando desavenças indirimíveis entre pessoas. Elas não sabiam que discordavam entre si.

Mas isso indica interpretações bastante diferentes sobre o que se entendia por “França” já estavam ali, prontas para emergir. Duas décadas atrás, diferentes interpretações de “Polônia” também já deviam estar presentes, à espera do momento de vir à tona, conforme as circunstâncias e em razão de ambições pessoais.

Talvez isso não surpreenda. Todos esses debates, seja o da França dos anos 1890, seja o da Polônia dos anos 1990, têm em seu cerne uma série de questões fundamentais.

A quem cabe definir uma Nação? E a quem, por conseguinte, cabe conduzir uma Nação? Por muito tempo imaginamos essas questões estarem resolvidas – mas por que haveriam de estar?

Divisão e Polarização Ideológica da Nação publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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