sábado, 29 de junho de 2019

Ciência versus Caráter Infalível da Religião

Louvo todas as religiões, bebo meu bom vinho e deixo o mundo ser mundo…

Afinal, de qual Deus estamos falando? Há quase 5000 nomes de deuses distintos, surgidos ao longo da história humana (Quadro de deuses). Carl Sagan, em um capítulo do livro Variedades da experiência científica, colocou a questão da seguinte forma: se estamos discutindo a ideia de Deus e ficarmos restringido aos argumentos racionais, então é útil saber o que estamos querendo dizer quando falamos “Deus.”

Para os romanos, os cristãos eram ateus. Eles não acreditavam nas entidades dos deuses do Olímpio. Nesse sentido, quando alguém diz não crer em um Deus determinado, ele é ateu com relação a esta divindade. Qual o motivo, portanto, de um Deus em particular ser mais ou menos provável que os Deuses do Olímpio, ou qualquer outro dos 5000 catalogados?

Ronaldo Pilati, no livro “Ciência e pseudociência: por que acreditamos naquilo em que queremos acreditar”, admite o conceito de religião ser bastante amplo e envolver grande diversidade. As práticas religiosas são variadas. Porém, considero aqui a ideia de religião de forma ampla, na qual os indivíduos professam crença em entidades sobrenaturais diversas e utilizam tais crenças como mecanismos de compreensão da realidade.”

Por sua natureza e fundamentação, a religião é um sistema de crenças infalseável. Por possuir características e significados particulares, Polati vai abordá-la fora do contexto das pseudociências. Mas considera a crença de caráter religioso partilha o princípio da infalseabilidade como principal característica, o que a aproxima do pensamento pseudocientífico.

Uma diferença é que a religião, em geral, não busca uma validade aparente de ciência, como fazem de forma explícita os sistemas pseudocientíficos. A tradição em se tratar a religião como um sistema de saber diferente da ciência, por muitas décadas, formalizou a noção de que a ciência não trata de perguntas ou temas religiosos, o que fundamenta um dos argumentos de existência dos “escaninhos mentais”.

A ciência pode tratar, também, de questões humanas fundamentais, como os motivos de nossa existência e de onde viemos. Certamente, não é objetivo da ciência tratar de entidades sobrenaturais, tampouco ela é uma promessa de resposta definitiva a esta ou a qualquer pergunta seja alcançada.

O princípio falseacionista da ciência não dá margem para uma verdade final, ausente de dúvidas. O problema é as barreiras impostas por uma demarcação de sistemas equivalentes de saber terem acabado por reforçar, de maneira negativa, a existência de espaços ou temas nos quais o conhecimento científico não poderia ser aplicado.

O argumento de Polati é, de fato, tais limites não existirem. A ciência avança em nichos, com perguntas e produção de conhecimentos outrora segregados. Para o bem do desenvolvimento do conhecimento humano, é importante assumir uma postura de tais limites não deverem ser estabelecidos por argumentos como de magistérios independentes, defendidas tanto por secularistas como por religiosos, tanto por teístas como por ateístas e agnósticos.

A criação de barreiras dessa natureza, socialmente validadas, produzem efeitos prejudiciais para o avanço do conhecimento. A crença religiosa produz esse tipo de consequência quando é covalidada pelo argumento de separação, de Magistérios Não Interferentes (MNI). Considerando o mecanismo dos EM (Escaninhos Mentais), a crença religiosa funciona como um meio de racionalização para a crença no infalível.

Mas é interessante notar: a relação das instituições religiosas com a ciência mudou ao longo dos anos e assistimos hoje à reinstauração do argumento da convergência entre o conhecimento científico e a crença religiosa (Dawkins, 2005). Entretanto, o conhecimento religioso é infalível e não há como convergir o sistema falível científico com o sistema infalível religioso.

Portanto, a ideia de convergência é falsa. Porém, o argumento da convergência convence muitos interlocutores. Tal resultado pôde ser observado, por exemplo, nos embates jurídicos em torno do direito ao ensino do Desenho Inteligente nos EUA.

Esses movimentos de “ciência com base em crença religiosa” produziram processos judiciais na tentativa de permitir o ensino de “visões científicas alternativas” à Teoria da Seleção Natural darwiniana nas escolas americanas de nível equivalente ao nosso ensino fundamental. Tais ações provocaram um forte e coordenado movimento da comunidade científica, resultando em documentos redigidos por grupos de cientistas na busca de subsidiar a decisão judicial sobre os preceitos regentes de um sistema de crença científico. A ideia da capacidade de falsificação do sabido está no cerne de tais documentos.

A concepção religiosa e a noção científica de como o conhecimento é produzido guardam incompatibilidade elementar. Não há como conciliar sistemas de crença cujos princípios são rigorosamente opostos.

Uma demonstração do grau de incompatibilidade entre o pensamento religioso e científico pode ser expressa na concepção de verdade apresentada por João Paulo II na carta encíclica Fides et Ratio (João Paulo II, 1998). Em sua carta, ele defende a necessidade da estreita relação entre fé e razão. O papa define verdade como a busca do saber, de uma resposta final e definitiva, fornecendo uma certeza livre de qualquer dúvida. Tal verdade, nas palavras do mandatário da Igreja Católica, seria encontrada em Deus. Qual entre as 5.000 divindades sobrenaturais?!

Sobrenatural é o miraculoso. Logo, é só adotado pela experiência da fé na existência de algo sobrenatural por ser onisciente, onipotente e onipresente. A primeira dessas virtudes é ter saber absoluto, pleno, ou seja, ter conhecimento infinito sobre todas as coisas – o que a Ciência reconhece não ter, pois desconhece o futuro. Por ser onipotente, o poder de Deus seria ilimitado, irrestrito. Mas aí surge uma contradição lógica: se Ele sabe o que ocorrerá no futuro, deixa de ser onipotente ao não poder mais modificar o anunciado a ocorrer no futuro. Ao contrário da Ciência, “não pode mudar de ideia”!

Argumentar ser possível existirem muitas faces da verdade é, novamente, contribuir para a concepção de magistérios diferentes, para os diferentes tipos de saber da humanidade. Além disso, esse tipo de argumento é coerente com a motivação básica em acreditar no infalseável, na verdade final e perfeita, o que é coerente com a crença religiosa, mas é incoerente com o princípio fundamental científico de o saber ser falho e transitório.

Um dos mais relevantes problemas em aceitar Ciência e Religião como compatíveis ou considerar constituírem dimensões independentes de conhecimento é o cerceamento da inventiva curiosidade para a formulação de novas perguntas. A incompreensão de a finalidade da ciência é ir além de um limite específico, qual seja das verdades de curto alcance, é uma forma de impedir a ciência “se intrometer” em uma área com domínio estabelecido.

Conceber a ciência como uma forma de saber irrestrita, sem limites, não a circunscreve no culturalmente delimitado, segundo o qual não seria de a alçada da ciência fazer certas perguntas relativas à religião. Isso, entretanto, está relacionado aos problemas de poder instituído possuído pelas organizações sociais das religiões – e não, necessariamente, à motivação em fazer perguntas.

Perguntar é a base do trabalho do cientista. A característica do fazer do cientista é a aplicação cética-racional do método para se buscar a resposta. A possibilidade de fazer perguntas novas está diretamente relacionada ao que se sabe no momento da formulação da pergunta e aos meios para conseguir uma resposta com os critérios científicos necessários. Então, quanto mais sabemos, mais perguntamos.

Sistemas infalíveis, como as crenças religiosas e pseudocientíficas, acabam por nos remeter à “verdade” finalizada. Isto nos impede de formular perguntas e continuar descobrindo e desvelando a enorme complexidade do universo.

Mentes treinadas para acreditar e endossar sistemas de crença infalíveis são mentes onde a possibilidade de formular perguntas é inibida. A diminuição dessa capacidade nos leva a não ter mais o que responder e, naturalmente, isso limita até onde podemos compreender o universo e a nós mesmos.

Por tais motivos o pensamento científico não deveria ficar circunscrito a esferas específicas da experiência humana. Os EM restringem o alcance do que podemos conhecer, pois mitigam nossa capacidade de formular perguntas sobre as mais diversificadas questões da natureza. O endosso a crenças religiosas e pseudocientíficas38 funciona, então, como uma barreira que se torna instransponível para permitir conhecer a realidade. Ideias e crenças infalíveis funcionam como um calabouço que nos aprisiona e limita a possibilidade de conhecer a realidade do universo.

Sistemas falíveis de conhecer foram a mais eficiente invenção humana para melhorar nossa condição de existência. Essa consideração está alicerçada nos séculos de atividade científica organizada. Ela produziu incontáveis fatos científicos, possibilitando mudar radicalmente as concepções sobre o mundo e exercitar a humildade em relação ao sabido diante da vastidão e complexidade do universo. Tudo isso sem precisar lançar mão de crenças mágicas ou sobrenaturais.

Ciência versus Caráter Infalível da Religião publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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