Amália Safatle (Valor, 31/05/2019) publicou reportagem comparando o presente tenebroso com um contexto auspicioso da economia brasileira: a Era Social-desenvolvimentista (2003-2014) iniciada no Governo Lula. Na primeira década dos anos 2000, a junção entre estabilidade da moeda, alta das commodities, expansão de emprego, renda e crédito, valorização do salário mínimo, políticas sociais e redistributivas abriu o horizonte de oportunidades para as classes desfavorecidas.
O brasileiro pôde comprar mais alimentos, como proteína, mas também investiu em moradia, saúde, transporte, estética pessoal e bens duráveis – o consumo deste último saltou 104% entre 2000 e 2012, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O maior acesso a bens culturais, à formação técnica e à educação superior veio no bojo do crescimento econômico. As estatísticas tradicionais que contabilizam a venda de livros físicos, ingressos de cinema e CDs não captam bem a realidade.
Segundo esses indicadores, o consumo de bens culturais não teria acompanhado o de bens duráveis que houve na ascensão da classe média entre 2003 e 2012. Mas, diferentemente do que dizem os números, o especialista em economia do entretenimento Fábio Sá Earp, professor da UFRJ, suspeita que o consumo de bens culturais, na verdade, tenha crescido — e muito.
O que mudou foi o meio: música por streaming, cinema por Netflix, acesso gratuito a textos pela internet, além do uso de apostilas e livros de segunda mão nas escolas, sem falar na pirataria que o mundo digital possibilita, de filmes e canais por satélite a livros, a exemplo da Library Genesis, um imenso acervo que pode ser baixado gratuitamente.
Em 2014, quase metade das compras de computadores, notebooks e tablets foi efetuada por pessoas que o fizeram pela primeira vez na vida, segundo dados da Fundação Getulio Vargas. O acesso a conectividade digital e a aparelhos celulares e eletrônicos mantém-se em alta. Mesmo com a recente crise, 93% da classe C hoje possui smartphone, enquanto o número de pessoas conectadas na internet passou de 37%, em 2008, para 68%, em 2018, segundo estudo do Instituto Locomotiva preparado para o Valor com base na análise e projeção de dados do IBGE.
Nos últimos dez anos, ainda de acordo com o Locomotiva, a média de anos de estudo na classe C aumentou 21%. O Censo de Educação Superior mostra uma evolução clara do acesso à universidade no Brasil desde 1995, especialmente na particular. Em paralelo a isso, a procura por cursos técnicos disparou a partir de 2004, com os jovens trabalhadores buscando qualificação.
Quem pôde aproveitar o acesso a bens culturais e de formação alterou seu rumo de vida, rompendo com a histórica imobilidade socioeconômica que caracteriza o Brasil de raízes escravocratas. Como se diz, conhecimento é um bem que, uma vez adquirido, dificilmente se perde. Mas pode ser desperdiçado quando vem a crise.
“Cada ano no ensino superior eleva em 21% a renda. E no curso técnico, em 14%”, diz o economista Marcelo Neri, da Escola Brasileira de Economia e Finanças da FGV.
As políticas de inclusão no ensino superior, como sistema de cotas, Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e Programa Universidade para Todos (Prouni) se mantiveram, mas a questão foi a piora do ambiente econômico, iniciado no governo Dilma Rousseff (PT). O PIB teve crescimento de apenas 0,5% em 2014 e queda de 3,55% (2015) e 3,31% (2016). Em defesa dessa conquista, houve a gigantesca manifestação contra os cortes na Educação do dia 15 de maio de 2019.
Entre todos os alunos, hoje, não passa pela cabeça a ideia de não fazer curso superior. “Na minha geração, universidade parecia algo de outro mundo. A USP não existia para a gente. Com a implementação das políticas de inclusão universitária, a atual geração de 15 a 17 anos tem certeza de que vai para a faculdade”, diz um professor de Ensino Médio. “Houve uma mudança no inconsciente coletivo.”
“Com o Plano Real, Lula e Dilma, sinto que o Brasil estava indo em frente. Eu atuava em um centro cultural e via como as pessoas estavam transformando a cultura e a arte em um ‘lugar de fala’, como tanto se diz hoje”, depõe quem fez Ensino Superior nesse período.
O boom econômico dos anos 2000 trouxe certo alívio para os mais pobres. Mas agora, com o desemprego que atinge especialmente os jovens, o cenário volta a ser preocupante. Os jovens egressos da escola em momento de crise ganharão menos a vida toda e têm muito mais probabilidade de entrar na criminalidade, em comparação com a geração que foi para o mercado de trabalho em uma época de crescimento. É o exemplo do filho da faxineira. Não tem emprego, não tem nada.
Isso remete a uma fala do sociólogo Jessé de Souza, professor da Universidade Federal do ABC, para quem a baixa classe média é aquela que, para se proteger, tem a necessidade de se distinguir daquele que é muito pobre. “O pobre no Brasil é exposto à violência policial e pode ser surpreendido com um PM chutando a porta de sua casa.” Diante da estagnação econômica, o que sobra como perspectiva para pessoas antes emergentes?
Buscar sustentação nos pilares do Estado e do setor privado ao mesmo tempo é justamente o que, segundo Marcelo Neri, mais bem representa a ideia de nova classe média, expressão que cunhou. Para ele, o grande papel da classe média é fazer a ponte entre as políticas de Estado e o empreendedorismo. “A beleza da nova classe média foi combinar o crescimento econômico do setor privado com a redução de desigualdade social por meio de políticas públicas. Era o caminho do meio, indicando uma visão mais integrada de país.”
Se o acesso à educação foi capaz de transformar histórias pessoais, Neri faz um contraponto em relação aos ganhos para a economia como um todo, à produtividade e à empregabilidade. Para ele, a educação superior no Brasil tem o mérito de dar aos alunos uma visão crítica do mundo e desenvolver o espírito de cidadania, mas ainda peca ao atender às necessidades do mercado de trabalho. Para ele, há uma aspiração ao diploma de bacharel – que é uma das formas de a classe média se distinguir do proletariado -, quando se devia também valorizar a formação técnica, capaz de atender de forma mais pragmática ao crescimento econômico, como ocorre em países europeus.
“A educação avançou e a expectativa de vida deu um salto gigantesco – a cada três anos, aumentou em um a longevidade. Mas a produtividade não cresceu, ou seja, faltou agenda econômica”, afirma o professor da FGV. Essa agenda teria sido necessária para dar sustentabilidade ao crescimento que vinha vindo. “Hoje, os dois grandes problemas econômicos do Brasil são o fiscal e a falta de produtividade. Ou seja, não se fez o trabalho completo [nas políticas de crescimento e inclusão]. E não se fez a reforma da Previdência, ao mesmo tempo em que a expectativa de vida aumentou.”
Essa é a ladainha equivocada tentada incutir nas mentes dos leitos por economistas ortodoxos. Só estes são entrevistados pela mídia pró mercado.
“Foi uma bolha que acabou”, diz outro economista neoclássico, no caso professor do INSPER, sem nenhum contraponto. “Ocorreram muitos erros de alocação dos investimentos no governo Dilma. É o que se chama de ineficiência alocativa.” Em vez de uma racionalização dos gastos quando a economia estava desacelerando, o governo elevou o investimento em todas as áreas, muitas vezes com má aplicação dos recursos, sem gerar impacto e nem aumento de produtividade. “Foi uma tentativa de manter um boom artificialmente. Um erro muito sério”, diz.
O tombo do boom para a recessão refletiu-se nas urnas, com a derrota petista e um ressentimento de boa parte da população. “A sensação de orfandade é a característica da classe C de hoje”, afirma Renato Meirelles, do Instituto Locomotiva. “A frase é: ‘Conto comigo, com Deus e com minha família’”, diz, o que ilustra o viés conservador de uma significativa parte da população e do eleitorado brasileiro. Na pesquisa do Locomotiva, quando se pergunta para a classe C quem pode contribuir para melhorar sua vida no próximo ano, “eu/meu esforço” aparece em primeiro lugar, com 65% das respostas, seguido por “Deus/fé/minha igreja” com 49% e “família/meus parentes” com 32%.
Mas o que virá agora, confirmado o cenário de estagnação econômica? “Estruturalmente, o nível de produtividade no Brasil está estagnado há 30 anos”, responde Menezes. “Para resolver isso de forma sustentável, o país teria que investir nos jovens pobres.”
Além da reforma da Previdência, pauta prioritária do governo de Jair Bolsonaro (PSL), ele defende a tributária, para reduzir a taxa sobre o consumo – o que atinge essencialmente as classes baixas -, e colocar sobre a renda. “É preciso aumentar impostos sobre os mais ricos, sobre herança e dividendos, investindo esse dinheiro nos mais pobres, a fim de igualar as oportunidades. Do contrário, o Brasil vira uma sociedade extrativista, como escreveram Daron Acemoglu e James Robinson, no fantástico livro ‘Por Que as Nações Fracassam’.”
O livro descreve um país como o Brasil: elites estabelecidas no setor público e no privado que recebem favores e bloqueiam o surgimento de novas empresas com novas ideias, enquanto os serviços públicos são de péssima qualidade. “É uma engrenagem feita para reproduzir desigualdade. Sem mudar isso, o Brasil continuará alternando períodos de maré de cheia e maré alta. Quando a maré sobe, as pessoas ficam felizes com cabeleireiro e iogurte. Mas aí a onda baixa e elas voltam para trás. Para algo sustentado, precisaria da educação de qualidade, que não existe hoje.”
Hoje, a palavra-de-ordem é: “Esta luta não se perde, pois ela nunca termina“.
Pós-Golpe: Reconcentração de Renda e Classe Média Em Queda publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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