segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Câmbio no Brasil: normativos dos anos 30, sob inspiração autoritária, convivem e conflitam com regras liberalizantes recentes

Carlos Scharfstein (Valor, 01/09/2020) escreveu artigo sobre as regras de câmbio vigentes na economia brasileira. Compartilho abaixo.

A pesquisa anual da Febraban de Tecnologia Bancária mostra 63% das transações bancárias já ocorrerem por meios digitais (Febraban, 2020). Essa tendência, acompanhada do crescimento da cultura de empreendedorismo, provocou uma onda de inovação que revolucionou a oferta de produtos e serviços financeiros.

Essa maré inovadora foi particularmente transformadora em quatro principais segmentos dos mercados financeiros e bancário: pagamentos, crédito, investimentos pessoais e câmbio. Em todos esses, as discussões regulatórias ganharam a ordem do dia.

As polêmicas regulatórias são especialmente vivas nos segmentos de crédito e câmbio, que tiveram suas bases normativas fixadas na década de 30, inspiradas por preocupações típicas daquele tempo. Embora muitas dessas normas tenham sido atualizadas, inclusive sob a elogiável liderança do Banco Central (BC), outras permanecem em vigor – e causam insegurança jurídica.

A regulação cambial brasileira começou a ser feita na década de 20; mas foi nos anos 30, durante o governo Vargas, que surgiram as regras mais importantes:

  1. o monopólio estatal na compra de moeda estrangeira,
  2. a obrigação dos exportadores ingressarem suas divisas,
  3. o curso legal da moeda nacional proíbe a quitação com moeda estrangeira de obrigações exequíveis no Brasil,
  4. as vedações à compensação privada de câmbio (assim entendida a compensação de créditos e débitos entre brasileiros e estrangeiros sem a realização das operações de câmbio correspondentes) e à troca de moedas sem a intermediação de instituição autorizada a operar em câmbio, e assim vai.

O objetivo maior desse conjunto normativo era controlar o mercado de câmbio restringindo a autonomia privada, e proteger a moeda nacional, que à época sofria fortes desvalorizações.

A inspiração autoritária e centralizadora perdurou nas décadas seguintes: nos anos 60, instituiu-se, dentre muitas outras regras, a proibição à aplicação, no exterior, de recursos captados no Brasil por instituições financeiras.

A partir de 1988, e principalmente dos anos 2000 para frente, a regulação cambial foi sendo alterada e relaxada. Surgiram normas flexibilizando o regime anterior (por exemplo, agora exportadores podem manter seus recursos no exterior), transferindo decisões à autonomia privada e delegando competência às entidades responsáveis pela regulação do sistema financeiro: o Conselho Monetário Nacional (CMN) e o BC.

Em função dessa tendência liberal, passou a existir o que Bruno Meyerhof Salama (em “Regulação cambial entre a ilegalidade e a arbitrariedade: o caso da compensação privada de créditos internacionais”) chama, com bastante precisão, de “contradição fundamental” no marco regulatório cambial: normativos publicados nos anos 30, sob inspiração autoritária, convivem – e conflitam – com regras liberalizantes mais recentes.

Por conta dessa “contradição fundamental”, o Banco Central e o Poder Executivo propuseram o Projeto de Lei no 5387/2019, que atualiza a legislação sobre o câmbio (e atualmente está em tramitação na Câmara dos Deputados). Algumas de suas principais novidades são:

1- a revogação ou alteração de mais de 40 normas consideradas ultrapassadas, mas que continuam formalmente em vigor;

2- o alargamento dos casos em que moeda estrangeira pode ser usada para quitar obrigações no país, e autorização dada ao CMN para acrescentar ainda mais hipóteses;

3- a permissão a pessoas físicas brasileiras trocarem moeda estrangeira entre si (até US$ 1.000) de forma desintermediada, e desde que observados certos requisitos;

4- a autorização ao CMN e ao BC para expandir as hipóteses em que é permitida a abertura de conta em moeda estrangeira no Brasil;

5- a extensão do elenco de instituições que são autorizadas a oferecerem remessas internacionais e fecharem câmbio, observando regulamentação a ser emitida pelo BC;

6- a permissão expressa a que instituições financeiras utilizem recursos captados no país em operações no exterior, inclusive concessão de crédito, e muitas outras.

Essas alterações, que mudam o perfil dos controles cambiais brasileiros, têm por objetivo declarado tornar o real, paulatinamente, uma moeda conversível – assim entendidas aquelas que podem ser mais facilmente convertidas em outras e que, por isso, seriam mais aceitas como reserva de valor (com todos os benefícios macroeconômicos decorrentes deste fato).

Há, também, medidas no PL que preveem a customização dos controles das operações de câmbio, que deixariam de ser padronizados e passariam a ser definidos pelas entidades que efetuam a compra e venda de moeda estrangeira conforme o risco, a complexidade e as características de cada transação.

A vocação liberalizante do novo marco regulatório fica bastante evidente em quase todas as suas disposições: condutas antes vedadas passam a ser permitidas; matérias antes reservadas à lei são transferidas para a competência do CMN e do BC; e aos regulados é dada maior liberdade e responsabilidade. É a chamada “deslegalização”. Ocorre quando o legislador retira certas matérias do campo da reserva legal e as delega para normas regulamentares.

Contudo, por trazer alterações em nosso marco legal cambial, é de se esperar que o PL passe por um trâmite legislativo complexo até sua conversão em lei. É possível que se passem muitos meses, ou anos, até que seus benefícios sejam sentidos pela sociedade.

Em vista dessa possibilidade, fica uma reflexão: dentre as diversas regras obsoletas que compõem nossa regulação cambial atual, há aquelas de natureza infralegal, que foram editadas pelas autoridades reguladoras. Alguns célebres exemplos são a Circular no 24, publicada no longínquo ano de 1966 e que, de forma simplista, vedou “às instituições financeiras, por qualquer forma, aplicar ou promover a colocação, no exterior, de recursos coletados no país”. Outra, bem mais recente, é a que diz que contratos de câmbio só podem ser liquidados a partir de contas de depósito à vista – omitindo as contas de pagamento, que tanto se popularizaram na última década (Circular no 3691, art. 20).

Enquanto o bem-vindo PL de Câmbio segue o rito legislativo, as resoluções e circulares que estão em desalinho com seu espírito e com a realidade atual poderiam ser adaptadas. Por serem matéria de competência do CMN e/ou do BC, seria uma forma eficaz, rápida e simples – embora limitada – de melhorar a qualidade de nossa regulação cambial pontualmente, enquanto a reformulação geral trazida pelo PL de Câmbio estiver em gestação.”

Câmbio no Brasil: normativos dos anos 30, sob inspiração autoritária, convivem e conflitam com regras liberalizantes recentes publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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