Jorge Pasin é economista do departamento de pesquisa econômica da Área de Planejamento Estratégico do BNDES e mestre em Economia, com ênfase Estudos Internacionais Comparados pela UFFRJ. Publicou o artigo abaixo (Valor, 14/06/19), o qual reproduzo pela importância de seu tema.
“Com a postura revisionista sobre os acordos comerciais adotada pelo governo Trump e a consequente onda de protecionismo, o comércio internacional vem desacelerando desde 2017. Essa tendência, agravada pela recente intensificação da contenda comercial entre EUA e China, traz impactos negativos sobre a atividade produtiva no mundo. Hoje, um dos fatores capazes de contrabalancear esses efeitos é a forte expansão econômica da Índia.
Desde o início da década passada a economia da Índia cresce a taxas elevadas, com expansão anual média do PIB acima de 7%. A inflação apresenta trajetória de queda desde 2012, beirando hoje a casa dos 2% ao ano (dados do FMI). Os números do lado fiscal estão em patamar sustentável e a relação dívida/PIB, que beirava os 85% em 2003, está abaixo dos 70%. Do ponto de vista macro, portanto, a Índia está com a casa arrumada.
Do ponto de vista setorial, o país reúne três conjuntos de destaques. O primeiro, mais tradicional e com lastros históricos e culturais, envolve a agricultura, os setores têxtil e de mineração, e a fabricação de joias. A esse conjunto se juntaram, ao longo da segunda metade do século XX, a indústria química e farmacêutica, o parque de refinarias, as manufaturas modernas e maquinarias, e a siderurgia e a fabricação de cimento. O terceiro conjunto de setores, mais recente e moderno, se relaciona ao boom de investimentos em tecnologia da informação no país: softwares, serviços de comunicação e internet (acessibilidade à rede, aplicativos de celular e e-commerce).
A Índia já é o maior mercado mundial (em número de usuários ativos) do Facebook e do Whatsapp e o terceiro maior do Twitter. No país da Bollywood, o Instagram e o YouTube também estão na moda. A expansão da internet na Índia requererá maciços investimentos em infraestrutura de telecomunicações. O número de usuários indianos da rede saltou de pouco mais de 200 milhões no início de 2014, para quase 600 milhões ao final de 2018, devendo superar os 800 milhões até 2025, com a crescente inclusão da população rural (dados da Telecom Regulatory Authority of India).
No tocante ao comércio exterior, com a expansão da corrente de comércio à taxa média de 14% ao ano de 2003 a 2018, a participação da Índia no intercâmbio mundial de bens saltou de 0,8% para 2,5%. Seu índice de abertura econômica (exportações mais importações de bens em relação ao PIB) passou de pouco menos de 22% para cerca de 34% no período (a título de comparação, o Brasil tem um índice de abertura econômica da ordem de 20%). Em função do crescimento acelerado, a balança comercial indiana vem se deparando com déficits crescentes. Em 2018, com US$ 322 bilhões em exportações e US$ 618 bilhões em importações, o saldo ficou negativo em US$ 296 bilhões (dados do Comtrade/ONU).
O grande desafio da Índia é aproveitar a demografia favorável para crescer expandindo a capacidade produtiva e o mercado interno, enquanto mitiga a carência de infraestrutura sem descuidar do déficit energético
Naturalmente, os maiores beneficiários da ascensão da Índia são seus vizinhos asiáticos e os fornecedores de equipamentos de telecomunicações (China e EUA), com grandes oportunidades também para venda de smartphones. O setor automobilístico e o de partes e peças associadas são outra aposta para os próximos anos. Os fornecedores de commodities também ganharão com o crescimento do mercado indiano.
Com as projeções de crescimento mantendo-se na casa dos 7%, a demanda de energia do país terá a maior alta no mundo. A importação de petróleo bruto pela Índia, hoje da ordem dos 4,4 milhões de barris equivalentes diários (dados da Opep), crescerá à taxa de 5% ao ano pelos próximos dez anos. A demanda por gás deve crescer na casa dos 7% ao ano (dados da International Energy Agency).
China, Japão e Índia são os três maiores PIBs da Ásia e ocupam hoje, respectivamente, a segunda, a terceira e a quinta posições na lista das maiores economias mundiais (estando EUA e Alemanha no primeiro e quarto postos). Combinando as previsões do FMI, do Banco Mundial e da OCDE, em dez anos, a Índia ultrapassará a Alemanha e o Japão, tornando-se a segunda maior economia da Ásia e a terceira mundial.
De fato, ao longo da próxima década China e Índia continuarão sendo os grandes motores do crescimento regional, que vem deslocando o centro de gravidade da economia do planeta em direção ao continente asiático. Os dois países, que hoje são responsáveis por 19% do PIB do planeta, responderão em 2028 por quase 25% da produção global contribuindo, além disso, com cerca de 40% da expansão da atividade econômica mundial.
Ademais, com uma população jovem e em crescimento, a Índia ultrapassará a China como país mais populoso do mundo até 2025. As projeções da ONU indicam também que o percentual da população indiana entre 15 e 64 anos subirá de 64% em 2018 para 67% em 2028.
A Índia tem hoje a tarefa de contornar a desaceleração do ritmo de crescimento experimentada no primeiro trimestre de 2019, quando a economia expandiu-se à taxa anualizada de 5,8%. As eleições legislativas, encerradas em maio passado com a reeleição do atual Primeiro Ministro e a manutenção de maioria no Parlamento pelo partido da situação, reduziram incertezas e trouxeram expectativas de continuidade de avanços na regulação e, com isso, impulso extra aos investimentos no país.
O recente corte na taxa básica de juros de 6% para 5,75% também contribuirá para esse objetivo. Para os próximos anos, o grande desafio da Índia envolve aproveitar a demografia favorável para crescer expandindo a capacidade produtiva e o mercado consumidor interno, enquanto mitiga a carência de infraestrutura sem descuidar do déficit energético. Cumprido esse roteiro, a Índia se firmará como polo dinâmico da economia global, atuando como novo vetor do crescimento mundial.
Por outro lado…
Economistas e investidores mostram ter cada vez menos, ou nenhuma, confiança nos dados econômicos oficiais da Índia.
Há muito tempo se questiona se as estatísticas do governo indiano contam toda a história, mas as dúvidas chegaram a novas dimensões após duas polêmicas recentes sobre revisões e atrasos de números importantes. O próprio governo admite que há deficiências na coleta de seus dados.
Um estudo realizado por uma divisão do Ministério de Estatística nos 12 meses encerrados em junho de 2017 concluiu que até 36% das empresas na base de dados usada para calcular o Produto Interno Bruto (PIB) da Índia não puderam ser encontradas ou estavam classificadas equivocadamente.
Mas o Ministério afirma que não houve impacto nas estimativas do PIB, já que, no cômputo agregado, foram realizados ajustes nos dados apresentados pelas empresas.
Em dezembro de 2018, o governo adiou o anúncio dos dados sobre emprego, mas um relatório oficial vazou para um jornal indiano, mostrando que o desemprego havia atingido o maior patamar em 45 anos.
Agora, economistas e investidores manifestam sua desconfiança preferindo usar fontes alternativas de dados e, em alguns casos, até criando indicadores próprios para mensurar a economia indiana.
Dez economistas e analistas de bancos, centros de estudos e fundos estrangeiros entrevistados pela Reuters disseram que passaram a usar fontes alternativas de dados ou, ao menos, outros tipos de dados oficiais.
Entre os indicadores que eles têm preferido estão os de vendas de carros, de volume de carga transportada por trens e aviões, de atividade dos gerentes de compra e alguns índices criados pelas próprias instituições para acompanhar a economia.
Muitos economistas disseram ter ficado desconcertados quando o governo revisou para cima o crescimento do PIB no ano fiscal de 2016/2017, de 6,7% para 8,2%, mesmo depois de um programa de troca de cédulas de alto valor que foram desmonetizadas ter prejudicado as empresas e o emprego naquele exercício.
“Nossa resposta tem sido gastar tempo criando um Índice de Atividade Indiana, que engloba um conjunto de séries históricas de dados que no passado tiveram alta correlação com o crescimento real do PIB e extrair a sinalização comum mostrada por elas”, disse Jeremy Lawson, economista-chefe da Aberdeen Standard Investments, que administra mais de US$ 700 bilhões em ativos.
Os números preliminares desse índice – entre cujos componentes estão dados de vendas de carros, cargas aérea e atividade dos gerentes de compras – indicam que o governo exagerou a expansão do PIB, disse.
“Nosso índice sugere que houve crescimento estável, em vez da rápida aceleração sugerida pelas cifras do PIB”, disse, referindo-se aos três anos de dados desde 2014.
Mesmo pessoas próximas ao governo têm dito que a falta de precisão dos dados oficiais aumenta muito o risco de que as autoridades deixem de perceber grandes mudanças na atividade e de reagir com rapidez para evitar crises.
O problema também atrapalha investidores, que podem ser induzidos a achar que a economia está mais forte do que a realidade.
O braço econômico da organização Rashtriya Swayemsewak Sangh (RSS), de onde nasceu o partido nacionalista hinduísta Bharatiya Janata (BJP), atualmente no poder, criticou o governo federal e o banco central indiano por não terem antecipado a crise agrícola que assola o interior. Os baixos preços dos produtos agrícolas derrubou a renda dos agricultores.
“O fato é que os assessores do governo e o comitê de política monetária do banco central não diagnosticaram a crise agrícola e as condições deflacionárias da economia rural e ignoraram a necessidade de impulsionar o crescimento”, afirmou Ashwani Mahajan, codiretor do Swadeshi Jagran Manch, nome do braço econômico da RSS. Mahajan ressaltou que o governo indiano agora vem adotando medidas para resolver o problema.
A demora em enfrentar a crise custou ao premiê da Índia, Narendra Modi, pelo menos parte do apoio que teria no interior nas eleições gerais em andamento, embora a maioria dos estrategistas políticos ainda acredite que ele provavelmente irá se manter no poder.
A oposição e outros críticos têm acusado o governo Modi de abafar os dados do emprego e de “massagear” os números do crescimento da economia para tentar mostrar que seu governo vem se saindo melhor do que o anterior.
Um porta-voz do Gabinete de Modi disse que não havia autoridades disponíveis para comentar o assunto, pois estavam ocupadas com a eleição. Um porta-voz do Ministério das Finanças remeteu a comentários prévios feitos pelo ministro Arun Jaitley.
Em março, num blog, Jaitley criticou os economistas que duvidam da credibilidade dos dados e os acusou de promover uma campanha de falsidades contra o governo do país.
Alguns investidores já sofreram perdas por terem acreditado na história de alto crescimento da Índia. Produtores de energia do setor privado investiram bilhões de dólares com base na expectativa por uma demanda elétrica que acabou não se materializando na economia rural.
Com a expansão da economia em mais de 8% ao ano, eles previam uma alta na demanda de pequenas empresas e dos consumidores.
Muitos produtores de energia agora enfrentam recuperações judiciais e processos na Justiça, uma vez que muitas das novas usinas que construíram funcionam a 60% da capacidade.
No setor imobiliário, é possível que sejam necessários de três a quatro anos para limpar o estoque de 500 mil residências sem vender na região de Nova Déli, que foram construídas na suposição de aumentos nos salários nas áreas urbanas, segundo incorporadoras.
Sem dúvida, a alta proporção da economia indiana no setor informal, como é o caso de muitas empresas domésticas, torna a tarefa de avaliar a atividade econômica um pesadelo.
Gita Gopinath, economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), disse a um canal indiano de TV em abril que a instituição abordou a questão da “transparência” com autoridades indianas da área de coleta de dados e ressaltou, em particular, a medição do deflator do PIB – a taxa ajustada de inflação usada para estimar o PIB real.
Em comunicado, o Ministério de Estatística disse que está trabalhando para resolver o problema.
Economia da Índia: Potência Mundial publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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