Ronaldo Pilati, no livro “Ciência e pseudociência: por que acreditamos naquilo em que queremos acreditar”, aponta a crescente complexidade do empreendimento científico. Graças aos avanços teóricos, metodológicos e tecnológicos, a ciência feita hoje é diferente daquela feita no passado.
No entanto, apesar das mudanças, há uma característica central, base para todas suas outras características. Esse pilar é a falseabilidade ou falseamento, isto é, ele ser um “conhecimento falseável ou falsificável”. Qualquer conhecimento que tenha por base uma abordagem científica, cética e racional preserva essa característica.
O filósofo da ciência Karl Popper expressou de forma sintética e clara o princípio da falseabilidade como o critério capaz de qualificar um conhecimento como científico. Nessa concepção, qualquer conhecimento não falseável é não científico. Popper definiu o falseamento como o critério para demarcar o conhecimento científico do não científico. Por mais racional e lógico que possa aparecer, o conhecimento não falseável não pode ser considerado científico.
Mas o que viria a ser conhecimento falseável? A falsificação é a possibilidade de confrontar o que sabemos com um critério externo ao nosso pensamento. É colocar à prova nosso entendimento, confrontando nossas crenças que explicam o mundo por meio da observação e da experimentação.
Para um conhecimento ser passível de ser tornado falso, a explicação deve possuir elementos que permitam confrontá-la com a realidade para chegar a uma de duas possíveis conclusões:
(a) a explicação é errônea, pois não sobreviveu ao confronto com os dados da realidade empírica; ou
(b) a explicação sobreviveu e, por hora, não é possível falseá-la.
O que caracteriza se uma afirmação é falseável é a real possibilidade de confrontá-la com a realidade. Independentemente do tema ou área de pesquisa, o princípio da falseabilidade é a base do feito pelo cientista. Submeter explicações à prova garante afirmações sobre o mundo poderem ser falseáveis.
Afirmações sobre o mundo sem poderem ser testadas, por exemplo, haver vida após a morte ou o universo foi criado há cerca de dez mil anos por um ser de poder infinito, são infalíveis e, portanto, não científicas.
Há muitos sistemas de crença em voga e endossados por milhões de pessoas classificadas como infalíveis. Elas se utilizam algum tipo de argumento aparentemente lógico para persuadir e se perpetuar. Parece, mas não é: a sedução da pseudociência.
A principal crítica argumenta o pressuposto básico de qualquer teoria científica ser infalsificável. Por exemplo, o princípio de o conhecimento científico ser falseável é, por si mesmo, impossível de se falsear. Isso porque, se assumirmos a possibilidade de esse princípio ser falho, então, todo o resto é perdido.
Essa crítica é relevante, pois considera, então, o princípio da falsificabilidade ser limitado e não abrangente de todos os aspectos de uma teoria científica vigente. Tal situação leva ao paradoxo de algumas alegações pseudocientíficas podem ser entendidas como falsificáveis, e isso nos obrigaria a classificá-las como científicas.
Mais recentemente, vários autores retomaram o esforço de qualificar um conhecimento científico e diferenciá-lo do conhecimento não científico, abrangendo outros fatores também relevantes.
A ciência é um empreendimento complexo, que passou por grandes modificações nas últimas décadas. Tais mudanças resultam na expansão de seus campos de atuação e de sua influência.
A intersecção de áreas de conhecimento aliada ao desenvolvimento tecnológico e à sempre inventiva habilidade de se fazer novas perguntas resulta na criação de diferentes áreas de interesse científico. Essas novas áreas exigem nossa compreensão de demarcação do conhecimento científico também vir a ser capaz de lidar com novos campos de intersecção nascentes e vindouros.
Alguns exemplos de novas áreas de investigação e interesse científico são:
- a Neuroeconomia (associação de conhecimentos, métodos e questões da neurociência e temas, métodos e estratégias de investigação da economia),
- a Psicologia evolucionista (o estudo do impacto da história da evolução da nossa espécie na formação de nossa psicologia) e
- a Exobiologia (o estudo de formas de vida de fora da Terra).
Tendo isso em mente, é limitado considerar todo o critério de demarcação ser feito unicamente em um princípio dicotômico, como é o caso do critério proposto por Popper (i.e., falseável = científico; infalseável = não científico).
O próprio pensamento popperiano envolvia outros elementos e critérios, como o caráter hipotético-dedutivo do conhecimento científico. Esse caráter é a estratégia empregada pelo cientista para compreender seu objeto de estudo. Envolve elaborar o princípio de explicação e confrontá-lo com as evidências do mundo real.
Este confronto é feito por meio da pesquisa controlada e cuidadosa. Ela compara diferentes condições de forma a descrever e analisar todos os possíveis fatores capazes de afetar o resultado.
Diante da dificuldade em se diferenciar o conhecimento científico daquele não científico com base em apenas um critério, alguns autores defendem que se leve em consideração mais aspectos analisados de forma conjunta. Por exemplo, diferenciar a ciência da pseudociência a partir da análise do nomeado de “campo cognitivo”.
Esse campo se refere a comunidades de indivíduos que partilham um conjunto de ideias e características, organizadas em dez princípios:
(1) a existência de uma comunidade cognitiva (cientistas que usem métodos comuns e se comuniquem uns validando o conhecimento produzido pelos outros);
(2) um ambiente social para essa comunidade cognitiva;
(3) uma visão geral ou filosófica sobre o domínio cognitivo (assuntos em investigação pela comunidade);
(4) um universo do discurso (forma de falar comum);
(5) um arcabouço formal, com ferramentas lógicas e matemáticas;
(6) um conjunto de pressuposições comuns sobre como se comunicar;
(7) um conjunto de problemas definidos que o campo cognitivo deve procurar resolver;
(8) um conjunto específico de conhecimento acumulado;
(9) objetivos da comunidade cognitiva em cultivar o campo cognitivo; e
(10) uma coleção de métodos utilizáveis para o estudo do campo cognitivo.
Tanto o conhecimento científico como o não científico diferem em função da forma como organizam e empreendem os dez princípios. Por exemplo, os campos cognitivos considerados científicos são constituídos por comunidades de pesquisadores (princípio 2). Eles receberam treinamento especializado, possuem fortes fluxos de troca de informações entre si e iniciam ou dão continuidade a tradições de pesquisa.
Já um campo cognitivo não científico, nesse mesmo princípio, seria composto por comunidades de indivíduos crentes. Eles se autoproclamam cientistas, ainda não conduzindo nenhum tipo de pesquisa científica ou se engajam em práticas de pesquisa consideradas incompletas pelos padrões científicos.
A ideia simplificadora de Popper é atraente e intuitiva, isto é, nos dá, aparentemente, um atalho preciso para classificar e separar o que é ciência do que não é. Porém, as críticas a um critério único são pertinentes, pois podem nos levar a situações onde se consideram determinados empreendimentos como científicos quando na verdade não são.
Uma proposta que envolva fatores mais abrangentes é útil para envolver aspectos minimizadores da chance de cometermos um erro de categorização pelo fato de utilizarmos um critério único para identificar o que é e o que não é conhecimento científico.
De maneira tautológica, “ciência é o que os cientistas fazem”. Mas esse fazer está alicerçado no emprego do método rigoroso para o teste de hipóteses. Elas devem ser colocadas à prova, sujeitas à confirmação ou à refutação.
Também faz parte da ferramenta do cientista o uso do ceticismo sobre o que se sabe em relação a determinado assunto. Se analisarmos de forma criteriosa, a ciência deve ser vista como uma comunidade que emprega um conjunto de procedimentos para colocar à prova suas concepções de mundo.
Em essência, a possibilidade de colocar à prova significa que tais compreensões sobre o mundo são passíveis de serem entendidas como equivocadas, portanto, falsificáveis. Essa visão prática nos remete, novamente, ao fato de a falsificação ainda ser um dos principais critérios para diferenciar o conhecimento científico dos demais sistemas de crença com propósito semelhante.
O cerne desses argumentos segue de forma precisa, caracterizando um dos aspectos mais importantes e capaz de delimitar e diferenciar o conhecimento científico de outros sistemas de crença: todo tipo de afirmação deve poder ser submetido a algum tipo de procedimento de modo a confrontar a afirmação com a realidade por meio de um teste.
Se a afirmação que exprime o conhecimento não é passível de ser submetida a algum procedimento pelo qual sua falsidade possa ser desvendada, então não há o que se falar sobre essa afirmação.
Não podemos confundir o resultado do conhecimento científico com o processo pelo qual o conhecimento foi produzido. O resultado científico é fruto de um processo embasado em uma característica: a possibilidade de falsificação do conhecido.
Aprender sobre o que a ciência sabe sobre o mundo não é suficiente para compreender o que significa adjetivar um conhecimento como científico. É necessário ir além e compreender as características de como a ciência produz seus resultados.
O conceito do falseacionismo carrega em si uma característica capaz de dificultar sua apreensão. Acreditar nesse princípio exige um desprendimento sobre o conhecimento utilizadp para compreender o mundo.
O princípio falseacionista está diretamente associado à incerteza do sabido e, portanto, faz convivermos com a (real) possibilidade de as crenças possuídas possam estar equivocadas. Se, por um lado, essa característica do conhecimento científico dá a ele sua maior vantagem, por outro, produz uma situação paradoxal. Isso porque o cérebro e a cognição humana evoluíram como uma ferramenta que demanda estabilidade e, portanto, infalibilidade para compreensão do mundo.
Alguns pesquisadores têm defendido a ideia de que a crença em sistemas infalsificáveis é uma motivação humana fundamental. A compreensão do princípio da falseabilidade é difícil, mas, em hipótese alguma, inviável.
Se nossa cognição fosse incapaz de apreender o caráter falseável dos modelos e esquemas de compreensão de mundo, a ciência não teria sido um empreendimento tão exitoso na história da humanidade. Na verdade, não teria nem se desenvolvido. Logo, é possível apreender esse princípio; basta estar aberto para essa possibilidade.
O falseacionismo traz outra consequência inerente ao conhecimento científico. Ela também incomoda muita gente: a transitoriedade.
Se o conhecimento pode estar equivocado, então deve haver um conhecimento melhor a ser colocado no lugar. Isso significa novas explicações, a princípio mais eficientes, poderem substituir as explicações mais antigas, deixadas de ser tão eficazes, justamente porque alguém produziu e testou uma mais eficiente.
O caráter transitório do conhecimento científico não possui um prazo determinado de validade. Certas verdades científicas duram pouco tempo, como meses ou semanas. Outras podem durar décadas ou séculos.
A depender, entre outros fatores, da área do conhecimento, do investimento científico feito e do avanço tecnológico, o tempo do transitório também pode ser diferente. Por exemplo, o modelo clássico da Física durou séculos até ser complementado pelos modelos desenvolvidos no final do século XIX e início do XX, como é o caso da Teoria da Relatividade.
Por sua vez, a visão do homem racional, imperando na Psicologia e Economia desde meados da década de 1950, foi revista e complementada por um modelo de compreensão dual da cognição humana. Isto ocorreu menos de 30 anos depois.
Na história da ciência há muitos casos descritos comprovantes de o tempo da transitoriedade ser bastante diversificado. O principal fator determinante da velocidade da transição daquilo sabido em ciência é a eficácia do novo conhecimento para suplantar o antigo quando, por meio de teste rigoroso, os cientistas colocam à prova as anteriores alegações explicativas.
Muitas pessoas ainda acreditam o conhecimento científico seguir em linha retilínea de acumulação, de forma a ter mais conhecimento hoje se comparado ao tido ontem e mais conhecimento amanhã em relação hoje, isso até alcançar a verdade final.
No entanto, o modo como o conhecimento científico é produzido coloca em derrocada essa esperança da verdade final, pois a noção de transitoriedade impera na forma como a ciência se desenvolve. Essa transitoriedade é ainda mais evidente com o aumento das publicações científicas e pelo crescimento da comunidade científica. Ela tem produzido muito mais do que em qualquer outro momento da história.
Em princípio, a contradição do conhecimento entre o presente e o passado é o resultado do trabalho do cientista. Ele tem como objetivo primordial falsificar e propor algo novo, com a esperança de ser melhor e ajude a resolver seus problemas de pesquisa.
Há algumas situações em que essa nova proposição “melhor” pode significar dizer o oposto do que se conhecia. Em outras circunstâncias, são acréscimos para deixar o que sabemos mais preciso.
Graças ao sabido antes podemos ter um novo conhecimento agora, mesmo se esse novo conhecimento contradizer o anterior ou explicar um fenômeno a mais ou, então, ser mais simples. Essa é a característica de avanço e acumulação do conhecimento, mas ele não se caracteriza como uma acumulação linear em busca da verdade finalizada.
Característica Central do Conhecimento Científico publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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