quarta-feira, 5 de junho de 2019

Brasil à Venda

Eric A. Posner & Glen Weyl, coautores do livro “Mercados radicais: reinventando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa” (São Paulo: Editora Portfolio/Penguin; 2019), sugerem: “imaginem todo o Rio de Janeiro em um perpétuo leilão. Suponham cada edifício, cada loja, cada fábrica e cada trecho na encosta do morro ter um preço corrente, e quem der um preço maior por esses espaços tomar posse deles. Os leilões podem abranger alguns tipos de bens pessoais, como automóveis, ou mesmo coisas normalmente determinadas por processos políticos, como a quantidade de poluentes, cujas indústrias são autorizadas a emitir. Boa parte deste livro consiste em conceber como um sistema assim funcionaria.

Como experiência hipotética [risos… É uma experiência real no Brasil sob o comando autocrático da aliança entre um banqueiro de negócios, um capitão populista de direita e ideólogos olavetes, com apoio de fazendeiros e evangélicos conservadores], suponhamos por ora os leilões serem conduzidos por meio de aplicativos para celulares. Eles dariam lances automaticamente, baseados em configurações-padrão, eliminando em larga medida a necessidade de calcular constantemente o valor a se oferecer.

Haveria leis garantindo não ocorrerem os transtornos mais óbvio, por exemplo, chegar em casa e perceber o apartamento não ser mais nossa moradia. Existiriam incentivos protetores de modo a aumentarem [o “efeito dotação”] os preços dos ativos próprios e garantirem a preservação da privacidade e de outros valores.

Toda a renda gerada por esse leilão retornaria aos cidadãos, igualitariamente, como “dividendo social”. Ou então seria utilizada para financiar projetos públicos, como acontece com as receitas das vendas de petróleo no Alasca e na Noruega.

Viver sob esse regime de leilão contínuo transformaria a sociedade e a política do Rio de Janeiro. Em primeiro lugar, as pessoas passariam a conceber suas propriedades de outra maneira. Sumiria a enorme diferença entre ter casa própria e ocupar um lugar na praia. A propriedade privada se tornaria, em larga medida, pública, e os bens das pessoas à nossa volta se tornariam, em certo sentido, também parcialmente nossos.

Além disso, esse processo de licitação contínua acabaria com os tremendos descalabros no uso da terra e de outros recursos. Quem desse o maior lance pelas encostas mais bonitas jamais seria alguém com planos de construir ali cortiços precários e dilapidados. Quem desse o maior lance por um terreno no centro da cidade não seria o incorporador imobiliário de condomínios grã-finos e exclusivos, mas um construtor de arranha-céus para a nova e enorme classe média criada pelos leilões.

Uma terceira consequência seria o fim da fonte primária da desigualdade econômica. Em um primeiro momento, você pode pensar: os ricos iriam arrebanhar tudo o que é de valor nesses leilões!

No entanto, os coautores solicitam ao leitor reflitir um minutinho. O que se entende por “os ricos”? Gente possuidora e negócios, terras etc. Mas, se tudo estivesse em leilão o tempo todo, ninguém teria esses ativos. Seus benefícios iriam igualmente para todos. No capítulo 1, explicam como isso se daria. [Será uma idílica sociedade comunista?]

Em quarto lugar, o sistema de leilão do Rio de Janeiro limitaria a corrupção ao transferir muitas decisões políticas importantes das mãos dos políticos para as dos cidadãos. Com a melhoria da vida pública, a criminalidade diminuiria, as pessoas voltariam a frequentar as ruas e o recolhimento em comunidades fechadas deixaria de existir.

Longe da imagem usual dos mercados substituindo e corroendo a esfera pública, os mercados radicais fomentariam a confiança na vida pública. No capítulo 2, os coautores explicam como um leilão poderia organizar a política.

Os argumentos de Eric A. Posner & Glen Weyl não se baseiam em Karl Marx, mas sim se baseiam em uma tradição intelectual advinda desde a Adam Smith. Hoje em dia, os pensadores conservadores, inclusive os fundamentalistas do mercado, costumam invocá-lo com frequência. Mas Smith era um radical, nos dois sentidos apontados na seguinte epígrafe do livro:

“O liberal oitocentista era um radical, tanto no sentido etimológico de ir à raiz da questão quanto no sentido político de defender grandes mudanças nas instituições sociais. Assim também deve ser seu herdeiro moderno. (Milton Friedman, Capitalismo e Liberdade, 1961)”.

Primeiro, ele escavou a fundo as raízes da organização econômica e propôs teorias que continuam relevantes hoje. Segundo, ele investiu contra ideias e instituições dominantes na época e apresentou uma série de sugestões e reformas ousadas. Atualmente, essas ideias só são consideradas “conservadoras” porque tiveram grande êxito na reformulação da política e do pensamento de sua época.

Os fundamentalistas do mercado traçam uma linha de continuidade entre Smith e nomes como Friedrich Hayek, Milton Friedman e George Stigler — ídolos conservadores de meados do século XX e ganhadores do prêmio Nobel. Eles tomaram de Smith uma concepção idealizada dos mercados baseados na propriedade privada. Puseram essa concepção em prática para defender a economia e a política libertárias.

Os fundamentalistas ignoram outros economistas com o mesmo espírito radical de Smith, como Henry George, cujas ideias ajudaram a deslanchar a Era Progressista. “Ele foi talvez o economista mais lido de todos os tempos” [?!], mas cuja concepção se perdeu nas brigas entre direita e esquerda durante a Guerra Fria.

George estava mais preocupado com a desigualdade se comparado aos seguidores conservadores de Smith. Ele via como a propriedade privada podia atrapalhar os mercados realmente livres. Para remediar o problema, propôs um esquema de tributação capaz de criar um sistema de propriedade comum da terra.

O economista “georgista” mais importante, a cuja memória dedicamos este livro, é um professor da metade do século XX, chamado William Spencer Vickrey. Vickrey foi o Mestre Yoda da profissão de economista: era um sujeito simples, desencanado, recluso, distraído, cheio de intuições geralmente impenetráveis, mas capazes de mudar o mundo. Ia de patins do trem até a sala de aula e deixava cair comida na camisa. Acordava de uma soneca em pleno seminário de pesquisas e comentava: “Esse artigo podia aproveitar… o princípio de Henry George de taxar os valores fundiários”.

Ele citava tanto o esquema tributário de George a ponto de um colega brincr durante uma homenagem fúnebre a ele: “Imagino a essa altura ele já ter citado para Deus também”. Igualmente desligado, arrogante e fechado, Vickrey se absteve diversas vezes de publicar suas melhores ideias em artigos acadêmicos.

As inspirações de pesquisa de Vickrey eram muito parecidas com as de Eric A. Posner & Glen Weyl. Durante a maior parte de sua carreira, ele se concentrou na organização das cidades e no tremendo desperdício de recursos em inúmeras formas urbanas. Tinha especial fascínio por cidades latino-americanas, prestando consultoria a vários governos sobre tributação e planejamento urbano. Foi quando projetava um sistema fiscal para a Venezuela que Vickrey elaborou um artigo clássico. Por fim, levou pelo ralo todo o seu empenho em se manter na obscuridade.

O artigo foi publicado em 1961. Já o título, “Counterspeculation, Auctions, and Competitive Sealed Tenders” [“Contraespeculação, leilões e disputa de lances selados”], parecia garantir logo cair no esquecimento. Mas foi redescoberto uma década depois. O artigo de Vickrey foi o primeiro a estudar a capacidade dos leilões em resolver grandes problemas sociais, ajudou a criar um campo da economia chamado “desenho de mecanismos” e lhe valeu o prêmio Nobel em 1996.

As ideias de Vickrey transformaram a teoria econômica e tiveram impacto na política. Países do mundo inteiro realizam licitações baseadas nas ideias de Vickrey para licenciar o uso de radiofrequência. O Facebook, o Google e o Bing empregam um sistema derivado do leilão de Vickrey para alocar o espaço publicitário em suas páginas na rede. As intuições de Vickrey em relação a planejamento urbano e pedágio urbano estão mudando aos poucos a fisionomia das cidades, e têm um papel importante nas estratégias de precificação em aplicativos como o Uber e o Lyft.

Mas nenhuma dessas aplicações práticas reflete com clareza as aspirações que deram impulso ao trabalho de Vickrey. Quando recebeu o Nobel, consta que ele pretendia usar o prêmio como “excelente tribuna” para apresentar as ideias transformadoras de George e o potencial radical do desenho de mecanismos a um público maior. No entanto, Vickrey morreu de um ataque cardíaco três dias depois de saber de sua premiação.

Mesmo se estivesse vivo, Vickrey provavelmente teria dificuldade em despertar o entusiasmo do público. Em 1996, ocorria em todo o mundo uma explosão econômica, e parecia nascer uma nova era de cooperação global. Ninguém queria atrapalhar esse sucesso, e a abordagem de Vickrey enfrentava enormes obstáculos práticos.

Hoje, porém, as perspectivas de progresso econômico e político não são auspiciosas, enquanto, graças a desenvolvimentos econômicos e tecnológicos, agora é possível superar as restrições práticas à abordagem de Vickrey. Este livro, portanto, quer servir como a “excelente tribuna” para Vickrey ocupar, dando mais corpo à concepção provavelmente apresentada ao mundo, se estivesse vivo.

Brasil à Venda publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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